Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 97: Reminiscência, Ato 2

“Eu vi. Eu sei que vi.”

Impaciência traumática corroía os nervos do adolescente pálido, incapaz de ficar tranquilo na cadeira, tão profundo nos próprios pensamentos a ponto de ignorar os arredores por inteiro.

“Na janela… Era ela na janela… Eu sei, eu sei…!”

Inquieto, batia os pés nas pernas do assento, trazendo aquele dia à superfície e prestando atenção em cada fragmento de segundo, conforme tocava, de novo e de novo, na superfície da mente.

“Sophia…”

Sentiu-se prestes a vomitar, no instante em que o replay atingiu o momento final. Desesperado, Mark cobriu o rosto devagar, para não chamar tanta atenção, e engoliu de volta a amargura da boca.

Bastou um segundo e o simples dia chato se tornou um dos piores de sua vida quando, em um piscar de olhos, aquela pessoa tão importante o deixou para sempre.

“Sophia… Me perdoa… Eu queria ter chegado antes… Eu juro que queria não ter me atrasado…”

Os óculos redondos, retorcidos e portando lentes quebradas… A muleta, coberta de sangue e daquela massa grotesca e fedida, esbranquiçada e mole como chiclete…

“... A culpa foi minha por ter te deixado sozinha… Me desculpa.”

E o olhar tempestuoso das esferas castanhas, refletido no fundo da alma ao vê-la, de forma que só Deus imaginaria o que se passou na mente dela quando o chão deixou de existir, apenas para voltar na hora errada.

“... Me desculpa por não ter conseguido te proteger dessa vez…”

As coisas seguiram o curso habitual para a maioria; a polícia chegou, ouviu alguns depoimentos seletos e foi embora, deixando para os socorristas o trabalho de dar o veredito: suicídio.

E tamanha mentira não podia ter vindo de pior fé. 

Mark se intrometeu, tentou apontar as evidências, mas não quiseram ouvi-lo e o fato dos demais estudantes terem medo demais para confirmar não serviu de ajuda.

“Aqueles malditos… Eu juro… que se algum dia, eu me encontrar com eles…!”

O silenciaram, pondo a culpa de sua histeria na proximidade que tinha da garota vitimada. Ninguém quis falar sobre o assunto no dia, só aceitando uma versão tão fajuta e conveniente, baixando as cabeças.

“Se foder… Vai todo mundo se foder…!”

Na cabeça dele, não fazia sentido, afinal, se tinham tanto medo assim de Samantha Wilson, a valentona da escola, então por que não entregá-la de bandeja para as autoridades e chamar de “belo dia”? 

Por que insistiram em protegê-la, mesmo quando ele elencou as evidências? E por que ninguém mais se colocou adiante para denunciar as terríveis brincadeiras de mau gosto daquela garota e sua trupe?

“... E ela vai se foder também… Eu vou foder com a vida daquela vadia… Eu juro que vou…”

Na plena raiva em curso pelas veias, Mark apertou a mesa da sala até as mãos ficarem mais pálidas ainda e em sua imensa dor — por dentro e por fora —, não teve como reagir bem à aproximação dela.

— Mark, a gente vai sair para almoçar… Tu… não quer vir com a gente?

Julie, a última pessoa que ele desejava ver no momento.

— Eh… A galera tá esperando, sabia? A gente sempre combinou de almoçar no mesmo horário e tals… e, olha só, já tá na hora de todo mundo se encontrar…! Ahahahaha!

Quando foi que esse sorriso começou a parecer tão plastificado?

— O Jenkins disse que conseguiu uma bola nova e que quica bem mais alto…! E pelo que eu soube, tá maluquinho para te vencer numa partida! Ele me pediu para perguntar se vai dar bom de você ir… Então, bora nessa?

A partir de que ponto essa atitude tão orgulhosa, mesquinha e zombadora se tornou tão aparente? Tão incômoda? Em que instante a falsidade por trás de cada expressão e palavra ficou tão expressa?

— Uh… Mark… Fala alguma coisa…!

