Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 123: Requintes de Crueldade

— Aperta o cinto e se segura. A gente vai acelerar.

Do modo mais irônico, o manipulador de chamas sentiu a própria alma congelar ao fim da preocupante menção.

— Acelerar mais que isso?! Quer matar a gente?! — sentiu o coração quase pular para fora da boca. — E aliás, onde é que a gente tá indo nessa velocidade?! Vem cá, ‘cê tem permissão para dirigir?!

Focada na estrada, Ann conduzia em velocidades criminosas, assustando vários pedestres no centro da grande Oak Street.

— Isso é irrelevante — respondeu, girando o volante com gestos bruscos. — A gente não morreu ainda, então não tem motivo para se preocupar.

O desespero dos transeuntes enfim pôde ceder, quando o veículo tomou uma via de fluxo mais baixo, que os conduziria para o meio do bosque.

— Ok, agora dá para conversar melhor — desacelerou. — A gente precisa discutir umas coisinhas.

— Aquilo foi mesmo necessário?! — Steve exclamou, indignado. — A gente podia ter matado aquela senhorinha, ali, no meio da rua…! E agora me vem mostrando que sabe dirigir normalmente?!

— Hunf… Tá, tá bom! — Ann bufou, liberando estresse. — É que eu quis escapar da fiscalização, entendeu? Se aqueles agentes pedissem para a gente parar, eu não ia ter o que dizer.

— Então você não tem carteira, pegou o carro de alguém e tá fazendo cavalo-de-pau com ele pelas ruas?!

— Não é o carro de “alguém”! É o carro do meu pai…! E em segundo lugar, o que acha melhor? A chance de ser preso ou a garantia de ser preso?! Pensa, Steve! Pensa!

As residências se tornavam mais esparsas conforme cortavam a rua de concreto, revelando mais árvores e vida selvagem, e passados vários segundos de silêncio, ele foi o primeiro a falar.

— Tá, foi mal… É que eu só queria que você tivesse sido um pouquinho mais sutil quanto a isso, tipo, você me deixou um número, não mandou mais de uma mensagem, que, por sinal, não dizia nada de específico, e do nada me aparece com… isso…! Entende? Eu não ‘tava preparado!

Dentro do carro, movidos pelo balanço leve da estrada, um louva-deus verde balançava os braços, em pose de combate, admirado pelas constantes mudanças de estabilidade e vibração.

— É… eu errei também… Admito.

O agarro no volante ficou mais intenso, ao ponto dos dedos trêmulos da garota quase afundarem a borracha.

— É que tem tanta coisa acontecendo que nem eu me planejei direito.

Mesmo não soando como tal, o Evans pôde sentir a real intenção na justificativa de quinta categoria para um pedido de desculpas.

— Como assim?

Ela queria a devida atenção à operação que estariam prestes a desempenhar e se isso significasse receber algumas boas respostas e enfim abandonar a tempestade da ignorância, a entreteria.

— Tá por dentro do que tá rolando na cidade, né? Quer dizer, todo mundo tá… — focou na estrada, fixa no caminho. — Esse monte de gente aí e tudo mais.

— É, eu tô sim. Os caras fecharam tudo e estão fazendo rondas de hora em hora pelos quarteirões… Obviamente tem quem não goste, mas, pelo menos, o crime caiu.

— Exatamente. Isso aí o que geral já sabe, mas tem uma parcela que ninguém conta para ninguém.

Tomou o caminho para a esquerda, girando o eixo do veículo de modo bruto. Como um ninja, o inseto próximo do retrovisor se reajustou com perfeição, sequer movido pela súbita rotação.

— … É que eles conseguiram; pegaram o Mark faz quase uma semana.

Ao longe, as estruturas de madeira da ponte sobre o Rio Attwood se ergueram e o fino barulho da corrente ecoou mais alto.

— O… Mark…? Quer dizer… Aquele Mark? Cabelo preto, pálido…

— E que outro Mark a gente tem? — retrucou, despreocupada se soou rude. — Ele mesmo, o próprio, o exibidinho que precisa ficar amaciando o próprio ego a cada cinco minutos ou tem um surto.

As tábuas pouco fixas abaixo dos pneus geravam a impressão de queda iminente. Com as chuvas, ambos nível e intensidade da correnteza subiram consideravelmente.

— A gente nunca interagiu, mas… Uhh…! — Assombrado com o comportamento da ponte, Steve vacilou. — Ele… parece ser legal o suficiente e… Arrh!

Cair dali de cima resultaria em quase vinte metros de pura agonia, antes de atingir um leito de profundidade desconhecida, com chance quase nula de sair sem ao menos um ferimento grave.

E o fato de precisarem passar tão devagar inspirava ainda mais terror no coração do Evans.

— Para ser bem honesta, eu nunca fui com aquele cara. O jeito como ele age me irrita, querendo ser o holofote o tempo todo, mesmo quando tá errado e sem mencionar que, no caso de estar, ele nunca vai assumir a culpa. É um engomadinho.

