Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 95: Rancor

— Essa raivinha egoísta…

PANG…!

O fulgor negro atravessou o espaço com afiação, sendo bloqueado a centímetros de causar dano mortal. Sorridente, ela apertou a arma com mais firmeza, antecipando o ataque vindo de trás.

— É a tua reação para tudo…!

DINK…!

O sorriso de dentes amarelados da mulher com o rosto repleto de cicatrizes não tinha planos de ceder tão cedo e sem nem mesmo vacilar um pouquinho, também bloqueou o forte chute.

— Nunca muda, Mark…! Tu nunca muda…!

Ele surgiu logo na frente dela e os dois se viram nos olhos um do outro, compartilhando o momento mais odioso de suas vidas, dentro de um instante tão breve.

— Até porque…!

O pálido punho fechado entrou em choque com a barra de metal do machado sangrento, expulsando o ar do entorno e levantando poeira.

A energia do impacto dispersou em todas as direções possíveis, de modo uniforme e afirmar de tal forma trouxe um perigoso detalhe adiante.

— … É sempre assim que acontece quando as coisas não vão da forma como você quer, seu pirralho mimado…!

O elo mais fraco receberia o baque mais forte e exatamente assim foi com o Menotte, mandado para longe enquanto forçado a assistir a forma com a qual ela sequer moveu um músculo.

— Sua desgraçada…

Em pleno ar, conseguiu balancear os vetores desordenados em ação sobre cada ponto de seu esqueleto. Inexpressivo, deslizou na madeira, erguendo-se em embate à vilã.

— De onde veio a porra desse sangue…? — A voz quase não saiu, a maioria perdida na imensidão da quadra. — Quem foi o arrombado que morreu para ti?!

O eco da súbita exclamação ampliou o já enorme sorriso de Samantha que, em resposta, brandiu a arma, um pouco à frente da própria face.

— Um filho da puta — disse, satisfeita com a simplicidade do próprio discurso. — Só mais um John aleatório que ninguém vai lembrar e que não vai fazer falta.

— REPETE ESSA MERDA PARA A GENTE VER UMA COISA…!

A loira reagiu em tempo hábil à aproximação, inclinando a cabeça para trás, em resposta ao chute ascendente. O fluxo aéreo resvalou-lhe o queixo, deixando-a escapar sem quaisquer marcas.

— COMO ASSIM?! — Ensandecido, o rapaz de fios negros conectou com um um giro em pivô do corpo. — TU MATOU ALGUÉM AGORINHA MESMO…! COMO DÁ PARA RIR DISSO?!

A Wilson habilmente se desvencilhou da tentativa de atingi-la no tronco e, atlética, respondeu com uma série de cambalhotas para trás.

— Ah, Mark… Por que eu continuo pedindo tanto de alguém do teu nível…?

Pousou como uma atleta olímpica, separada do outro jovem por, ao menos, uns dez metros; sob a luz do holofote natural, os fios em amarelo-pálido recaíram sobre o rosto.

— Você não pensa em porra nenhuma mesmo…

A raiva dele o ensurdecia, tapando os ouvidos e isolando-o de compreender as cada vez mais profundas rachaduras, no meio das palavras.

— Você não entende… MERDA NENHUMA…!

Princípios de umidade formaram bolsas nas laterais dos olhos pesados da mulher, quando as memórias daquele dia vieram à tona, voltando à superfície de forma tão vívida.

— Pensa que foi fácil… que é fácil… Pensa… que eu passei esse tempo todo me divertindo com isso…!

Ele não ouviu… e tudo bem, porque ela não esperava que o fizesse.

— E para piorar, ainda pensa…

Passos velozes se fizeram mais e mais agudos nas vizinhanças dela e, mesmo assim, não ergueu o olhar do ponto fixo no chão que selecionou para focar.

… QUE NÃO É O VILÃO DA HISTÓRIA…!

Impacto. Um novo universo surgiu em um instante, permeado por ressentimentos, dores e mágoas, de origens tão profundas e perdidas em si mesmas.

— Foi um ano, Mark…! A caceta de UM ANO INTEIRO, SENDO ODIADA POR TODO MUNDO…!

Ofensa ativa partiu de ambos os lados pela primeira vez. Brandindo o machado, a fugitiva da prisão rumou em direção ao causador de todos os seus problemas, exalando a negatividade acumulada por tanto tempo.