Ele quase riu, deparado com aquele traço tão típico, distante da devida atenção por tanto tempo e que, agora, de olhos abertos para sua real natureza, não podia mais ignorar.

— Para com isso… — Ela estremeceu, pisando nos próprios pés, desconfortável. — Para de ficar agindo dessa forma…

Ele pôde até prever as próximas palavras que saíram daqueles lábios cobertos de gloss… Será que ela pensava mesmo que andar por aí coberta de pó na cara a fazia alguém mais apreciável?

Para de agir que nem um idiota deprimido, Mark…!

Mesmo ciente, as palavras cavaram um profundo buraco no coração do Menotte e no tempo do silêncio profundo de breves segundos, se questionou a razão de sequer ter considerado chamá-la de “amiga”.

— A gente já tá cansado disso, Mark…! Todo dia… Todos os dias, por um mês e meio…! A gente tá cansado de ficar aturando essa depressãozinha! Passa por cima dessa logo…! Ela morreu…! Morreu e não vai voltar…! Então só aceita…!

O perfume da garota poluiu a sala vazia com um terrível odor doce, feito na mais profunda amargura diante da real proporção de seus sentimentos e mesmo tão ensandecido, não se esforçou em calá-la.

— Uma semana…? Duas ou três…? A gente entende, Mark! A gente fez o nosso máximo para entender…! — apontou para ele, em lágrimas. — Mas já faz quase dois meses e tu ainda não virou a porra dessa página…! Patético! Totalmente patético, o jeito como tu tá agindo agora…!

Sem reação, e ali vinha o próximo passo, já antecipado, porque se há algo impossível de suportar no conceito dela, tal coisa é a falta de atenção dos outros.

— Olha para mim quando eu tô falando com você…!

Agarrou Mark pela gola do moletom, espalhando mais do nauseante odor químico proveniente dos cabelos ondulados, de brilho artificial, forçando uma encarada.

— Seu merda… Seu filho da puta do cacete… — estremecia ao aproximá-lo de si, chorando mais.

Os olhos carregados da menina foram de encontro com muralhas frias, de dureza apática, e isso a trouxe mais sofrimento.

— Acha que a gente não sofreu também? É isso…? Acha que a gente superou rápido demais, e que por isso tu tem o direito de nos olhar como se nem nos conhecesse mais…?

Não era esse o motivo e ela sabia disso.

— Olha só para como tu tá agindo… preso nessa de “ain, eu tenho que continuar sofrendo por ela”, sem se importar que tem gente no presente que precisa de você agora, Mark… Olha, a gente sofreu também… e ela era minha amiga também, então eu te entendo, mas…

A pura força de vontade necessária para se conter e não amassar aquele rostinho de boneca na primeira cadeira ao alcance foi imensurável.

— A vida continua, Mark… e eu sei que ela iria querer te ver seguindo em frente, assim como todos nós.

— Julie…

A reação por parte dele a animou; foi a primeira vez em que ouviu sua voz em alguns dias e, do fundo do peito, cogitou ser um bom começo.

Para tanto, ela secou as lágrimas, borrando o lápis de olho e abriu um sorriso para recebê-lo de volta.

— Tira essas suas mãos de vadia do meu casaco.

A revelação a esfaqueou no centro do peito.

— Eh…? — surpreendida, assumiu uma expressão de choque, assombrada ao vê-lo forçar distância ativamente.

— Eu disse…

As mãos dele foram cuidadosas em afastar as dela, mas os tremores coléricos indicaram o quão próximo estava de apertar forte demais e acabar deslocando ao menos um dedo.

— … para tirar essas suas mãos de puta imunda da minha roupa.

O cenho neutro do Menotte penetrou-a ao cerne com as balas vindas dos par de canos vazios. A encarada a minimizou, tornando-a ninguém dentro de um mero segundo.

— Mark…! Para…! Eu…! — A mão destra da moça teve um encontro violento com a madeira da mesa, quebrando duas das longas unhas postiças. — Ow…!

