Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 128: "Eu te Amo"

— Você não faz ideia do quanto eu me esforcei, das coisas que mudei e dos fatores que alterei, só para propiciar que a gente se aproximasse mais, Emily… Nem passa pela sua cabeça as coisas que eu fiz, só para ter a chance de ficar do seu lado, do jeitinho que eu sempre imaginei…!

Ao dizer, o par de gemas negras dançava nas órbitas claras, refletindo o branco do teto; no rosto dela, se estampava a paradoxal mistura de extremo êxtase e profundo ódio.

— Eu fiz tantotanto! E você nunca olhou na minha direção… — parou, tomando ar. — Eu desejei demais, me esforcei demais, mas, no final, eu fiz isso sabendo… que você nunca ia me admirar do mesmo jeito… do jeito que ficou aqui, em mim, no fundo do meu peito, gravado…!

Não fazia sentido. Para Emily, as palavras entravam e saíam, ignoradas pelo cérebro em estado de quase pane, travado no tempo desde a primeira frase na pesada confissão.

— Por mais de um ano, eu te amei como nada mais na minha existência inteira, Emily… Eu te exaltei, te adorei, fiz o esforço e me obriguei a tomar qualquer medida para ficar do seu lado… Eu me sacrifiquei além do que eu própria julgava aceitável!

Lágrimas transparentes escorreram até o pescoço, impossíveis de serem secadas pelos finos braços paralisados.

— … O seu cheiro, a sua voz, o seu aspecto… Eu amei tudo… Eu amo tudo, Emily. O seu nome…! Emily… Emily…! Emily! — repetiu, felicidade crescente a irromper entre o choro. — Só de poder te ouvir, eu já ficava feliz… O Clube de Literatura se tornou o ponto alto dos meus dias, meu próprio motivo de viver…!

A vida nas expressões ia e voltava, preenchendo-a de um brilho falível e temporário; renovado a cada sorriso, desfeito ao fim do trajeto de uma nova lágrima.

— Eram para ser só nós duas…! Era assim que tinha de ser…! Eu planejei, me aproximei, fiquei do seu lado… e me doía tanto, mas tanto precisar compartilhar a sua atenção com aquele monte de gente estranha, que não tinha absolutamente nada haver com o que a gente compartilhava…!

Os murmúrios de intensidade crescente a gelaram a espinha, quando a súbita e mais firme mudança chegou, e de repente, em sua voz passou a não existir mais qualquer amor.

— … Porque você tinha que perseguir o seu sonho…! Tinha que me ignorar, porque eu não chegava nem perto de te ser suficiente…! Aí você se aproximou da Ava, da Olivia… Ahahahaha! Não faz a menor noção do quanto isso me cortou por dentro, Emily…!

O pequeno universo compartilhado se quebrou. Do nada, os sons das enfermeiras andando voltaram e as máquinas de suporte de vida soaram mais alto do que o faziam à sua chegada.

— Isabella, eu…

Eu sei o que você vai dizer, tá bom?! — repreendeu a melhor amiga, ao destilar pura raiva. — Até porque eu já pensei assim…! Eu sei e por isso, não me arrependo de te contar nem um pouco…!

O plástico da sonda refletiu pedaços do sorriso quebrado feito pelas pequenas placas esbranquiçadas pelos dias sem direito à alimentação padrão.

Eu sei…! Você não vai aceitar os meus sentimentos, Emily… Não pode aceitar! Afinal, não é disso que você gosta, né?! Não é para mim que você olha com aquele brilho…!

— Não, Isabella…! — rebateu, tentando controlar os tremores nas pontas dos dedos. — Não, eu não posso compartilhar desses seus sentimentos! Nisso você tá certa! Isso não é quem eu sou e…!

ENTÃO, DE QUE ADIANTA, EMILY ATTWOOD?! 

A exclamação furiosa rasgou o pesado ar e criou aperto no coração já maltratado da presidente. Assustada, Emily deu um passo para trás, fitando-a de ainda mais longe.