Ao contrário dele, Ann não demonstrava a menor preocupação com os cliques da madeira velha e, se tivesse — e pudesse — que afirmar, diria ver certa paixão imbuída no ato de reclamar.

Nunca aprovei o jeito de ser dele e nunca vou, mas se tem uma coisa inegável, é que ele é o mais forte entre todos nós, e sendo mais honesta ainda, tinha alguma esperança que ele pudesse bater de frente com o cara dos envelopes…

Deixar a ponte deveria trazer alívio imediato, porém, com a introdução do novo tópico, outro tipo de medo, tão horrível quanto, se instalou no fundo do peito.

— … Errei em pensar desse jeito. No fim, aquele desgraçado continua solto. Foi por isso que eu precisei te chamar para dentro do carro, Steve… Ele não pode nos ouvir ou ver aqui.

— … Como… Como pode ter certeza disso…? — perguntou, temeroso.

Ann deu outra curva, dessa vez para a direita, os levando ao meio do nada, onde a única coisa além de árvores eram outras plantas menores em grandes extensões de terra.

— Eu não tenho certeza.

Estar ali evocava profunda solidão; um mundo inteiro, vazio, nascido da opressiva sensação de não saber o que esperar do próximo passo.

— Vamos sair — disse, desengatando a marcha e puxando a chave. — Tenho uma suspeita e nem fodendo eu ia vir aqui sozinha… Não com aquele monstro aí por fora.

— … Então… me trouxe aqui só para não ficar sozinha…?

“Decepcionado” passava longe de ser a palavra certa, mas o adolescente incandescente, sim, sentiu-se um pouco abalado com a perspectiva de servir como mero objeto de conforto emocional.

— Não exatamente — respondeu Ann, em preparação para se justificar. — Ter essa conversa contigo fazia parte do plano; ia ser um ponto necessário cedo ou tarde e, além do mais, foi o primeiro com quem eu pude entrar em contato.

A ausência dos roncos barulhentos do motor abriu um vácuo sensitivo no espaço aberto, preenchido pelo profundo silêncio morto.

— Entendi…! Então ‘cê pensou em tudo mesmo…!

Como esperado, a menina ignorou a tentativa consequencial de bajulação, chamando o louva-deus para fora, a ocupar espaço sobre o ombro esquerdo.

— A gente vai entrar — apontou. — É dali que tá vindo.

Sem dar mais explicações, ela depressa acelerou a passada em direção à zona mais profunda do bosque.

— Ei…! Espera aí…! Para onde a gente tá indo?!

Antes de sequer notar direito, ela já havia pulado um tronco caído, podre por conta das chuvas.

— Pula aí também… ou destrói. ‘Cê quem sabe.

— Calma aí…!

Saltar um pedaço de madeira se mostrou mais difícil do que pensou, mas, ao fim de muito esforço, lá estava ele, de cara com a floresta de humores frígidos e caráter aterrorizante.

— Espera… isso… — anunciou, surpreso pelo que conseguia sentir ali dentro.

— Já percebeu, né? — Ann virou para trás, o encarando. — É disso que a gente veio atrás.

Galhos e folhas secas partiam sob os passos firmes, em meio ao universo escuro das copas com aparência morta, esticando os troncos ramificados, em formato de garras.

Ali dentro, o sol parecia ter medo de entrar e os ventos espalhavam os restos descartados, propagando longe a mensagem do quão erradas eram as circunstâncias.

A única coisa em destaque verdadeiro no cenário horroroso se moldava no ar como uma incômoda nuvem, entrando ocasionalmente em narinas e ouvidos, tornando o tráfego difícil.

— Steve, sabia que as moscas se comunicam entre si?

A parada brusca da portadora de marias-chiquinhas trouxe máxima atenção à sua figura. No centro, sob uma pedra branca, a tempestade de moscas se acumulava em seu entorno.

— Acabei de te mostrar isso agora. Essas moscas todas não vêm do mesmo lugar; elas se comunicam por meio de um sinal químico ou feromônio, sendo um pouquinho mais técnica.

A grande massa de insetos barulhentos cresceu a ponto de evoluir em algo ensurdecedor, e a grande bola preta no ar, formada literalmente do nada, rodeava e crescia em torno de si própria.

— Fazem isso quando querem procriar… a função de qualquer animal nessa terra, e eu sei que você sabe do que elas precisam para completar o processo. 

A massa se dispersou, explodida nas mais várias direções, mandada para longe em velocidade recorde. Diante do evento, Steve cobriu depressa o rosto com o tecido da camisa, por medo de engolir alguma.

— Uhhk…! Elas…! Elas ‘tão quase me perfurando…! — gelou em agonia ao perceber os pequenos e numerosos ricochetes contra seus braços.

Atiradas como balas pelo comando mental, não voltariam por um bom tempo, distraídas com o fato de terem sido expulsas por algo fora de seu controle.