— Não me manda esse papinho de superar… não me manda passar por cima disso como se nada tivesse acontecido…

— Hkkk…! — Com a mão machucada e assombrada com a revelação, Julie tentou se afastar. — Mark… Não… Eu…! Por favor, para…!

— Não me fala para só desistir… Fecha a porra dessa boca, sua vagabunda…

— Mark…!

A tentativa de fuga atrapalhada a fez derrapar em um pedaço de papel e cair no chão.

— Mark…! Me… Me desculpa…! Eu… Eu não quis dizer isso… Eu…!

— NÃO VEM ME FALAR EM “ACEITAR AS COISAS E SEGUIR EM FRENTE” QUANDO VOCÊS TODOS TIVERAM MEDO DEMAIS PARA ADMITIR A VERDADE…!

Persegui-la nunca foi a intenção e a revelação veio quando o jovem passou diretamente pela esquerda de Julie, indo em direção à porta e a abrindo.

— Eu contei o que eu vi, falei o que eu sabia, mas na hora da verdade, nenhum dos meus “amigos” me apoiou nessa… Hah! Que amizades essas que eu construí, viu…!

No fim das contas, a coisa que mais o preencheu de desgosto foi vê-los mentir na cara dura sobre o bullying sofrido por Sophia.

— Vocês sabiam do que ela passava, sabiam o que ela sofria e sabiam que ela jamais se mataria daquele jeito.

Como parte do mesmo grupo, compartilhar experiências compunha parte da dinâmica, e em todo momento, cada um deles se mostrou simpático às dores por ela vividas.

— Mas na hora da verdade? De serem os amigos que diziam ser?! Escolheram fazer porra nenhuma…! Ficaram calados, com medinho de entregar a arrombada da Samantha e se livrar do problema…! Isso tudo foi medinho de apanhar?! E ainda se acha no direito de dizer que eu tô errado por ter feito a coisa certa?! Ah, me poupe, Julie…!

Tamanho desprezo não podia ser chamado de “amizade”, e antes de enfim sair, decidiu ser a hora de iniciar um novo capítulo.

— Faz um favor e passa uma última mensagem para a galera: fala que eu mandei eles irem tomar no cu e que nunca mais quero ver a cara de nenhum, e eu acho que nem preciso dizer que isso vale para você também, lixo maquiado. Faz essa boca aí ser útil e vai mamar o Bobby Dilan; consola ele por mim, porque imagina só: a garotinha que ele gostava cometeu “suicídio”...! — ironizou, fazendo aspas com as mãos.

BAM! O eco da porta ressoou por todo o segundo piso.

… … …

“Tem mais uma coisa que eu preciso fazer.”

Cruzou os corredores vazios sem hesitação, com passos decididos. Pelo caminho, ignorou as saudações e acenos dos professores e alunos, até se ver envolto na luz solar da área de convivência.

“Eu vou tentar de novo… e de novo… e de novo… até ela me ouvir.”

Desviou dos olhares e chamados para jogar uma partida, suprimindo a náusea ao tocar os pés naquele pedaço de verde.

“É a minha única chance.”

Gravetos e folhas secas padeceram diante dos impactos firmes de cada pisada, tendo fins barulhentos demais para uma zona tão calma.

“Enfim.”

Os sapatos tocaram pedra novamente e, como antecipado, ali estava ela.

— Hey.

A encarada trocada agora foi a mesma de tantos outros dias passados. O evento de vê-la perdeu a graça, negativa após negativa, mas depois de hoje…

— Sabe da minha resposta, não sabe? — rebateu, sem precisar ouvir a pergunta. — Então só me deixa em paz.

… não podia se dar ao luxo de ir embora tão insatisfeito.

Logo, tomou uma medida desesperada, final e mais humilhante: diante dela, desistiu de todo seu ego.

— Por favor…

Se prostrou, tocando a testa no chão sujo com resto de folhas. Rendido, derramou corpo e alma, mente e coração.

— Você é a única com a qual eu posso contar e por isso… eu te imploro.

Sob os pés daquela estranha, derramou até o mais mísero fragmento de si mesmo.

