Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne

Revisão: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida

Prólogo: Nova Vida

“Não importa quantas vezes aconteça, porque eu nunca fico acostumado.”

Leves passos o fizeram chutar uma pequena pedra. O pedaço do que um dia foi um dos vários enormes edifícios rolou até se juntar aos seus semelhantes.

"Eu acho que isso é uma coisa boa? Pelo menos mostra que eu não deixei de ser humano…"

O sol mais uma vez nascia entre as pilhas de rocha arruinada, antes uma metrópole tão imponente. Em sua respiração, apenas o odor da poeira, logo prestes a ser somada ao dos cadáveres nos dias seguintes.

“… E eu odeio isso.”

Tomou um lugar no meio do nada. Em face da destruição, não tinha esperança de achar qualquer outra vida e, por isso, se sentou em um lugar qualquer daquela ruína. Isso sempre o fazia lembrar.

“E pensar que tudo isso começou de um jeito tão inocente e até meio normal…”

Memórias — conceito que o acompanhou de um jeito tão incomum até esse ponto — fluíram desimpedidas, levando-o de volta àquele lugar tão distante, em um tempo onde nada parecia tão ruim.

“Aqui fora tá mesmo ficando cada vez mais frio… Igual daquela vez na loja de conveniência.”

Abraçou os joelhos para se aquecer, assistindo ao espetáculo do céu atentamente a partir de uma pilha qualquer de entulho e ferro retorcido.

“O que eu tinha comprado mesmo? Ah, acho que eu ainda me lembro…”

[…]

— Uma lasanha congelada… Uma lata de sardinhas… Ah, e a sacola de salgadinhos que a Hannah me pediu, também… Como eu pude me esquecer? — falou sozinho, repetindo uma lista mental em desinteresse.

Jogou as coisas na cesta de compras sem pensar demais. Não queria perder mais tempo ali, então pensou ser melhor fazer o mais rápido possível. Dificilmente alguém ligaria de não ter posto tanta atenção em algo tão simples.

“Mas isso aqui é um saco…”

Além dele e da pobre atendente, a pequena loja de conveniência estava vazia. Pouca gente iria querer perder o precioso tempo de seu domingo em um lugar tão chato.

“E parece que não é só sobre a loja, até porque o lugar inteiro tem esse ar de canto morto.”

Seu desapontamento funcionou como um encanto, quando viu a porta de vidro automática se abrir. Do acinzentado céu exterior, um sujeito um tanto suspeito se mostrou.

“Ah, bem na hora de alguma coisa mais interessante acontecer.”

Dali, ouvia o noticiário na televisão ao lado da caixista, uma jovem moça um pouco bonita demais para aquela vida. Por alto, entendia ser o relato de um repórter sobre um incêndio florestal em Rhode Island.

“Trinta e duas pessoas morreram…”

O homem parou e olhou, não muito além de seu bigode visível por baixo do capuz. De óculos escuros, indubitavelmente chamava a atenção em um fim de tarde tão sombrio.

“Trinta e dois segundos desde que ele chegou aqui.”

E nada de agir. Seu ponto de vista privilegiado o dava a vantagem de ver mesmo sem ser visto. Em um de seus grandes bolsos onde enfiava as mãos, existia um volume um tanto peculiar.

“Trinta e duas respirações… Ele tá bem nervoso.”

O sujeito, visivelmente nervoso, encaminhou-se à caixista, onde enfim revelou suas intenções. Do grande bolso volumoso puxou um revólver, e sequer hesitou em apontá-lo para sua testa.

— Passa tudo o que você tem nessa caixa registradora e joga nessa sacola… E vê se anda logo, menina…!

Jogou para ela uma grande sacola preta. Um tiro e seria seu fim. Sem escolha, a desesperada jovem não viu outra saída.

— Rápido…! Mais rápido…! Anda, garota…!

Sob a mira do revólver seus olhos vacilaram, boca atrevendo-se a dizer nada, pondo todo o foco na agilidade de seus dedos esvaziarem os pequenos compartimentos. 