— Sabe quanto tempo eu debati essa ideia…? Faz ideia do quanto eu tentei me habituar com a verdade sobre nós duas, Emily?! Ah, não sabe…! Não sabe e nem se importa…!

O alojamento fechado cresceu em sombra e frio, guiado pelo barulho das gargalhadas inquietas da jovem hospitalizada. Quebrada, fitou a outra como se quisesse matá-la e, desimpedida, continuou.

— Mas agora sabe…! Sabe o que eu sinto, porque eu tô contando tudo…! Tô contando porque vou morrer, Emily! Eu vou morrer…! — enfatizou, histérica. — E quando eu morrer, pelo menos não vou precisar ficar pensando desse jeito tão torturante…!

A densa cabeleira escura cedeu sobre o travesseiro e, de mente fincada ao teto, pronunciou as palavras mais vis já ditas por seus lábios.

— Não vou ter que ficar pensando no dia em que você vai chegar, toda alegre, para me falar sobre o cara aleatório que passou a noite toda te enchendo com a porra dele… — parou, engolindo o choro salgado. — … e eu vou ser obrigada a rir e dizer que tô feliz por você, PORQUE NÓS DUAS SOMOS MELHORES AMIGAS…!

— Isabella… desse jeito, você me ofen…

— SÓ MELHORES AMIGAS, EMILY ATTWOOD…! — interrompeu. — Ah, qual foi? Acha que eu não sabia que iria acontecer eventualmente?! Por acaso, tá me tirando a idiota nessa altura do campeonato, Emily?!

— Isabella, os seus acessos…! — alertou, esforçada em suprimir o turbilhão de sentimentos a subir pela garganta. — As agulhas podem te furar e…!

Não interessa…! — intrometeu. — Ah, como é o destino… Quando finalmente cheguei tão perto de conquistar a coisa que eu mais queira, aquele bando de barreiras tinha que se colocar no meu trajeto…!

A porta do quarto abriu com um solavanco levemente agressivo e ao ser exposto o lado de fora, a enfermeira à porta foi ágil em comunicar o problema.

— Estão fazendo barulho demais — alertou, antes de focar a atenção em Isabella. — Ah, os seus analgésicos acabaram… Vou pedir para fazerem a reposição. Sei que está com dor, mas, se continuar gritando assim, vamos precisar sedar.

— Tá tudo bem por aqui.

O fluxo natural de perguntas e respostas se viu quebrado, quando a Attwood tomou para si o direito de fala.

— Estamos apenas discutindo um pouco e as coisas ficaram mais acaloradas. Vamos tentar não gritar — disse, antes de encarar seriamente. — Não vamos continuar gritando uma com a outra, certo, Isabella?

A mira fria dos olhos em esmeralda apenas arrancou mais sofrimento da já decadente paciente paliativa.

— Tão injusta… Sempre… tão injusta…

Três longos segundos de choro silencioso, sem lágrimas por conta do excesso, foram derramados no leito isolado de hospital.

— Nos desculpe. A gente não vai mais gritar — respondeu, soando mais calma. — Dá para resolver de um jeito melhor… com mais paciência.

— Bom! — A enfermeira confirmou, satisfeita. — Vou deixar vocês duas sozinhas, se esse for o caso. Mas de qualquer forma…

O filete da porta entreaberta a permitiu mandar uma mensagem clara. Dali, longe da atenção da jovem ao leito, a trabalhadora assentiu para Emily, em silêncio.

— Eu vou ter uma injeção de sedativo preparada, Isabella e se os ânimos se elevarem em excesso, serei obrigada a usá-la. Não vão ter um segundo aviso.

A batida as trancou de novo no mundo expansivo de alguns metros quadrados. Agora, no entanto, a pressão exercida passou a prover do outro lado.

— Me explica isso direito — ordenou, fria. — O significado dessas tais “barreiras” colocadas no seu “trajeto”. Eu quero saber.

