Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 116: Distorção

— Eu prometi…

Força transmitida pelos tendões rígidos da mão canhota expulsaram o fragmento de vidro fincado no dedo médio, propelido contra o chão com um eco tão pequeno e ensurdecedor.

—… Que jamais ia deixar ninguém passar por cima de mim, entendeu…? 

A atmosfera em torno de Mark Menotte se alterou para o reflexo das intenções em seu coração, ao mostrar em figura total a apoteose atingida na real compreensão de seus motivos.

— Eu perdi para ela e feio. Isso eu vou admitir.

“Huh?!” Diante dela, as luzes renderam espaço à escuridão plena.

— Mas depois daquilo…

A voz vinda de trás, por mais que já antecipada, a congelou ao tomá-la com seu tom diversas vezes mais sinistro e não seria mentira admitir o fato sobre a mudança de passo no combate.

O inimigo combatido por ela não se tratava mais de um mero humano.

— … Não vai rolar uma segunda vez.

A lâmina metálica brilhante em seu próprio tom desceu sem piedade, arranhando a lateral do braço direito da mulher de reação retardada.

— Urgh…! — Melissa pulou, rolando no chão em um misto de adrenalina e intensa dor.

O sangramento depressa consumiu o tecido negro das vestes formais, levando-a a um pensamento único, assim que a iluminação, de alguma forma, voltou.

“Eu preciso da minha arma…!”

Lutar desarmada contra algo tão louco estaria fora de cogitação e o instante de relativa diversão com o “mero adolescente um pouco peculiar demais” logo se viu transformado em um terrível pesadelo.

“... Droga, ele tinha razão…!”, pensou, amargando à própria concepção do contexto. “Era para ter levado isso mais à sério…”

Em inúmeros momentos a chance de executá-lo de vez surgiu, e embora a recomendação fosse para não matar o alvo, fazê-lo em casos extremos escapava de tal sugestão.

“Devia ter sido mais cautelosa… Claro que ele também não iria querer mostrar o naipe inteiro logo de cara…!”

No gesto mais desesperado de seu dia, a mulher de cabeleira negra deixou seu esconderijo abaixo da estante caída de salgadinhos, forçada a trocar novos olhares com o monstro no corredor de bebidas.

“Vou ter que dar um jeito nisso, e logo…

Puxou do bolso um pequeno spray, juntamente de um par de pílulas que logo tomou, secas. De forma prática, seguiu o treinamento, aplicando o composto na pequena lata por cima da roupa.

— … Foi só um cortezinho superficial…! — anunciou, na tentativa de repassar alguma confiança. — Vem para cima…! Se tu tá quente, eu ainda tô fervendo…!

Em questão de segundos, a torturante dor em pontadas cedeu ao nada e a ação do composto no spray passou a conter a hemorragia, exemplos da tecnologia de ponta disponível aos agentes.

Agora, necessitaria de calcular cada movimento melhor do que nunca.

— Eu sei que são só ilusões, e assim como você disse, eu também não vou deixar acontecer de novo.

Rasgou o único botão fechado do terno, revelando um par de facas de combate nos bolsos internos das vestes modificadas.

— Se quiser fazer disso uma briga de facas, então que seja…! Cai para dentro, moleque!

As palavras de Melissa soaram corajosas, mas, por dentro, somente a própria tinha noção do profundo terror gerado ao fitar os brilhantes olhos vermelhos do jovem estacionário.

O modo como a encarava de longe, sem fazer ou dizer nada… a forma com a qual optou por escutá-la, até terminar…

Exibia a mais profunda noção de superioridade.

“Aí vem ele…”, pensou, ao elevar as facas à altura do rosto. “Vai ser um outro ataque por trás? Será que ele vai jogar alguma coisa…? A faca, talvez?”

Luzes apagadas e o breu mais extremo a deixou sozinha com os próprios pensamentos, embora, não por tempo demais.

— Depois que eu acordei naquela quadra, todo quebrado, mas de algum jeito ainda com a minha vida…

A lâmina desceu rumo ao topo de sua cabeça, interceptada de último instante graças a ter notado o flash vermelho no centro do nada.

— … Ugh…! – trancou os dentes, se obrigando ao limite para cessá-lo com as próprias lâminas.

Ambas as facas de combate se provaram quase insuficientes para contê-lo, o contato explodindo em faíscas cintilantes o bastante para que o visse de rosto inteiro.

— … Foi quando eu entendi o motivo verdadeiro de eu estar fazendo isso…

A face de um predador, pronto para devorar a frágil criatura com a tamanha pachorra de se colocar em seu caminho.

— … E nunca foi tão nobre quanto imaginava ser.

O cintilar rubro outra vez desapareceu como fumaça e junto dele, a faca em mãos cedeu como uma gota de chuva, roubando milissegundos preciosos de sua atenção.

