Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 137: Reação Rápida

— Caramba… Quando meu pai me contou que uma casa tinha queimado no outro lado da cidade, eu não pensei que tivesse terminado assim e, tampouco, que fosse essa…!

De olho na pilha de cinzas brancas ainda incandescentes, a garota de marias-chiquinhas dirigiu uma encarada questionadora à companhia logo à direita.

— Tá, isso aí foi coisa sua? Abre o jogo, não vou ficar com raiva.

De jeito nenhum…!

Steve respondeu à inferência com indignação, expressando seu lado mais azedo ao cruzar os braços, frente ao peito.

— Eu passei a madrugada virado ontem, mas não foi fazendo isso aí, não…! — anunciou, em autodefesa. — Passei a noite em casa, maratonando filme e jogando on-line. Nem inventa de jogar uma dessas nas minhas costas…!

Pfff! — Diante do profundo repúdio, Ann soprou um riso. — É que quando o assunto é fogo, você é literalmente o único que eu conheço que não-ironicamente poderia tentar!

A imponente casa abandonada na parte mais isolada de Elderlog agora não passava de um punhado enorme de poeira branca.

— Mas, vem cá… Acha mesmo que isso é coisa nossa? Tipo… é que qualquer pessoa poderia resolver acabar com a casa e… sei lá, só me parece muito inespecífico para ser algo que a gente se preocupe, tá entendendo?

Algumas paredes lutaram bravamente contra o agarro mortal do fogo, porém, com o colapso geral do teto, explorar em busca de quaisquer pistas se tornou inviável.

— É, pode ser que você esteja certo… — suspirou. — Mas eu vou te contar: acho que não tá.

“Geez… Como sempre…”

A manipuladora de insetos deu um passo à frente, parando ao sentir os resquícios da grande temperatura a acertar-lhe o rosto. Decidida, pisou num degrau inteiro da velha escada e falou.

— Sabe que aqui foi um canto de assassinato, né?

As pessoas sequer queriam olhar para o que restou da casa e além deles, qualquer outra alma passante não se deixava demorar mais que um minuto inteiro.

— É, eu sei… Não tô lembrado o nome do caso agora, mas… — pegou do chão uma placa enferrujada e a inspecionou. — Hmm… Não dá para ler.

O objeto, perdido quase por completo pela chuva e o tempo desde as mortes, perdeu mais pedaços ao colidir com o chão de terra. Somente uma letra podia ser lida: J.

— Aqui era a casa dos James — mencionou, com certo peso. — Nesse lugar, onde a gente tá pisando agora, morava uma família como qualquer outra.

O vento úmido da manhã mandou cinzas para longe e de tão intenso, reacendeu alguns pontos com o suave brilho alaranjado das brasas.

— Eles tinham uma filha — saltou, pulando fora da zona potencialmente ativa do fogo. — Era uma menina, só tinha doze anos na época. Numa noite, a mãe não estava em casa e… 

— O que rolou? — questionou, absorto demais na história para apenas parar.

— O pai foi encontrado morto no dia seguinte, quando a mãe finalmente conseguiu atravessar a tempestade que rolou no dia. Os requintes de crueldade da morte e o estado do corpo foram aparentemente tão pesados que nem deu para colocar nas manchetes.

— E a menina? — Curioso, pressionou mais. — Sério, você precisa parar com isso de só contar as coisas pela metade e ficar de pedacinho em pedacinho.

— Ah, qual foi? É o drama! — riu, fracamente. — Mas enfim, te respondendo logo, a menina só sumiu.

— Hein…?

Os poucos dias em que passaram a interagir com frequência já bastaram para que o piromante desenvolvesse a noção de que Ann podia ser “peculiar demais” quando bem queria.

— É! — enfatizou, balançando as mãos para efeito dramático. — Desapareceu, saiu de vista, nunca mais foi achada, virou fumaça, se transformou em pó…!

— Tá, tá…! Eu já entendi…! — A interrompeu, antes de aprender modos demais para definir alguém sumido. — Mas o que isso tem haver com o fogo na casa?

— É aí que tá…! — mirou um soco no ar. — Não tem nada haver… se a gente só olhar pelo lado ordinário da coisa…!

O costume dela de complicar excessivamente às coisas mais básicas sempre tornava as conversas bem menos práticas do que poderiam e, logo ao desviar do golpe, ele fez questão de se lembrar disso outra vez.

“... E quando tenta simplificar coisas complexas…!”, evadiu, ao virar a cabeça para a esquerda no último milésimo, a onda de vento gerada pelo impacto a colidir contra bochecha. “... Pelo menos deixa divertido…!”

— Bons reflexos…! — cumprimentou, claramente mais orgulhosa por si, que feliz por ele. — Vamos ver como fica a sua atenção dividida!

Os treinos constantes, frutos dos poucos dias de operação conjunta, trouxeram resultados muito melhores em relação a qualquer métrica esperada.

— A casa em si não é importante…! —  chutou alto, com objetivo de atingi-lo no queixo. — O que interessa… são os boatos que existem sobre ela…!

