Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 91: Dor em Primeira Pessoa

Branco — infinito, vazio, torpe — o cúmulo do nada, sem chão, sem ar para respirar ou barulhos para ouvir, desprovido de existência a ponto de até mesmo a ausência não mais existir.

O oco existencial o fez entrar em pânico e, assombrado, tentou se mover, tomado de surpresa ao notar que sequer a ponta do último dedo foi capaz de vencer a resistência invisível.

O cenário não pertencia a ele, por mais que estivesse incluso ali. No momento, o papel assumido foi o de um mero observador.

E ele não teve como fazer nada, além de estremecer e sangrar, quando as primeiras perfurações foram escavadas sobre a pele.

De todas as direções, variedades incontáveis de objetos foram lançadas contra ele, cavando em profundidades variáveis, deixando marcas sangrentas, de gotas rubras flutuantes.

Lápis, canetas, tesouras, borrachas e tachinhas para prender informativos, combinadas em um desordenado esforço conjunto para massacrar cada fibra muscular e rendê-lo destroçado.

As coisas se acumulavam mais a cada segundo, arrancando pedaços conforme passavam raspando e o errando por pouco, fazendo-o desejar pelo fim. 

Em pouco tempo, não existia um centímetro de pele sem algo a lhe ferir a integridade.

— Guh… — Jacob Egan caiu de joelhos, admirando as mãos cobertas de sangue, sem dedos faltando ou pele queimada; uma pegadinha do destino.

Os próprios movimentos não pertenceram a ele, tampouco o barulho a lhe escapar a garganta. Confinado no próprio corpo, não gozava de qualquer autonomia, forçado a sofrer.

— Gkkk… Ghhak…!

Ajoelhou, e a vida, aos poucos, o deixou, derramando na forma da perda infinita do fluido da vida. Ele se viu mais pálido, se sentiu mais frio, e de último segundo, a boca se moveu e palavras saíram.

— Não foi minha culpa…

A visão dele escureceu, mostrando meros flashes de algo a se mover adiante, e em meio a isso, sua expressão preencheu-se de amargor.

— Não foi minha culpa se ela resolveu ser estúpida que nem todos os outros…! Todos eles são iguais!

Familiaridade de estranho calibre o tomou, mista de culpa. Era quase como se já houvesse passado por tal cenário antes, porém, sob uma ótica diferente. 

Havia divertimento naquelas memórias, um que não existia nessa, em particular.

— Eu vou só sair dessa cidade logo, afinal de contas! Não preciso ficar levando isso comigo! Eu… Eu…!

Foi uma mentira.

— É só eu não fazer de novo… É só não fazer acontecer de novo. Eu preciso parar com isso.

Uma desculpa, simples tentativa de justificar o comportamento como um erro trivial, algo que não deveria ter acontecido.

— Não era para ser tão sério… Não era para ter acontecido… isso.

Jacob mal podia ver, ameaçando fechar os olhos para não mais ver a luz. O pouco que via se mostrava insuficiente, impossível de avaliar as reais proporções da figura, agora tão próxima.

Tomar nota de seu estado arruinado o nauseou e ao passo que se abaixou para tocar-lhe na face, os arredores escureceram.

Jacob Egan morreu.

… … …

— …!

A primeira sensação ao retornar foi o intenso calor e logo sucedeu a segunda, na forma do veloz impulso nervoso da dor aguda a atingir-lhe no centro da face.

— Ainda tem muito mais que eu preciso te mostrar…!

O impacto reverberou pela bochecha, revirando o cérebro e o levando a lacrimejar. No mesmo momento, focou visão no par de luzes adiante, roxas, ocas, repletas de ódio.

E foi então que ele retornou para a realidade.

— … HAAAAAAGH…! — Ryan exclamou, brandindo os dentes sujos de sangue. — Eu me cansei de ser o fracote no meio dessa porra…!

A proclamação viveu seu sentido, quando o soco se mostrou forte o bastante para revirar o mundo do rapaz queimado, o lançando sólidos dois metros para trás.

— Eu sei que você não morreu ainda…!

Desorientado, não viu quando ou como aconteceu, mas a sombra de Ryan acompanhava algo muito maior, mantido por ele acima da altura da cabeça.

— …! — saltou, acumulando remanescentes da energia sonora restante.

— HAAAAAGH…! — Em meio à fumaça, somente o púrpura se destacava.

CRAAAAAACK!

A sombra de uma estante inteira cruzou a poucos centímetros do torso do Egan, cujas pernas paralisaram, diante o terrível barulho da madeira a lascar ao atingir o chão em cheio, adicionando às chamas.