No canto do quarto, repousava uma cadeira metálica desconfortável. Sem hesitar, a Attwood plantou o objeto bem de frente para o leito e sentou-se nele, neutra dos pés à cabeça.

— Comece quando quiser, Isabella.

O foco, inquebrável, foi perpetuado pelos vários e longos segundos de silêncio e o contato visual, impiedoso, viu o inevitável fim ao primeiro riso amargo.

— Aha…! Hahaha…! Tão injusta… me maltratando assim, nos meus últimos momentos… Tão fria!

A alvinegra se permitiu afundar entre as cobertas desorganizadas e, com um suspiro, aliviou as tensões do corpo inutilizável. De baixo, viu o alto e imaginou o céu, oculto entre concreto e gesso.

— Quando eu descobri pela boca da minha mãe que Ava e Olivia morreram, não me senti triste. Pelo contrário… eu quase não consegui me fazer parar de gargalhar, Emily.

As palavras vieram naturalmente, como a água a descer das nuvens durante uma tempestade de verão. Em outros tempos, tamanha facilidade talvez até a assombrasse.

— Eu nunca gostei de verdade daquelas duas, só aprovei a ideia de chamá-las porque era isso que você queria. Já deve estar cansada de saber, mas, se dependesse só da minha vontade, o Clube de Literatura seria composto por apenas nós duas.

Isabella relembrou, divagando entre as memórias de poder tocar o próprio rosto. A sensação de dizer tamanhas brutalidades era libertadora, tão viciante que não queria parar por nada.

— A Ava era uma palerma — cuspiu, rindo de si mesma ao final. — Uma moleca… infantil, chorona por qualquer coisa, e no geral, tão barulhenta e incômoda que eu só podia pensar em quantas maneiras diferentes poderiam existir para se esganar o pescoço daquela pirralha. Ah, aquela birra me dava nos nervos…!

Os dias de contar e escrever histórias, de ler e debater as imaginações e devaneios de outros; para ela, não passavam de mentiras.

— A Olivia não concordou de primeira em me ajudar com o plano de jogá-la para o escanteio. Contei que o perfil da Ava não condizia exatamente com aquilo que o clube esperava, mas que derrubá-la por conta seria inconveniente… blá-blá-blá, criei uma história, e a Olivia me reprovou.

Os lábios secos se torceram graças ao grande sorriso.

— Ela sabia do meu caráter, mas decidiu ficar calada… Típico. Aquela girafa nunca foi de se envolver com os problemas dos outros, seja por bem ou mal… logo, a neutralidade dela foi até bem-vinda. Até hoje me pergunto quando, exatamente, ela mudou de ideia, ou melhor… quando ela, em si, mudou.

Nuvens escuras vieram de longe e taparam o fraco sol. No relógio, faltavam cinco minutos para às dez horas.

— A família dela começou a passar por momentos difíceis e depois do divórcio dos pais, então, imagino que ela deve ter nutrido alguma raiva subjacente e começado a descontar na Ava… Ah, que se foda, porque, no fim, ela ficou do meu lado e não aproveitar seria perder a oportunidade. Eu não me importei com o que ela passou e não é agora que vou começar.

O ritmo cardíaco, revertido a parâmetros normais, revelou a profunda tranquilidade existente em cada termo e, ao fim, embora a amargura da realidade a roubasse do proveito máximo, a satisfação atingira patamares suficientes.

Os argumentos, enfim, acabaram.

— Isso é tudo?

O silêncio a instigou a levantar. Sem fazer barulho, Emily agarrou outra vez a cadeira e a colocou em seu devido lugar.

— É sim. Isso é tudo, Emily.

— Entendi.

A presidente do finado clube pegou do chão o pequeno marcador preto e tranquilamente o guardou no bolso; passando tão perto de Isabella, fingiu sequer vê-la.

— Então é assim… Ahahaha… É assim que você me deixa… sem dizer “adeus”, sem olhar na minha cara…

A resposta esperada não veio. No trajeto até a porta, ela manteve a compostura, girando a maçaneta para trazer a luz de volta para dentro.