— Eu te imploro… Você foi a única testemunha, a única outra pessoa que viu e… a única que sabe do que eu tô falando… Eu literalmente só posso contar com você.

O silêncio o congelou por dentro. Não podia ver, mas tinha a certeza dela o estar analisando, sempre de todos os ângulos, com aqueles buracos negros inexpressivos.

— E eu faço qualquer coisa… qualquer coisa por você e tudo o que você quiser, seja um crime ou sei lá… Eu já não tô nem mais ligando…

Dia após dia, ele a procurou incessantemente por salas e corredores, implorando e importunando no meio de tanta gente.

— Se me ajudar com isso, eu te dou até a minha vida… Mas eu preciso… preciso de você… Eu preciso de você.

Tamanha determinação não podia se originar de qualquer causa um pouco mais vã.

— E eu te prometo… que essa vai ser a única coisa que eu vou pedir de você, na minha vida…! Só… por favor… só dessa vez…!

Permaneceu assim por vários segundos, praticamente imóvel, a não contar os tremores chorosos interrompendo o silêncio e as leis de um novo modelo temporal, onde cada sopro carregava o peso de dias.

A musculatura no centro das costas até começaria a doer, senão interrompida antes de tal ponto.

— Hunf… Só se levanta logo dessa posição vergonhosa de uma vez. Isso chama atenção demais… você chama atenção demais.

Ânimo fervente borbulhou no peito pela primeira vez em diversos dias e, ansioso, seus olhos encontraram os dela, arregalados.

— Então isso quer dizer que…!

— É, é…! — balançou a mão na frente do rosto. — Eu sirvo de testemunha, te ajudo no seu esquema investigativo e corroboro com a sua versão, agora, só vê se não fica me perseguindo pelos corredores… Não quero gente olhando para mim.

Estranha luz o aqueceu por dentro, satisfeito com o egoísmo da estranha, dado o realismo de seus motivos.

“Eu incomodei tanto, mas tanto, que ela concordou em ajudar só para se livrar de mim…” Sem ironia, sorriu pois, ao menos, ela não era como eles.

— … Hey… Hey! Você tá ouvindo?! Hey…!

Sem hesitar, plantou um tapa no rosto de Mark, arrancando-o da reflexão.

— Ow…! Qual foi a necessidade disso…?!

— Vamos para um lugar melhor e lá você me conta qual o plano — cruzou os braços, em desgosto. — Quer outro desses, por acaso?

Prontamente, se pôs de pé.

— Soldado Mark se apresentando ao serviço…! — brincalhão, a saudou. — À suas ordens!

— Ugh… Idiota…

Os dois começaram a traçar o caminho de volta para a escola, com a garota indo na frente. Detrás, Mark não pôde deixar de notar o grande amontoado castanho, pendente num rabo-de-cavalo.

— E que fique clara uma coisa: não vá espalhando por aí que somos amigos ou nada assim, entendido?

Os movimentos a favor do vento a formarem um pêndulo perfeito, valorizando sua forma esbelta e delicada…

— Eu disse… Entendido?!

De volta à realidade.

— Ah, de boa…! Eu não vou sair contando para ninguém, então não precisa ficar pensando nisso.

— Bom — O semblante relaxou ao suspirar. — Com isso fora do caminho, vamos para a biblioteca. Você arruinou o meu lugar, então vamos ter que ir para outro que as pessoas não frequentem a essa hora.

— Eh… Foi mal…

— Agora que o estrago já foi feito, não adianta reclamar… — pausou. — Lira Suzuki. É o meu nome. Já sei o seu, então nem se incomode.

“Lira Suzuki, né?”

O grande alívio de tantas amarras cortadas o libertou da profunda melancolia, munindo-o das armas para seguir em frente e ciente do quanto finalizar tal missão sozinho seria um porre sem igual, não escondia a imensa gratidão de tê-la ao lado.

— Heheheheh…

— Do que ri tanto?

— “Lira Suzuki”… Achei o nome legal… … … Ow…! Pelo menos bate do outro lado…!

— Idiota.



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