Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 60: O Calor do Ego

— A cada dia eu só fico mais preocupada com a Emily… Quando será que ela vai voltar? Eu tô sentindo muita falta da animação dela aqui entre nós…

Essa nem de longe parecia a mesma garota que gritava sua mente aos quatro ventos da forma mais assertiva possível e entre arrumar livros e ter de passar seus dias sem a companhia daquela pessoa querida, sentia seu humor firme a murchar.

— Eu entendo que se sinta frustrada com essa demora por boas notícias, Ava. Acredite, todas nós estamos igualmente preocupadas, mas se uma coisa Emily nos disse, é para sempre tentar olhar as coisas pelo modo positivo.

A segunda não demorou em se colocar, uns dois palmos mais alta do que a primeira, de modos mais calmos e que, no momento, tomava o papel de tentar deixar o convívio mais agradável.

— Até porque olhem só! — mostrou um pequeno sorriso. — Até agora não recebemos nenhuma notícia ruim!

Depressa, pegou um dos livros, posicionando-o em seu devido lugar — marcado por ordem alfabética e tamanho — na segunda fileira da massiva estante de nobre madeira escura. 

— Emily vai ficar bem! E quando voltar, verá que deixamos tudo em ordem!

O modo como ela sorria ao realizar todas as atividades, mesmo uma especialmente chata como essa, era como ver o sol surgir entre uma tarde tempestuosa.

— A Isabella tem razão absoluta quanto a isso. Eu não acho que a família de Emily nos deixaria ficar sem saber caso algo pior acontecesse, até porque a mãe dela nos conhece. Ela sabe que somos amigas — falou a terceira, perfeitamente factual e apática. — A melhor coisa que podemos fazer por ela agora é manter o clube organizado e ativo.

Seu gesto foi depressa acolhido pela mais energética que, sorrindo em admiração, deixou com que ela soubesse o quanto a declaração havia sido incrível.

— Você falou toda a verdade agora, Olivia! Em um momento como esse, devemos ter fé e perseverar como sempre fizemos! São esses momentos que me fazem entender o motivo de ela ter te escolhido para ser a vice-presidente.

Riu um pouco de sua própria proclamação, ciente de que jamais teria a coragem suficiente para falar com suas melhores amigas sob a imagem de um ditador, algo que sequer desejou.

Ela não servia para ser uma líder de qualquer tipo e, mesmo recebendo a proposição inicial de ser a vice-presidente, decidiu desistir da posição e entregá-la a quem julgou ser mais competente.

— É isso. Eu vou aceitar por enquanto que vocês duas estão certas… — A menor do trio cruzou os braços. — ... Mas vocês tem que admitir que esse trabalho todo é uma porcaria! Nós somos o Clube de Literatura e não um bando de bibliotecárias...!

Ela tomou um livro qualquer, observando sua capa; um título estranho com a imagem de chamas escuras, roxas em tom, coloriam o papel rígido.

— Eu nem mesmo sei como se fala o nome do cara que escreveu esse livro, mas pela ordem de tamanho, essa coisa deve ir lá no topo e logo nos lugares que nenhuma de nós conseguiria alcançar! — reclamou intensamente. — Eu acho terrivelmente injusto o fato de não estarmos recebendo nada por isso, quando claramente deveríamos!

A mais alta acumulou toda a sua coragem em um impulso e tomou o livro, prometendo uma reação adversa que não seria ignorada.

— Em primeiro lugar, nós três somos o Clube de Literatura, o que significa que no documento que regulamenta as tarefas dos membros está escrito que temos de cuidar e zelar pelo espaço da biblioteca da escola e, caso queira procurar, esse registro se encontra na alínea cinco de nossa autorização de clube e isso significa dizer que, em casos específicos, podemos receber atribuições de bibliotecárias, já que a posse do lugar também é nossa. E em segundo, ele se chama ‘Revoir’, e conseguimos sim colocar ele em seu devido lugar… Desse jeito.

Com facilidade, Olivia conseguiu encaixar o grosso livro em seu espaço predestinado, antes um vazio imenso entre dois outros títulos igualmente enormes.