Havia mais um cliente na loja e disso ela lembrava bem, mas o que ele faria? Possivelmente já haveria de estar escondido em algum lugar seguro, conservando sua própria vida enquanto ela sofria aquilo sozinha…

— VÊ SE ANDA LOGO COM IS…

Pow e crack; um golpe e já não restou um fragmento de consciência. Sentiu sua alma sair do corpo ao presenciar a salvadora figura de seu único cliente em mais uma tarde deprimente de domingo.

— Ah, — começou ele, um pouco desconcertado. — não precisa me agradecer, embora… Eu acho que isso aqui tá quebrado agora… Foi mal aí pela bagunça.

Ele se referia à pesada garrafa de uísque, feita em cacos ao acertar a cabeça do bandido. O forte cheiro de álcool se misturava com o do sangue em uma poça crescente.

— Ele vai ficar desacordado por um tempo… Eu digo que uns quinze minutos, no máximo, então… Vê se chama a polícia.

Ela não tinha palavras para descrever sua atitude, e não teria mesmo que estivesse calma. O alto rapaz afrodescente agia como se ter que lidar com tal tipo de cena fosse habitual.

— Ah, e mais uma coisa…

Trocaram um último olhar, quando teve o vislumbre de seus profundos olhos roxos.

— Esquece que eu estive aqui.

Seus olhos brilharam, perfurando sua mente, e com o toque de sua mão, sentiu as lembranças que tinha se apagarem.

Detalhes escaparam como areia entre os dedos, tornando-se mais e mais incertos. Aos poucos, formas e cores eram substituídas e trocadas. Segundo a segundo, sua presença desaparecia, ao passo que tudo o que conhecia sucumbia ao breu.

Quando enfim viu de novo, sentiu em sua mão o peso de uma garrafa quebrada de uísque, e o cheiro horrível de sangue e álcool misturados.

— Oh, claro…! Eu… Ah, acho que eu ainda tô em choque…

Sentou-se na desconfortável cadeira giratória, ainda transtornada com o que viu, por mais que ainda mais com o que fez. Nunca em sua vida a garota imaginou ser capaz de acertar alguém com uma garrafa na cabeça.

Como pôde se esquecer? Sua reação foi rápida e fluída, além de por sorte aquela bendita garrafa estar ali, bem embaixo da registradora. Ela a pegou e acertou-o em cheio.

— Eu… Eu fiz… Eu reagi a um assalto…

Pegou o celular com as mãos trêmulas, se questionando entre chamar o socorro ou a polícia. A adrenalina gerava um estranho sorriso de orgulho em si mesma por ter sido tão corajosa.

Ela nunca saberia que suas memórias de tamanha coragem não passavam de mera fabricação.

[…]

— Consegui as nossas coisas, agora vamos pegar viagem.

Fechou a porta do carro com agilidade, tomando para si e as compras todo o espaço do banco de passageiros. Passar mais um segundo naquele frio lhe soava terrível.

— Ótimo, agora apertem os cintos, vocês dois, porque aqui vai ser a nossa parada definitiva.

Ouvi-la falar isso deixava a coisa difícil de se acreditar, em especial diante do que aqueles últimos cinco anos representaram em suas vidas.

De todo modo, não contrariou a condutora. Em silêncio, travou o cinto e recostou a cabeça na janela, admirando como os vários tons do céu de fim da tarde se misturavam às várias árvores no caminho do veículo em movimento.

— Consegui um bom contrato em Helena. Parece que eles estão precisando de alguém que consiga arrumar aquele sistema. Vão me pagar 9 mil por mês, então não tem a menor chance de eu dizer não.

Sua pele profundamente amorenada brilhava com a luz gris. Incomuns, os globos de profundo violeta afogavam quem os visse por muito tempo, puxando-os por entre os espessos cabelos negros.

— Desta vez, podem acreditar no que eu digo. A nossa viagem chegou ao fim.