— Ack…! — Nos limites dos reflexos de evasão do perigo, outra vez sentiu o corte sutil das lâminas de ar contra a carne exposta. — … Disso eu sei…! Essa casa… tem umas histórias e tanto…!

O processo consistiu em ensinar as manobras mais simples, absorvidas por ele com notável facilidade. Juntos, fizeram treinos básicos de força e flexibilidade, tempo e qualidade de reação, ente outros.

— Dizem que quem entrava aqui… — Desta vez, ele mirou o golpe do punho. — Não conseguia mais sair vivo…!

Ann-Marie se deixou deslizar no chão para não ter de lidar com o impacto sério, a ponto de evitar com certa folga ao movimento ainda imaturo.

— É isso aí. — No chão, ela preparou uma rasteira de perna esquerda como resposta. — Não parece estranho?

— Hugk…! — Entretido na conversa, Steve quase perdeu o tempo correto de pular. — Tudo nessa cidade é estranho…!

— … Heh! Touché…!

Em menos de um quarto de segundo, ela resolveu fazer questão de mostrar ainda ser o mestre e, mesmo diante de todo o progresso do aluno, exibiu não estar afim de desistir da chance de humilhá-lo um pouco mais.

— É isso mesmo…! Elderlog nunca foi um canto normal, desde que eu conheço o lugar…!

Na velocidade de um piscar de olhos, Ann mobilizou toda a massa de seu corpo de forma perfeitamente rítmica e ao distribuir o peso entre os membros e somá-lo à potência das pernas, logo estava de pé com um kick-up.

Na pouquíssima brecha de tempo entre a manobra e a nova rajada de ataques a serem preparados, Steve somente pensava no quanto queria aprender a fazer aquilo, um dia.

— … E estranheza é a nossa parada, Steve…!

— Ugh…! Droga…!

A contínua salva de golpes em velocidades astronômicas propagou sons, perdidos no espaço aberto — dolorosos contatos pele-a-pele, que mais o faziam sentir estar sendo agredido por um punhado de martelos automáticos.

— Cadê a defesa…?! — questionou, claramente a zombar dele. — Como vai se proteger… de um inimigo que tá fazendo de tudo para te matar?!

“Ugh…! Eu tenho que fazer alguma coisa… Tô basicamente só apanhando aqui… e ela nem tá batendo tão forte assim…!”

Os ataques vinham nas mais diversas configurações possíveis: chutes no flanco, socos contra o rosto, contatos com a mão espalmada — cujos quais podiam ser enganadoramente dolorosos — e, no geral, desacompanhados de tempo para descansar.

“Eu preciso reagir…! Tenho que fazer algo rápido…!”

— E aí?! Nunca tinha visto isso antes, né? — O fato dela sequer parecer cansada foi desencorajador para o Evans. — Bola algum plano para sair dessa…!

Ao longo das aulas, ela ensinou o passo-a-passo não apenas para acertar um golpe efetivo, mas executar um contra-ataque apropriado, a partir do seguimento de alguns preceitos básicos.

“Ugh…! Arrgh…! Eu…! Olhar a postura… do oponente…! Procurar… uma abertura…!”

— Rápido…! Pensa que são facas, e não a minha mão! Ou, sei lá… qualquer outra coisa!

A manobra defensiva básica de centralizar os braços para proteger os órgãos vitais deixava inúmeras aberturas nas laterais, e embora pudesse resistir com certa capacidade até tal ponto, a pressão exercida pelos ataques o distanciava da vitória, ambos literal e figurativamente.

O lado mais pressionado tende a, inconscientemente, ceder do próprio espaço para o opressor e ele podia ver isso na prática, com o já significativo aumento de distância em relação ao ponto inicial da luta.

“Como eu vou abrir um buraco nessa agilidade e atacar?! Não dá…!”

Conforme os segundos de dor passavam na duração de horas a fio, o pensamento de estar sendo feito de idiota adquiria mais força teórica em sua imaginação.

Afinal, ela sabia da incapacidade dele, em seu estado atual, de revidar algo tão contundente e massacrante.

“Ah, eu vou me vingar dessa chacota…!”, pensou, ao chamar a familiar sensação vinda de dentro. “Vai ver só uma coisa…!”

— Huh…? — hesitou por um fragmento de segundo, atingida pela súbita mudança no perfil de Steve, em acompanhamento da sutil diferença na temperatura.

Se tornou uma regra não-comentada a ausência de poderes durante o treinamento, pois, em vias públicas, cheias de transeuntes e, em principal, de agentes, exibir tamanhas anormalidades só traria problemas.

Agora, sem qualquer companhia, além das várias árvores e pássaros, o sentido de se segurar já não se fazia ser, o permitindo explodir com liberdade e liberar o excesso de calor que a mandou longe.

Uma explosão focada de chamas pouco intensas brilhou ao redor dele no formato de uma esfera a cobrir todo o corpo, em expansão.

— … GAAAH…! — pulou para trás, o mais distante que conseguiu. — Ei…! Pensei que a gente não usava poderes…!