— Eu espero que você tenha sucesso, Emily…! — anunciou de último segundo. — E quando for sentar no pau do tal do Savoia, fala para ele que eu agradeci a tentativa de me tirar do fogo…! Ser torturada dentro do meu próprio corpo e sofrer é definitivamente melhor que morrer tão depressa!

CLUNK e a maçaneta finalizou o giro. Dentro, só as trevas, mandadas de canto pela deficiente entrada de luz natural.

— Quero mais é que ele morra… e que seja bem devagar

A agonia da incapacidade de mudar de posição no leito arrancou pedaços cada vez maiores de qualquer semblante de felicidade restante e, ao fim, sobraram apenas risos vazios.

— Quero que ele perca tudo…!

Por causa dele, ela nunca teve a chance de confessar seus sentimentos da forma mais correta; ele roubou sua carta, roubou a atenção de quem mais desejava…

— Eu quero que ele sofra muito… muito…!

Meramente lembrar do modo tão animado como ela falou sobre esse cara que conheceu no fim de semana, da empolgação empregada ao citar tamanhas aventuras “secretas”...

— Pensar assim me faz alguém mau, Emily…? Me conta… Querer que ele queime para sempre… É mau da minha parte…?

Nenhuma palavra, em nenhuma língua definiria o misto de trevas emocionais ao mero pensamento de Ryan Savoia.

— … Emily… Eu te amo…

As conversas das enfermeiras, os aparatos e até a própria realidade perdiam sentido. Ela só queria ouvir aquele nome, ver aquela face, viver aquele amor.

… … …

Amor.

As sombras na sala se amplificaram, quando a silenciosa figura pulou pela janela.

— Você borbulha com amor.

A voz dela soava como um suspiro, audível o suficiente apenas para ser captada. Além dos ouvidos de Isabella, o som se perdia e os passos suaves a faziam parecer caminhar sobre o ar.

— O seu amor te salva, te mantém viva, te faz respirar.

Longos cabelos castanhos, até a altura dos quadris, e entre agasalhos pesados a lhe cobrir nariz e boca, um par de brilhos vermelhos se destacou em meio às sombras da franja.

Amor é o seu combustível, sua razão, seu objetivo — disse, críptica. — Amor é o sustento do seu espírito. Pois seu amor supera barreiras, devo garantir.

Em frente à maca, parou, dirigindo os fixos olhos brilhantes ao centro do peito da adolescente sem palavras.

— Pois seu amor é desmedido e desigual, devo garantir.

A desconhecida ergueu os dois braços em frente ao corpo, assumindo uma posição similar à de um arqueiro pronto para atirar.

Amor — enfatizou. — Avassalador, final e insuperável, isento de impedimentos e barreiras. Pois seu amor é forte, devo garantir.

— Huh…?

Isabella presenciou a sensação de se separar corpo e alma, quando, de repente, entre os dedos da invasora se fez luz.

— UGH…! — gemeu, em antecipação pela perfuração.

A flecha vermelha se fincou fundo em seu peito, atravessando, e somente após a concretização do evento, notou um importante detalhe.

“Não… doeu…?”

O objeto, aparentemente feito de luz vermelha solidificada, desapareceu em poucos segundos, reduzido a poeira brilhante, desfeita no ar.

— Por seu amor, sem ele nada seria; por seu amor ser sua única verdade, devo garantir.

— Espera…! — gritou. — O que fez comigo…!

— Por seu amor ser puro… — saltou a janela, e de lá, a viu.

O brilho rubro reluziu e nela, algo mudou.

— … devo garantir o seu maior desejo.

— Espe…!

Num piscar de olhos, sumiu, ainda mais quieta em comparação a quando entrou, mas ao sair, deixou ali uma marca — uma chama —, no fundo do coração petrificado da moça.

E a partir dali, só uma palavra existia na cabeça pequena demais para contê-la: Amor.



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