Por baixo de sua fachada tranquila, descarregava as frustrações da viagem ao afundar as grandes unhas pintadas de rosa na espuma do volante. Esperava ser confrontada, logo entendendo estar prestes a ocorrer.

— Se esse é o caso, porque não nos deixar logo em Helena junto com você, mãe? Fica tão longe morando aqui, nesse meio de nada…!

— Não posso permitir isso, Hannah, e eu acho que você sabe bem o motivo.

No banco de passageiro frontal estava outra mulher tal qual ela mesma, embora mais jovem. Hannah, como foi chamada, era uma das que tinha mais problemas com as viagens constantes da família.

— As coisas estão ficando cada vez mais perigosas… Duas escolas explodiram esse mês e um shopping center foi tomado. Se possível, não quero vocês tão perto de cidades grandes tão cedo.

Sua encarada permanecia fixa na larga estrada da Rodovia 93 e ao atingir o quilômetro 233, os três ocupantes viram uma placa.

“Bem-vindo a Elderlog, MT”, era o que dizia, escrito em tinta branca com uma caligrafia horrível. Era notável que aquele pedaço de madeira qualquer já teve mais vida algum dia, postos os restos desbotados de tinta amarela, visíveis se fosse posto esforço em procurar.

— Vocês vão gostar de Elderlog. Apenas deem uma chance para esse lugar, sim? É um canto bonito e as pessoas devem ser interessantes de se conhecer. vão se adaptar antes mesmo de terem noção disso.

Esperou que tal argumento fosse o bastante para cessar quaisquer perguntas, incapaz de notar a movimentação no banco de trás.

— Ah, sim… O trabalho…! Quantas dificuldades estamos vivendo agora, não? Somos tão pobres…!

O sarcasmo dele a fez fincar as unhas pintadas de rosa na espuma do volante, jurando a si mesma não estar prestes a espancá-lo ali mesmo. Para dizer o mínimo, ouví-lo falar assim era irritante.

— Olha, não precisa ficar mentindo para a gente, Joanne… Sabemos que você ainda tá nessa de correr atrás do sumiço do nosso pai.

Ele olhou pela janela, pensando em como nunca teve um lugar para chamar de “lar”. Seus olhos herdados dela adquiriam contornos amargos ao pensar nos últimos anos.

Tudo o que restava era o perpétuo frio de Elderlog, uma pequena cidade localizada em Montana, lugar era pequeno e simples, bem mais preenchido de florestas e bosques do que casas, de ruas pouco movimentadas e uma ausência quase geral de entretenimento. 

“Eu me pergunto o quanto disso tem haver com o desaparecimento do pai… Quer dizer, dessa neurose dela em ficar buscando dinheiro.”

A pouco mais de cinco anos viviam a aventura de trocar de cidade em busca de um contrato cada vez mais gordo ou uma oportunidade melhor, coisa que começou logo após o falecimento de seu pai, um geneticista.

Emmanuel Savoia, famoso cientista da biotecnologia, foi declarado como desaparecido após um dia comum de trabalho. Nas câmeras não se viram pistas, tampouco qualquer testemunha ocular reportou qualquer coisa.

“Isso é uma desculpa para procurar por ele. Eu sei o suficiente.”

O caso permanece um mistério, dado que, além dele, toda uma equipe de sete outros pesquisadores sumiu da mesma maneira, com nenhum encontrado até o momento atual.

— Aceita logo que ele tá morto. Já se passaram cinco anos.

Joanne tremeu com o comentário, mas se manteve em silêncio. Em sua rígida compostura, umedeceu os lábios para mudar de assunto.

— Logo estaremos chegando. Assim que entrarmos, tratem de organizar suas coisas.

Para a sua tranquilidade, ele optou por não insistir e cinco minutos depois, chegaram ao tão efêmero novo endereço.

Calados, os três saíram do veículo. O vento gélido correu por entre as pernas e os sons das aves a cantarem suas melodias eram a única coisa alheia à calmaria. 