— Porque isso aqui, essa merda que tanto eu quanto você vivemos…

Luz vermelha surgiu de frente, em conflito direto com as lentes de tecnologia inutilizada, a penetrar fundo no cerne da alma da agente, cuja experiência se julgava excessiva.

— … É egoísmo puro.

A voz dele soou distante dos lábios imóveis, conversando de dentro da cabeça da moça que, incapaz de reagir em tempo hábil, “respondeu” em pensamento.

“... Ah, merda…”

O grito das tripas submetidas ao impacto do chute no centro do estômago roubou-lhe a consciência por um piscar de olhos, privando-a da experiência de voar no ar por alguns poucos metros, colidindo.

CRASH! — produtos variados desabaram da estante metálica, no exato instante do retorno da mente plena da moça.

— Vocês, lixos, podem se enganar e mentir para os outros, dizendo que o motivo de lutarem é para proteger ou o caralho a quatro, mas a gente sabe que é mentira. Eu nem precisava te falar isso, já que tu deve conhecer o sistema ainda melhor do que eu.

— Ghh… Gaaahk…! — tentou falar, interrompida pela profunda dor a emanar de cada canto do abdômen.

Se obrigou ao movimento, exigindo de si e do rigoroso treinamento uma resposta que não viria. A única coisa a sair dela era sangue pela boca ao tossir e os músculos, espasmódicos, desistiram.

A combinação dos fatores gerava ineficácia — a pior coisa em tal ramo de ocupação — e com isso, a opção restante, de assistí-lo se aproximar, talvez devagar demais, foi a coisa a sobrar.

E tal qual um leão a predar uma gazela ferida, o desprezo odioso em seu olhar cavou-a de dentro para fora.

— A minha meta é ficar acima de todos vocês, filhos da puta, que não sabem resolver porra nenhuma — parou, admirando-a inexpressivo. — E se para pular são precisas pernas e para falar é necessário ter uma boca…

A frieza do semblante pálido e coberto de cortes deu lugar a um sorriso impossivelmente macabro.

— Para se ter autoridade sobre alguma coisa e fazer mudanças significativas nesse mundo, o requisito é ter poder.

Colidiu as duas mãos em palmas e o eco amplificado pelos poderes se propagou na forma de pequenos terremotos.

— Então, deixa eu te mostrar uma coisinha a respeito disso, só não para não ficar feio e deixar só na palavra, né!

Os tons de rubro emitidos pelas íris se elevaram ao máximo e os efeitos depressa se viram, sentiram e viveram por cada célula do corpo de Melissa.

— É o meu máximo…! — disse ele, sorridente. — Ou ao menos, é o máximo que eu consigo atingir até agora!

Piscou e, de repente, o tecido da realidade passou a se tornar mais fino.

“O que é isso…?”

Quis pensar se tratar de outra ilusão e, aplicada à lógica, o fenômeno em questão não passaria disso.

“O que é isso que tá se instalando em mim…?!”

Porém, dadas as miríades de coisas indescritíveis a ocorrerem consigo, questionar se tornou o padrão.

O processo iniciou com o chão e as paredes, dobrados, rasgados em milhões de pedaços, virando cinzas ao vento e reduzidos ao nada.

O turbilhão de ar a arrancava a pele da face, levada embora no olho do furacão, e junto dela, se iam seus cabelos, unhas e ossos.

O sangue fervia, ebulido e condensado de volta, confinado no receptáculo inexistente de sua alma, dentro e fora do sistema, e em nenhum deles, também.

Gravidade vinha de cima, de baixo, da esquerda e de qualquer canto, torcendo, comprimindo, enrolando e esfolando os resíduos de nervos queimados pela nuvem de insetos invisíveis a devorá-la.

Olhos presos viram sabores, a boca degustou números e o ouvido escutou do espectro de cores; sensações mistas em uma e divididas ao infinito, separadas e mescladas em diferentes universos.

Quebrar, remontar; desmontar, reparar; espatifar, grudar de volta — ciclo infinito, de coisas nunca iguais a antes —, num intervalo de tempo dilatado, milênios em segundos.

A existência, fora do real, corria depressa demais, até que, de repente, parou.

— Mente criativa, essa minha… Próxima vez… vai ser mais do que isso…

Quando enfim parou, ela permaneceu presa no vórtex de paradoxos, contemplando maravilhas impossíveis pelas lentes da mente limitada de um mero humano.

E ao enfim cruzar os mares da insanidade e ressurgir no que não mais acreditava ser a realidade, a primeira coisa a recebê-la foi a dor da facada no ombro esquerdo.

— … Eu errei…

O viu puxar, trêmulo e cansado, jorrando o próprio vermelho dos olhos já não mais brilhantes.

— … Não vai se repetir…

Tentou de novo. Determinado, o rapaz levantou o metal iridescente acima da cabeça.