Para a segurança dela, as frágeis labaredas morreram antes de cortarem três metros, revelando um semblante vitorioso na cara do Evans.

— Hehehe…! — A inversão dos paradigmas o deu um curto ar de superioridade, depressa deixado morrer. — Foi o único jeito que eu encontrei de quebrar aquela sua sequência!

Mas, tão logo o combate terminou, ele se apressou para ampará-la e, também, para se desculpar.

— Foi mal se te machuquei. Eu… até me empolguei demais…

Ele se propôs a fazer uma pequena checagem para confirmar a ausência de queimaduras, mas foi rapidamente negado.

— Não, não… Tá tudo bem — dispensou a ajuda, ao tempo que se aprontou para levantar. — Não me queimei… só… fui pega de surpresa… E além do mais… admito que eu peguei pesado com essa.

Felizmente, a portadora de marias-chiquinhas acabou apenas com um rosto avermelhado, irritação essa que logo passaria.

— Meio que não tem jeito de desviar ou rebater aquele tipo de manobra. Você só rebate no mesmo nível mesmo — admitiu, de cabeça baixa. — Fui injusta contigo.

— Huh…! Então, estamos quites!

Em passos lentos, os dois caminharam para um pouco mais longe dos restos da casa, se acomodando no topo de um pequeno relevo, de frente para a Rota da Serragem.

— Eu pensei no que você falou, mas, sendo sincero, ainda não consigo pensar numa justificativa para a casa ter queimado… Eu sei lá, só não dá para pensar muita coisa, entendeu? O lugar é meio cabreiro e tal… mas… é isso!

Steve admirou o grande bosque a se esticar além da altitude, alguns tetos de casas em destaque no meio de tanto verde, o lembrete que o fez outra vez ciente da falsa paz de Elderlog.

— Só que… eu também sei que não dá para ser tão lógico assim, que nem você também disse… Quer dizer, eu solto fogo pelo corpo e você controla insetos telepaticamente…! Se isso é lógico, eu…

Shhhh! Steve…! — Em uma manobra acelerada, a garota agarrou o braço dele.

— Ah?! Ei…! Rolou alguma coi…

— Tem alguém aqui.

A menção fez cair o mais profundo silêncio entre o espaço antes não tão vazio. Os pássaros pararam de cantar e somente o vento ocasional balançou fortemente as folhas ao longe.

— Os insetos que eu espalhei… Eles detectaram movimento.

A enorme pressão em torno do membro vinha acompanhada de profundos tremores, combinados em algo rígido e absolutamente aterrorizado.

E a pergunta a sobrar era: “O quê”?

— Ann, e se for só mais um transeunte? — O manipulador de chamas tentou acalmá-la. — “Movimento” é um termo muito amplo e… sei lá, pode ser até um animal ou…!

Não, Steve…! — rebateu, repleta de tensão visceral. — Os insetos sentem… e eu sinto o que eles sentem… Eu também percebo… tudo o que eles percebem.

Hiperventilação. Da testa dela, se formou uma gorda gota de suor, tão pesada que sequer teve o tempo de correr até o queixo e descer, antes de se perder no chão de terra.

— Sabe como eles reagem quando se sentem ameaçados…? Então… — pausou, tomando amplos goles de ar. — A coisa que tá se aproximando é perigosa… muito perigosa.

“Hmm…”

Steve não queria necessariamente desacreditar do depoimento da companheira e diante da situação e da literal crise de ansiedade, se dedicaria a ficar e apoiá-la a atravessar tal momento.

— Ann… onde tá? Eu vou dar uma checada… Vai que… é um urso ou algo assim? Ursos são perigosos o bastante, né?

Porém, o fato de se tratar do “perigo” percebido por insetos o deixava cético, afinal, para criaturas bem menores, qualquer coisa que se mova pode ser potencialmente julgado como perigoso.

— De que lado tá? Eu vou dar uma olhada e dependendo do que for…

Não vai precisar. Eu já tô aqui.

Pânico.

— STEVE, ABAIXA…!

Em um gesto de puro reflexo, Ann-Marie se atirou no flamejante e os dois caíram de cara no chão, um pouco mais distantes da presença de caráter opressivo, embora somente agora visível.

— Huh… — Ela entoou, desinteressada. — Tô vendo que, talvez, não sejam só conversa…

— Eh?! — Os dois reagiram, quase em uníssono.

À frente deles, separada por quase três metros, estava uma figura conhecida por cada um dos estudantes da finada Elderlog High.

— Eu estive assistindo vocês por um bom tempo, sabiam? Então, se eu me revelei agora, é só porque eu quis.

De fato — as expressões, a cor dos olhos e o corte de cabelo característico —, não houve como confundí-la. 

— E se eu quis me revelar…

Muitos títulos podiam defini-la: a beldade de Elderlog, multicampeã do concurso de beleza juvenil anual, presidente do Clube de Literatura…

É porque vocês me devem…!

Mas nenhum deles superou o peso de seu nome ao se depararem com a grande aura de raiva e rancor, emitida por Emily Attwood.



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