Não viam um único carro a mais ou outra pessoa, mesmo procurando com esforço. As poucas casas ali eram espaçadas o suficiente para que não se pudesse ouvir nada além dos barulhos ambientes.

Além disso, apenas muitos pinheiros e árvores decíduas, divididas pela grande rodovia a cortar rumo aos picos azulados das Montanhas Rochosas ao fundo, tão enganadoramente distantes.

A julgar pelo quase completo pôr-do-sol no instante em que chegaram ao belo lugar, haveria de ser cerca de 4:30 PM.

— Essa é a nossa nova casa, nossa nova vida. Essa vai ser nossa última parada. Considerem isso uma promessa.

Evitando falar mais do que o necessário, a mulher logo tratou de abrir o porta-malas e tirar dali duas malas grandes, subindo com velocidade os pequenos degraus de madeira.

Mesmo com toda a reclamação e desgosto, um ponto tinha a obrigação de ser considerado: a construção era bela e aparentava ser aconchegante. Pintada em um tom sutil de azul, contava com duas janelas logo no andar inferior e o fato de serem feitas de vidro indicava a sensação de segurança vivida diariamente pelos moradores de Elderlog.

Isso se repetia nas outras casas, em um tipo de padronização, proposital ou não.

Apenas de se olhar, sabiam dizer que se tratava de uma casa bem mais nova do que as demais, porém.

— Bem… Mas que saco…

O rapaz sentiu um leve sorriso ao perceber não estar sozinho em sua frustração. Logo ao lado, a reclamação de sua irmã Hannah o fez acenar.

Sua frustração talvez fosse uma das maiores, afinal, ela tinha amigos e contatos valorosos em cada lugar que visitou em sua perpétua viagem que parecia ter chegado ao fim no momento errado. Seu caráter extrovertido, adorável e original servia como atrativo instantâneo para os melhores tipos de amizades.

Todavia, era claro que mesmo tal conjunto aventuroso necessitava de certa consistência de tempo e lugar, algo que lhe foi ausente ao quase absurdo. Tentava ser cooperativa com Joanne, mas até mesmo a mais agradável dos três sofria com a falta de planejamento nas viagens.

Balançou sua cabeça em desagrado e pegou suas duas bolsas com roupas, levando-as para dentro da casa, deixando-o sozinho.

— Eu aposto que em três semanas ela vai aparecer do nada e dizer “arrumem suas coisas porque vamos embora daqui”. É sempre assim que acontece.

O rapaz solitário franziu sua testa, observando conforme o céu tornava-se gradualmente mais escuro e sem cor. Não havia o que fazer, infelizmente. Teria de se acostumar com aquele ambiente.

— Só algumas semanas… Só algumas semanas no meio desse frio, Ryan…

Pegou as malas e puxou a maçaneta de sua nova e monótona vida em um monte de mato, inconsciente do que seu futuro aguardava.

[…]

“Ah, cara…! Lembrar assim é quase nostálgico… Como eu era inocente antes de perceber a merda em que tava metido desde o começo…!”

Quis dar um tapa em si mesmo, mas simultaneamente tinha medo de acabar lesionando outra vez o próprio braço. Com todo o cuidado, saltou atleticamente para fora da pilha de entulho.

— Os outros já devem estar se preparando, então é melhor eu chegar junto.

Arrumou o longo cachecol laranja manchado de sangue, sentindo a intensa energia a consumir cada músculo de suas pernas.

— … E pensar que tudo mudou tão rápido…!

Sentiu-se explodir. Em uma carga ágil de movimentos, ganhou as ruas com a velocidade de uma locomotiva, percebendo o quanto entulho ou pedras lhe significavam pouco agora.

— Foi um caminho complicado para cacete até aqui…

Ajoelhou e pegou impulso para um amplo salto, outra vez indo parar em uma pilha de ruína. Dali, captou na pele o fulgor luminoso de mais um dia.

— … E vai continuar sendo, até porque essa bagunça toda aqui tá longe de acabar.



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