— HIIEAGH…! — acertou o chão com peso, mordendo os próprios dentes com força suficiente para levá-los à dor. — FOI UM ANO…! UM ANO PENSANDO SOBRE COMO NUNCA VÃO OLHAR PARA MIM DO MESMO JEITO…!

A fúria do momento levava os músculos à falha, movidos pela pura adrenalina trazida pelo sabor do próprio sangue. Ansiosa, lambeu os lábios, pois ali vinha outro ataque.

— Tu arruinou a minha vida…

O giro para trás revelou a figura obscura entre as sombras, a esvanecer. Diante de seus olhos, muros e paredes se ergueram, dando luz a um cenário conhecido.

— Tu me jogou para apodrecer naquela cela… fez todo mundo me olhar com aquela cara de nojo

Luz incidia de um ângulo anormal, entrando de jeito fraco pelos quadrados envidraçados. Ali dentro, bolsas e cadernos disputavam espaço com as cadeiras reviradas e desorganizadas.

— Nem mesmo aquela puta da minha mãe conseguia mais olhar na minha cara… Eu nunca pensei que logo ela ia mostrar aquele tanto de desprezo por mim, um dia…

A central de resfriamento do prédio foi desligada, deixando o ar parado, contaminado com aquele peso tão alienígena ao ambiente onde se esperaria fazer amizades e aprender.

— Tudo isso… Eu tive que passar por tudo isso…!

As notas no quadro, quase apagadas, falavam sobre os hemisférios da terra e sobre divisões geopolíticas. A guerra contra os russos foi o tópico quente e ela ainda lembrava dos debates, mesmo que nada interessada neles.

Afinal, como se esquecer daquela data?

— Tudo isso para ser condenada…

A presença na sala trouxe à tona a natureza artificial do cenário em questão, quando, de modo mágico, atravessou a parede naquele exato ponto.

— … Por um crime que eu não cometi…!

Uma janela aberta, precisamente, a segunda. Por que aquela janela tinha de estar aberta?

CRAAACK…!

“... Eh…?”

As vidraças se espatifaram e as cores vibrantes da sala perderam o brilho. O mundo ao redor se entregou ao preto e branco e a única cor veio do rubro em fuga, nascido do canto da boca.

Samantha Wilson foi atingida.

“Não vai acontecer desse jeito… Não vai ser assim…”

Cuspiu um dente, tornando à risada. De sua boca, a trilha de sangue escorreu até manchar o piso do lugar abandonado.

— Não vai acontecer do mesmo jeito…!

Algo passou a fluir em seu sangue, lhe chamando pelo nome. Era uma sensação estranha, mas que jamais deixou de ser boa; o grito do poder, tocando música para os ouvidos.

— E é por isso que eu não vou perder de novo…!

A energia abundante reforçou as estruturas, desde a ponta dos dedos, até o último fio de cabelo; esse é talento que lhe foi dado, às custas de tanta dor.

— Então vem para cima… e deixa eu te mostrar… justo o quanto você tomou de mim…!

PLAFT…!

— O que acontece, Mark… é que a minha determinação e a minha dor são bem maiores que as suas… — disse ela, neutra, tomando passos largos rumo ao encontro dele.

Bastou um soco para acabar com o combate e o quase desfalecido rapaz deslizou, cessado pela grande torção nas barras incrivelmente firmes que o contiveram.

— Eu acho que eu ganhei…! — Vitoriosa, Samantha o chutou no meio das costas.

— Guh…! Blergh…! — Ainda acordado, cuspiu sangue vivo.

— Ahahahaha…! — Sem esperar, apoiou o pé sobre o tórax, antes de pisá-lo com firmeza. — Eu esperei tanto por isso… Tanto…!

O abuso desenfreado perdurou. Com facilidade, a loira o virou para cima, pisando no canto das costelas esquerdas. Sem alternativas, o corpo reagiu em espasmo, se torcendo e revirando como desejado.

— Eu acredito que isso aqui tenha sido um presente, que nem uma galera aí costuma dizer… Existem uns males que vem para o bem, né?

— …! — quis gritar, mas nada além de sons molhados deixaram as cordas vocais.

— Ah, eu não sei dessas coisas, mas acho que…

Vibração agoniante reverberou pela caixa torácica e as rachaduras nas costelas deixaram de ser mera impressão.

— … As coisas sempre se consertam eventualmente…!

Ajoelhou e em um movimento rápido, sentou-se sobre o peito dele, mostrando-se de braços abertos.