Estando os insetos longe, Ann desceu da pedra em um pulo e sem contar um segundo a mais, travou olhos com a fonte do acúmulo dos diminutos decompositores.

— As moscas do outro lado da cidade captaram o chamado das que estavam aqui. Não responderam por causa da distância, mas ficaram inquietas demais.

O odor pútrido ascendia em intensidade e vigor a cada passo, adquirindo notas azedas, quase a queimar a esclera dos olhos, a ponto de que focar direto lá embaixo ficava quase impossível.

— Alguém sabia da crueldade que queria empregar quando lançou essa.

E antes fosse impossível, pois tão logo o Evans caminhou o último passo em rumo ao raso desfiladeiro no solo, os conteúdos de seu estômago foram impacientes em protestar.

— … Bluergh…!

Ele tentou cobrir a boca de último segundo, ação essa que só resultou em ter a mão besuntada de vômito azedo.

— Haaah… Haaah… — refletiu, entre respirações ríspidas, na tragédia que já se passou. — … A escola…

Ser forçado a assistir outra vez o acertou de modo cruel e apoiado nos próprios joelhos, continuou a balbuciar, conforme sua mente era invadida pelas cenas de sangue e morte.

— Todo mundo… morto… Todo… mundo…

Esteve pondo uma máscara de gente forte, porém os pesadelos vinham toda noite.

— Mortos… … Bluurgh…!

A segunda onda teve menos a expelir, amplificando a dor das contrações involuntárias e antes da visão turva ter a chance de escurecer por completo, braços decididos o envolveram pela lateral.

— Ela ‘tava partida ao meio… ela… os intestinos dela…!

Respiração errática soou em meio ao vácuo, a conduzindo a agir com praticidade.

— Steve, respira! Você não tá lá! Olha aqui! Olha para mim!

O ajudou a sentar no chão molhado, assistindo aos tremores incontroláveis vindos de se reviver o trauma.

— Ela olhou para a gente… — segurou as laterais da cabeça, em lágrimas pesadas. — … E ela pensou que a gente ia salvá-la…!

— Eu sei, eu sei — agarrou-o pelos ombros. — Steve… Por favor…

— Ela disse que não sentia as próprias pernas… e que ouvia os amigos mortos gritando por socorro…! Ela ‘tava sangrando TANTO…!

— Shhh…

Um gesto impensado, na forma de um leve abraço, o trouxe um pouco mais perto da realidade. Com o inesperado contato, os engasgos e o fluxo de lágrimas se reduziram.

— Eu sei que foi difícil. Não foi fácil para mim também.

Ainda o segurando pelos ombros, fez questão de perfurar-lhe a alma com o brilho ciano de seu próprio poder.

— Eu vi, e eu também fiz parte daquilo. Eu entendo isso que você tá passando, Steve, porque também penso em todo aquele inferno quando fecho os olhos.

Ela aumentou a força e nem mesmo por um segundo abandonou o enorme estoicismo no semblante.

— E é por isso que a gente precisa lutar junto. Eu, você e os outros, sejam lá eles quem forem. Ficar separado agora é pedir para morrer e por isso, eu preciso que você seja forte.

Devagar, a adolescente se levantou, com foco na tarefa à frente.

— Descansa aí. Só de não ficar sozinha, me deixa mais segura. Pode deixar isso comigo.

Em poucos segundos ela retornou à depressão na geografia da mata, traçando mentalmente como descer em segurança. 

“Ugh… Isso vai ser uma porcaria…”

Lá embaixo, um pequeno riacho passava pelos três cadáveres em estados variáveis de decomposição, embora com a aparência de terem sido mortes recentes.

“E violentas, porque, com essas marcas…”

O último deles deixava aparentar ter menos de três dias de falecimento, enquanto o último, ao menos algumas semanas, onde o fato mais importante era um só.

“São adolescentes, os três…”

Ela agarrou um grande graveto do chão próximo para utilizar de apoio ao entrar no solo enlameado, e ao dar o primeiro passo para descer, foi interrompida por Steve.

— Ann…! — A voz exasperada se propagou como um trovão. — Só uma coisa…!

— Hmm? Que foi? Se quiser me seguir, eu disse que não precisa, eu…

— Não é isso…! — interrompeu, sinalizando com a mão aberta. — É que… Eu acho que conheço esses três.

Steve se ergueu da pilha de folhas em passos trêmulos, mordendo a própria língua ao andar até a fonte da crise traumática.

— Eu só preciso… ter certeza…

 Antes de vê-los, se solidificou ao máximo por dentro, puxando qualquer noção de realidade ao alcance dos dedos pálidos, e quando enfim os viu, sua face se contorceu em familiaridade.

— Eu sabia… Eu nunca ia esquecer esses três… não importa o quão desfigurados…

Apoiou o braço direito no joelho oposto, em busca de estabilidade, e com a atenção presa aos corpos, anunciou em alto e bom tom.

— Esses três… eram os valentões que faziam chacota comigo até o meio desse ano…!



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