— … Eu… não vou… errar…

A força das pernas faltou e, em consequência, escorregou. A faca caiu, mas, logo ele a retomou de novo.

— Nada… Nada vai… me parar…

Esfaqueou — duas, três vezes — arrancando fontes vivas da coxa esquerda de Melissa, somando mais dor ao caos fora de seu controle.

O choque de adrenalina deu luz a um reflexo e com a outra perna, o chutou no centro do rosto.

— Eugh…! — Apoiada nos dois braços, Melissa vomitou.

O oceano de sangue pútrido e escuro refletiu sua face, a permitindo se dar conta, enfim, da verdade sobre estar de volta.

“Ele…!”

De volta à ação e ao autocontrole, veio o súbito pico de energia, acompanhado da ordem para sua mais importante missão: sobreviver.

— Eu vou ficar por cima… desse sistema medíocre…!

Mark retornou com outra tentativa, desta vez bem mais certeira e se não pelo despertar dos últimos segundos, a ponta iria de encontro direto com o centro de seu peito.

— Ugh…! Ack…!

— Pode mandar quantos quiser…!

Ela segurava a faca com as mãos descobertas, lutando ao máximo para sobrepujar a força colossal do adolescente.

— Eu vou acabar com todo mundo…! A CIA, a KGB… seja lá quem for…! Não vou deixar ninguém na porra do meu caminho…!

O fio estampava cortes profundos em seus dedos e a atividade muscular ameaçava cessar a qualquer instante.

“Eu… preciso…!”, trancou dentes e olhos, espremendo os resquícios de si.

— … E eu vou consertar isso do jeito certo…! — Mark mencionou, jogando o peso por cima dos braços. — E vou resolver…!

A arma, em posição letal, escorreu entre o mar de sangue deixado para trás, fazendo o contato final com a carne da mulher e irrompendo, impiedosamente, até seu centro.

— … Eu avisei… Eu avisei…!

Cambaleou, até enfim se ergueu se apoiado na prateleira, passou a se guiar com a fraca visão turva.

— Ahahaha… Eu… eu fiz de novo… Eu atingi…

A falta de energia quase levou a uma nova queda.

— … Eu cheguei no meu máximo… de novo…!

A sensação vivida na quadra arruinada, de abraçar a escuridão interior e crescer, criou uma experiência inesquecível.

— … Só espera, Sam…! Dessa vez, eu não perco…!

Liberdade como jamais vivera antes e que agora luta por atingir.

— Na próxima, eu…!

Próximo ao ouvido esquerdo, três pequenos cliques rápidos se perderam no ar e, ao fim destes, um choque.

— Já chega — disse a voz grave atrás dele, carregada de peso.

“...!”

Mark caiu, desmaiado pela potente descarga desferida pelo pequeno dispositivo rastreador colado no casaco.

… … …

— … Melissa…!

Gordon não vacilou mais um milésimo e tão logo os joelhos tocaram o chão, checou o pulso da colega, desesperado pelo que não sentia sob seus dedos.

— … Melissa…! Não pode morrer…!

Do corte da faca, o sutil, porém constante fio sangrento apontava o pior.

— Droga…! — revoltado, voltou-se para o teto, a gritar. — ALGUÉM…! APOIO REQUISITADO! APOIO REQUISITADO…!

E como esperado da atmosfera tão calma, ninguém veio.

[...]

“Mark… me responde… me responde…”

A tela do telefone servia de única fonte luminosa no quarto de cortinas fechadas.

“... Mark…”

TOC-TOC!

— Lira…? Ainda está aí? Me desculpe pelo que disse…! Sei que podia ter sido um pouco mais sutil… Mas, já fazem três dias que você quase não sai desse quarto…!

As batidas incessantes pouco significavam para o tumulto mental da garota de costas para a porta e o rosto, repleto de marcas de lágrimas secas, as via serem renovadas com frequência.

“... Isso é mentira… Só pode ser mentira…!”

— Lira… O seu pai está muito preocupado. Por favor, saia do quarto… Queremos te ver e ele quer falar com você. Por favor!

Receber a notícia a cortou tão fundo que sequer sabia como se sentir.

— Nós iremos te apoiar com qualquer coisa…! Só, por favor, abra a porta! Não é saudável ficar guardando esse tipo de coisa, seja lá o que for…! É por causa da escola? Ou de Elderlog? Pode nos contar! Eu sou sua amiga!

A voz do outro lado não carregava a menor noção quanto às barbaridades que dizia.

— … Huh…? Ah, certo…! Bem, eu posso tentar, mas…

As batidas pararam, e ao invés disso, o som soou de mais perto, colada na madeira.

— Lira, é coisa importante, de verdade. Por favor, abra essa porta.

A voz soou perto, como se soubesse, precisamente, em que parte da estrutura estava seu ouvido direito.

— Alguém quer falar com você urgentemente e parece que é sobre Elderlog.



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