— Consegue ver agora? Não comece a fazer comentários impensados a respeito de nosso trabalho aqui ou sobre a forma como as coisas devem ou não ser feitas antes de consultar as fontes para isso. 

Bufou, exausta do comportamento sempre tão infantil e recorrente. Anos podiam se passar, decepções iam e vinham, mas Ava nunca mudava.

— Para de olhar para mim desse jeito…! Se tem algo para dizer, diz isso na minha cara!

A pequena loira brandiu suas presas, enojada com a encarada que já lhe era uma velha conhecida; um olhar condescendente, misto de desgosto e pena.

— E por que eu faria isso? — Olivia questionou. — Estúpido de você sempre pedir isso, só para acabar em lágrimas depois que escutar… Digno de uma criança.

— Ora, sua...! —  fechou a mão e ameaçou acertá-la com um soco. — Não fala assim comigo, sua girafa…!

— Opa, opa! Sem violência aqui! Parem de brigar, por favor!

A confiança de Isabella em si mesma não existia, mas na ausência de Emily, alguém tinha de ser a voz mediadora desses conflitos bobos.

— Mas foi ela quem começou tudo...! Ela quem gritou comigo como se pudesse fazer isso, Isabella…!

— A questão é que eu posso fazer isso e como foi dito poucos segundos atrás, em momentos de ausência da presidente, o poder passa para as mãos da vice-presidente, que nesse caso sou eu. Então, postas todas as condições, se você ainda insistir em continuar chorando a respeito disso como a criança pequena que é, pode sair do clube.

A brutalidade honesta resfriou o ar. Olivia nunca tinha qualquer piedade em suas palavras e até mesmo Isabella tremeu ao ouví-las, longe de serem dirigidas a ela.

— Veja só, já chorando... Você tem uma língua afiada, mas não consegue aguentar nem mesmo uma correção?

— Uhm... Olivia… Eu acho que…

— Que isso é ir longe demais? Não, não é. 

Sempre tinha algo a dizer, porém nesse momento lhe restou o silêncio. Por dentro, algo quebrou em Ava.

A garota mirava o chão, seus olhos verdes largos criavam poças e rios que escorriam sem o menor dos sons.

— Ela precisa aprender e deixar de se comportar como uma criança imatura e birrenta. Não pode continuar chorando por tudo pelo resto da vida e gritando com quem quiser. Você precisa parar de protegê-la, Isabella, ou ela nunca vai crescer.

Por segundos a fio, ela continuou parada, se questionando porque ninguém fazia nada.

“Isabella…”

Ela se recuou, intimidada pela voz de comando de Olivia, evitando trocar olhares com a vítima de tudo, sem dizer uma palavra.

“Me ajuda, Isabella…”

Mais segundos. Nenhuma resposta. Ninguém veio ao seu apoio.

“Sempre é assim…”

Não foi a primeira vez da realidade em mostrar o seu status inferior no grupo e acontecimentos como esse foram frequentes. Eles sempre prestavam mais atenção nas palavras difíceis da girafa.

Se sentia excluída e distante, amarga com o tratamento de ser enxergada como menos relevante e mais infantil, o único ponto ruim de ser parte daquele grupo.

“Eu me cansei disso…”

O incidente foi a gota d’água. Se tanto a desejavam longe do clube, acabaram de conseguir isso.

— Quer saber...? — pegou um livro, atirando-o com força contra a mais alta. — Eu não me importo mais...!

O projétil por pouco não atingiu, graças à visão obscurecida pelas lágrimas e sem mais esperar, correu sem rumo.

— Aonde você vai?! Espere...! — Isabella tentou chamar por ela, mas sem resposta. — Sério... Desta vez você foi longe demais, Olivia... Eu vou fazer questão de que a Emily saiba disso…

A terceira ignorou, orgulhosa, retornando ao seu diligente trabalho de organizar a imensa pilha de livros que não se arrumaria sozinha.

“Logo ela vai se arrepender disso.”

Agora, ela era a única pessoa no labirinto de livros, fazendo o que devia ser feito; nada muito complicado.