— Não fui eu.

O soco firme distorceu sua bochecha esquerda e o fez sangrar pelo nariz. Sem energia, o Menotte não esboçou reação.

— Não fui eu…!

Do outro lado e, tão logo, passou a lacrimejar, também.

— Eu não matei ela… Eu não matei ela…!

Dois, três, quatro… Em pouco tempo, um padrão claro se estabeleceu.

Eu não empurrei ela…! 

O próximo era sempre um pouco mais fraco que seu antecessor.

— Eu não fiz aquilo… Eu não matei ela… Eu não matei, Mark…

Admirativa, a mulher de 21 anos, velha demais para se chamar de “estudante”, olhou para baixo, inexpressiva, tomando as proporções da realização daquela fantasia tão profunda, exposta em carne sangue.

Ficou quieta, ao ponto que até a saliva engolida pudesse ser escutada. No semblante, não se notava outra coisa, além de imensuráveis cansaço e estresse.

— Entendeu agora? O quanto você tomou de mim? — falou de jeito macio, sem raiva ou frustração, de um modo que ele nunca ouviu.

Soou frágil, quase feminina; uma taça de vidro repleta de rachaduras, pronta para cair em centenas de fragmentos, ao menor dos toques.

— Na tua vontadezinha de aparecer, levou as poucas coisas que eu tinha… As coisas que, mesmo imperfeitas, me davam motivo para tentar o amanhã.

Os olhos são o espelho da alma, e os dele reagiram prontamente à proclamação. Incapaz de reagir de outra maneira, assistiu, em antecipação, conforme ela erguia a mão direita.

— E porque você tomou tudo de mim, eu vou fazer questão de retribuir o favor.

Vários fios de cabelo cresciam da mão de Sam — não fios normais da pelagem, mas sim pelos longos e visíveis de verdade, mais condizentes com os presentes no escalpo.

E ele acompanhou, impaciente, ao movimento de um deles sob a pele dela.

O filamento locomoveu-se em serpentina, traçando um caminho definido, até a ponta do indicador. Ali, se acomodou em forma de agulha, sendo apontado rumo à testa do usuário de ilusões.

Existiam vinte deles, fora o mirado no centro de sua testa e, eriçadas, as linhas douradas dançavam com a fraca corrente de ar circulante.

Mark quis fazer careta, mas o dano em sua face inibiu os movimentos; afogado no próprio sangue, o máximo obtido foi mostrar um pouco dos dentes, cobertos de vermelho.

Era irônico demais, ser forçado a imaginar a situação sob outras lentes. Internamente, as duas linhas de raciocínio batalhavam entre si, cada uma tentando o melhor para se estabelecer como a verdade.

Não podia ser, afinal, ele a viu cair e nenhuma pessoa gritaria de tal forma em seus últimos segundos, senão por consequência de um ato deliberado e longe de qualquer planejado.

O simples ato de pensar a respeito o levou a engolir a saliva sanguinolenta para se acalmar e a elevação de seu corpo pelos braços dela redesenharam o fluxo das memórias, criando um novo  e inaceitável caminho.

Foi tudo um mero acidente? A frustração parecia real e a dor a lhe destroçar a carne, também… ao menos que estivesse alucinando, o que não julgava se tratar do caso.

“Sophia…”

O filete a penetrar a pele não causou qualquer dor, porém o mero impacto de relembrar o fez desejar ter o coração arrancado e destroçado, diante do terrível questionamento:

Estaria ele agindo de maneira incorreta e guiado por princípios errados por esse tempo inteiro?

— Isso vai ser o fim para você… — O olhar dela resplandeceu em azulado profundo, admirando-lhe por completo. — … e o novo começo para mim.

Um segundo passou e já pôde sentir as primeiras diferenças: as pontas dos dedos esfriaram, seguindo para as mãos e braços e, gradualmente, a visão escureceu, perdendo campo periférico.

“... naquele dia…”

Mas, em simultâneo, houve um calor incrível, e uma luz no fim do túnel cresceu sobre os olhos quase fechados. Devagar, a sensação o envolveu, arrancando-o para outro lugar: uma lembrança.

“... O que houve…?”

Tomado pela hipoglicemia, ele se entregou ao conjunto tão receptivo de circunstâncias, mergulhando profundamente nas águas das poucas horas que anteciparam a grande tragédia.



Comentários