— … E aqui vai mais uma…!

Roxo o cobriu por cada lado ao perceber a perigosa aproximação dele, vinda de cima com um salto acrobático sobre outra estante.

Em linha reta, o chute de esquerda de Ryan veio em cheio em direção ao seu braço, improvisado de último segundo como defesa para o rosto; a defesa perfeita para algo tão imprudente.

Ele até já tinha um ataque com som, preparando especialmente para o segundo do contato, na intenção de estourar aquele tornozelo de uma vez por todas.

— …?! — O problema, porém, não foi o chute, mas o que veio com ele.

Antes que pudesse reagir, um extremo impulso elétrico espalhou do braço ao cérebro no exato momento do contato, utilizando-se dos nervos para conduzi-lo a outro lugar.

… … …

— Huh?!

Outra vez, os eventos que vivia não dependiam de seu controle, prendendo-o como uma marionete no novo cenário: uma casa em ruínas, mergulhada em dançantes sombras sem fim.

A madeira de odor pútrido irritava o nariz ao ponto de quase fazê-lo sangrar e, não importava onde olhasse, sequer um foco substancial de luminosidade podia ser encontrado.

As portas, algumas abertas, outras quebradas, conduziam a quartos de trevas mais profundas.

As janelas, imóveis, chamavam por ele, clamando para que tentasse seu melhor para abri-las, iludindo-o com a promessa de luz e calor, zombando dele com seus contornos claros.

O chão rangeu, ameaçando cair e revelar mais do mesmo, e a todo tempo, a madeira dava luz a barulhos quase orgânicos, instilando avassaladora tensão.

— Uuuh…! — Trêmulo, ele caiu sentado, diante da principal novidade.

A porta no final do corredor o contou um segredo, suspirado no canto do ouvido, na forma de um toque frio e carrasco em torno dos ombros.

— Socorro…!

A escuridão se provou mais companheira do que jamais conceberia, emanando de qualquer lugar onde fosse possível ser gerada, o que, no contexto, se referia à construção inteira.

— Eu não quero morrer…!

Seu corpo, afogado em adrenalina, agarrou com a vida a janela à esquerda, fincando unhas e dedos, na expectativa de vencer os grandes pregos e tábuas a bloquearem a luminosidade.

— Não…!

Desespero de escala inimaginável o afogou internamente, o forçando a recrutar cada fibra de seu ser e derramar lágrimas pela piedade da coisa ali, no escuro, que não queria ou sequer podia compreendê-lo.

— Abre…! Abre logo…!

Ele foi fraco demais para vencer as barreiras.

— Me… solta…! — tentou espernear. — Me… larga…!

Dezenas de apêndices sombrios surgiram dos cantos mais isolados do corredor, se agarrando a qualquer parte visível, cavando fundo com as garras enormes e afiadas demais para serem normais.

— HAAAAAGH…! — Jacob gritou, passando pela sensação de ser dividido em vários pelas garras famintas.

Cada mão o puxava em uma direção diferente, brigando um cabo de guerra de forças iguais, onde não haveria um vencedor.

— Para…! Uuugh…! Para…!

E como tais, todas separaram um pedaço dele, dividindo-o membro por membro em uma experiência sensível até o fim.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAGH…!

Os gritos de pura agonia não seriam ouvidos, dado ninguém ter a coragem para dar um passo ali dentro. Disso, ele soube instintivamente.

Dor de categoria incomparável reverberou em turbilhão misto; cada músculo rasgado, tendão desinserido e osso desarticulado, sentido até o fim, quando o último rasgo de pele ocorreu.

Jacob Egan morreu.

… … …

— Essa é a sensação. — A voz de Ryan Savoia ecoou pela branquitude sem limites.

Duas figuras de características indiscerníveis se punham alguns metros à frente dele, o admirando de forma condescendente.

— É assim que as coisas foram para mim.

Os dois riam e zombavam de sua situação e, ajoelhado, Jacob podia fazer nada.

— Desde o meu primeiro dia aqui…

Pararam de rir e a figura à esquerda elevou a mão destra. De repente, o coração do guitarrista foi amassado dentro do peito, tornando impossível respirar.

— E agora, você tá vendo.

Rios de sangue o engasgaram, sendo vomitados sem parar, nunca suficientes. O escarlate vívido poluiu o chão branco, acumulando-se em um lago ao redor dele.

— Você tá vivendo isso.

Do sangue, surgiu uma faísca, que tão rápido se espalhou e formou uma labareda enorme, envolvendo-o no centro. Em agonia, a vítima do processo sequer podia gritar.