— Bobagem. Lidar com esse tipo de pessoa é nada mais do que uma grande bobagem.

Livro por livro, sentiu na pele a passagem dos minutos, arrancada de seu transe metódico de arrumar um livro após o outro somente quando o mundo externo se provou intenso demais para ignorar.

— Que cheiro estranho… Parece algo queimando…

Não se surpreenderia em nada se fosse apenas mais um baderneiro com a estúpida ideia de incendiar em uma lixeira.

E assim seria, se não fossem os gritos ao longe e os fortes zumbidos sem fonte aparente, a acompanharem o odor.

[...]

— Ei, espere por favor, Ava...! Vamos falar sobre isso...!

— Não tem nada para falar sobre, Isabella! Me deixa sozinha!

A perseguiu até um ponto mais profundo, ausente de pessoas. Não era como se ser escutada importasse, mas queria estar o mais longe possível de sua atormentadora.

A loira correu até chegar a um canto da parede com algumas estantes vazias, onde cada mobília se organizava em série com sua próxima, similar às peças de um jogo de dominó.

Por ser pequena, se encaixou no espaço entre duas delas com um pouco de esforço, impedindo-se de ser seguida pela de fios pretos.

— Por favor...! Saia daí e vamos conversar direito! Vamos corrigir isso…!

— Você sempre a protege...! Você nunca fica do meu lado...! Você não disse nada quando ela gritou comigo! Nada…! Você não é minha amiga, Isabella…! Se a Emily estivesse aqui, ela me entenderia...!

A garota que tentava ajudar mordeu seu lábio inferior. De fato, ela foi injusta por preferir não se envolver no conflito.

Os dias sem Emily só serviram para mostrar o quão necessária era para manter as três sob controle, o único verdadeiro pilar que as mantinham unidas e em relativa harmonia. 

Sem ela, toda a estrutura cederia e não havia coisa a se fazer.

“Ela saberia o que fazer… A Emily saberia o que dizer agora…”

Ao mesmo tempo que desejava ajudar, Isabella não queria criar mais discórdia não-intencionalmente. Por não ter os talentos de Emily com mediação, nenhuma de suas palavras soava certa.

— Por favor... Vamos sair e conversar, sim? Eu sei que... Eu sei que nós podemos resolver!

Duvidou de sua própria língua e proferiu palavras vazias. No fundo, não tinha a menor ideia de como agir.

— Só me deixa sozinha...! Vai ajudar ela e esquece que eu existo e sou um incômodo tão grande assim para vocês…!

Deixou seus olhos caírem, fechando-os em um único movimento firme. O que mais ela poderia fazer? O que dizer? Quais palavras usar? Como aliviar essa dor?

Ela não sabia; não sabia como fazer isso sem causar problemas, sem ser um peso para nenhuma das outras.

“Emily… O que eu faço…?”

Emily saberia o que dizer, como dizer, de qual maneira as palavras escapariam dos lábios e que tipo de mensagem elas passariam. 

“O que ela faria? O que ela diria…?”

Se culpou por não ser competente, por não ser ideal, por não ser alguém perfeito como quem tanto admirava.

“Eu queria ser ela…”

Nas profundezas de seu próprio desespero, falhou em captar a súbita mudança em seus arredores.

... Se abaixa...!

O tempo de reação foi quase insuficiente e antes mesmo de sua percepção processar as palavras recebidas, a súbita mudança na temperatura fez seus olhos saltarem.

Usando a força de cada fibra muscular, Ava a empurrou para trás, saindo de seu esconderijo apertado em um sobressalto.

— Você está bem?! Fala comigo! — acudia sua amiga, dando-lhe leves tapinhas na lateral do rosto para que mantivesse a consciência.

Aos poucos, abriu os olhos, tomando mais uma vez noção do que havia fora de si mesma.

— Eu...

— Minha nossa... Que bom... Que bom...! 

Isabella acordou com um profundo e caloroso abraço, talvez um pouco quente demais…

— A gente tem que fugir…!