— Eu sei que você não se importa, mas eu quis te mostrar, de qualquer forma.

Não existia oxigênio para respirar, mas as chamas incendiaram e derretiam sua pele, sem se incomodarem com isso, e ondas de sofrimento perpétuo ascendiam, acumulando em topo das demais experiências.

Jacob queimou até os ossos, incapaz de movimento ou clamor, permanecendo, de algum modo, vivo do início ao fim. 

Ao longo dos vários minutos, teve a consciência multiplicada e fragmentada entre cada molécula separada do cálcio das partes rígidas, deixado para contemplar a loucura da exacerbação infinita daquele sofrimento.

Dor se acumulava ao topo de si mesma, criando pilhas exponencialmente maiores, e justo quando imaginou estar prestes a perder todo espírito para a insanidade de tal inferno, o ataque cessou.

Ele estava inteiro novamente, sem dores ou sinais de tortura, e logo em sua frente, se punha ela.

— Erm… É que eu preciso ir agora, ******... É urgente… Bons estudos para você, ****!

Temerosa, ela fugiu para longe, bem rápido, desaparecendo entre as estantes. Ele quis chamar por ela, clamar seu nome e professar o imenso amor a queimar-lhe o peito outra vez.

Mas, somente uma frase fria ecoou nos pensamentos.

“Bem, isso não é problema meu.”

… … …

— Você foi o motivo de ela ter ficado tão assustada naquele dia…

O Savoia o acertou com um sólido golpe no centro do rosto; junto a ele, vieram dolorosas memórias de um incêndio.

— Você foi a razão de todas aquelas mortes lá fora.

Desta vez, veio um chute, atingindo no centro do estômago, trazendo com ele as lembranças de carne perfurada e sangue jorrante.

— Por causa de você, eu vou ter que me justificar com a Emily e explicar para ela como uma das melhores amigas que tinha não tem mais cabeça…!

A voz do mais alto rachou em ódio, o levando a descontar à altura. Com um impulso, girou em torno do próprio eixo, acertando a cabeça de Jacob em cheio na estante arruinada.

— Ela me disse para me afastar de você… para manter uma distância… — Aos poucos, Ryan perdia segurança na pronúncia das palavras. — E eu ouvi ela… Na única vez em que NÃO era para eu ter ouvido…!

O segurou pelo pescoço, elevando alguns centímetros no ar com impossível facilidade, deixando-o ver o chão de novo, pouco tempo depois.

— Eu fui estúpido…

Um soco.

— Eu fui muito estúpido.

Quatro socos.

— Eu fui o rei dos estúpidos…!

Treze socos.

— Se eu tivesse me importado mais… Se eu tivesse pensado em como as coisas estavam mudando ao meu redor…!

Trinta e um socos.

— Então, eu…! Eu…!

Quarenta e nove socos. Ryan fechou o punho, expondo as bandagens sangrentas em torno da mão esquerda.

— … Então eu já teria dado um fim em você no instante em que me virou aquela cara feia.

A proclamação fria foi a última coisa ouvida por Jacob Egan.

[...]

“Eu… Não vai dar… para segurar…!”

No corredor solitário, a enfermeira puxava a atmosfera agressivamente, na tentativa de extrair algo dos gases, em sua maioria, tóxicos.

“Ryan… Não… Ryan… de novo não…”

Memórias de um evento distante voltaram à tona. Hannah Savoia já não tinha forças, porém, não podia se permitir deixar ocorrer novamente o mesmo evento de quase seis anos atrás.

“Não é forte o suficiente… As paredes vão romper…! Ryan… por favor, irmão…! Para…!”

Infelizmente, ele não podia ouví-la, e mesmo que magicamente pudesse, não viria a compreender a linguagem, dada ser um completo segredo.

A intensidade do evento arranhou o muro frágil e o danificou, e por mais que ela soubesse que isso aconteceria eventualmente, apenas preferiu não pensar muito na possibilidade.

“Ele ainda não tá pronto… Isso… não tem como ser bom…!”

E ali estava ela, fazendo um trabalho minúsculo, servindo como a única força a contrapor a quebra da dita barreira, comprando segundos de vantagem, enquanto rezava pelo sucesso da única alternativa.

“Ann… Por favor… Você tem que conseguir…!”

Ao fim da súplica interna, as dores de cabeça atingiram um novo auge, levando-a a se encolher no chão imundo, sugando ar pelos espaços entre os dentes.

Não existia margem para erro; uma questão de absoluto sucesso, ou…

"Eu nem quero pensar no que pode acontecer…"



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