Suas costas quase se incendiaram e ao olhar para trás, percebeu a fonte do estranho excesso de iluminação.

“— Como... Mas como isso aconteceu?!”

Um piscar de olhos, e todas as estantes, cheias de livros, eram consumidas por imensos pilares de chamas, devorando, viscerais, a cada pedaço de papel.

“Como todo esse fogo apareceu aqui em tão pouco tempo?!”

Os joelhos fraquejaram, assim como as mãos que se apoiavam em Ava, tomada pelo temor de uma cena escrita no inferno.

“Fogo… Fogo…! Fogo!

Um caldeirão alaranjado de labaredas cada vez mais densas ao se alimentarem da rica matéria inflamável, dando luz a um mar de caos.

O calor insuportável, dificuldade de respirar, gritos humanos de puro medo…

— Isso... Isso é...

Sem definição. Nada que conseguisse pensar descrevia o que via e quando tudo chegou a ponto de maior desesperança, ela ouviu uma voz.

— Acho que o trabalho aqui foi terminado... Tomara que isso sirva mesmo para alguma coisa…

Captou uma voz masculina, embora algo soasse errado a seu respeito.

“Abafada… É uma voz abafada…!”

Isabella reuniu toda a coragem para se esconder atrás de uma das estantes, arrastando consigo sua amiga.

— Perfeito. Acho que isso já deve ser suficiente. O fogo deve se espalhar sozinho agora... 

Uma figura solitária dançou em meio ao fogo, inafetado, mesmo ao andar entre ele, embora isso não fosse o mais impressionante.

“Mas o que foi aquilo...?”

A mais baixa tapava a boca de sua amiga. Qualquer pequeno grito iria chamar a atenção da figura, e isso era o que elas menos queriam.

“Mas como ele fez aquilo...? Ele criou fogo…”

Sua cabeça tremia, suplicando para que satisfizesse seus pulmões com uma respiração um pouco mais profunda, algo que não podia deixar ocorrer, ciente de que iria gritar assim que pudesse.

“Ele criou fogo do próprio braço...!”

No final, nenhuma medida adiantou. Suas pernas vacilaram demais e se desestabilizou. Essa fatal falha de seu plano foi o que trouxe a estante ao chão.

BAM!

O imenso estrondo da madeira rígida a colidir com o chão tomou o espaço naquele momento, criando um impulso de vento que estimulou as chamas e as fez dançar. 

Esse foi o prelúdio de seu fim.

— Huh? Então tem alguém aqui…

Ele se virou, revelando um rosto parcialmente coberto em chamas, que embora emanassem das várias camadas de roupas como se as estivesse queimando, não pareciam causar dano algum.

A reação dele foi um tanto intensa, surpreso com o fato de ter sido visto, mesmo com a face coberta por uma máscara de gás cinza e roupas pesadas, sem chance de ser identificado.

— Eh…

Ele hesitou, embora elas não tivessem como se importar, assombradas demais para reagir e fugir.

O mascarado murmurou algo, abafado demais pela máscara para ser interpretado e depois disso, ergueu seu braço direito, mostrando o assustador fenômeno.

Primeiro, surgiram faíscas semelhantes a fogos de artifício e logo, estas se condensaram, unindo-se em frações de segundo, crescendo em chamas reais e violentas, prontas para queimar carne e ossos.

O homem, ou melhor, a coisa deu passos na direção delas, brilhando em laranja trêmulo, perigoso e vivo.

— Parece que vocês duas viram demais… É uma pena — falou, erguendo as chamas para o alto em um movimento de seu braço.

O fogo se moldou na forma de uma esfera quase perfeita, do tamanho de uma bola de futebol. 

Em uma hesitante resignação, Isabella optou por usar o restante de suas energias para envolvê-la em seus braços, em um último gesto na forma de um tão incorreto pedido de desculpas.

E de modo quase solene e cerimonial, esperaram para que o martelo desse evento aleatório caísse sobre suas cabeças e para que a dor acabasse logo.

Isabella protegeu os olhos da amiga, impedindo-a de ver a aproximação do violento calor a lamber sua carne.



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