Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 49: A Torre do Mago Solitário

 

Deixei Juno aos cuidados do dono da hospedaria enquanto se recuperava e voltei para minhas buscas sobre a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||. Passei praticamente o dia inteiro lá, mas de novo... de novo sem nenhum resultado além de citações de lendas antigas há muito esquecidas.

Suspirei quando minha cabeça pesou, debruçada sobre livros e mais livros. Era como se cada parte do meu cérebro se contorcesse e se revirasse para entender um monte de peças de quebra-cabeça desconexos, que por mais que eu movesse e montasse e remontasse, eu não entendia nada. NADA!

Que desgraça complicada..., pensei quando deixei acidentalmente cair alguns livros da pilha erguida como uma torre ao meu lado na mesa. O barulho se espalhou pela biblioteca como um explosão barulhenta, cortando o silêncio, e alguns que passavam próximos me olharam torto e murmuraram meias palavras. Respondi com um carinhoso dedo do meio e me levantei para sair.

Entreguei o sino para uma das atendentes Demi sorridentes do saguão e desci as escadas tão rápido que quando vi já estava na praça. Já estava de noite e eu não estava mais com saco para tentar uma nova conversa com a Alta-Sacerdotisa e a cara azeda da Neptune me dizendo que eu tinha que sumir da frente de sua deusa amarrotada sob uma cadeira.

Não... meu estômago roncava muito e resolvi voltar para a hospedaria. Lá, um dos funcionários disse que a menina que estava usando meu quarto havia desaparecido e ninguém viu para onde ela fora. Só suspirei e deixei pra lá. Estava tão cansada e frustrada para me preocupar com isso que nem me dei ao trabalho de perguntar por mais detalhes.

Provavelmente ela havia escapado pela janela usando uma outra vassoura ou algo assim. Havia se recuperado o suficiente e agora estava por aí cometendo mais delitos, batendo mais bolsas... que seja. Não era problema meu mesmo.

Tomei um banho revigorante, passando mais tempo que o de costume na banheira, pensativa, enquanto brincava com bolhas e espuma. Como você confiaria em uma pessoa que tentou te roubar? Como que qualquer pessoa confiaria em uma simples ladra como eu? Suas palavras se retorciam na minha mente como repteis rastejando, rondando. Talvez eu estivesse me sentindo... culpada?

Não... talvez fosse só uma impressão passageira. Talvez eu nunca mais fosse vê-la novamente e eu tinha coisas mais importantes para me preocupar agora do que ser gentil com os outros — especialmente, uma ladra mágica.

Segundo as lendas, a torre é repleta de tesouros e cheia de conhecimento antigo, guardado desde os tempos da Era Dourada. Um conhecimento que não existe em nenhum outro lugar no continente.

— Conhecimento, né? Você... quase me deu esperanças... sua idiota — disse comigo mesma, as palavras sendo sufocadas por água e espuma.

Próximo dia amanheceu e lá estava eu de novo, em uma última tentativa antes de ir para o convento. De estante em estante, eu mexia em livros e pergaminho, pesquisei e achei uma informação interessante. Não sobre a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||, obviamente, porém sobre aquele lugar que Juno mencionara...

A ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO||. Dizia o seguinte:

 


Tornei-me a viajar sem demora, cruzando terras frígidas o suficiente para congelar até mesmo a alma, mas não encontrava a terra sagrada; a terra que meus antepassados me contavam em muitas histórias; a terra onde a magia brota até mesmo da terra e cai das arvores como maçãs frescas, esperando para serem colhidas... eu não conseguia encontrá-la e por muitos momentos me entreguei à morte. (...) No entanto, um estrutura magnifica se erguia como um bastião para acolher os viajantes e almas perdidas, um símbolo de esperança que se mantinha firme, apesar da rigorosa tempestade que banhava a região. Uma torre; um grande torre circular, de aspecto imponente, construída sobre bases firmes através das montanhas nevadas e a própria tundra ao redor dela parecia venerá-la como um deus caído na terra. (...) Ali estava na minha frente... a grande e majestosa estrutura e eu estava rendida à ela e sua grande grandiosidade e conhecimento. Quem me recebeu fora o guardião de todo o conhecimento.

Relato de Debryan, o cruzador de GardenmoonIII, páginas 13~16.


 

Minha cabeça se embaralhou. Parecia um relato tendencioso de um viajante fadigado por uma viagem exaustiva em climas hostis e rigorosos. Nada que de fato atestasse sua existência ou que mesmo eu conseguisse minhas respostas lá. Só que...

Meu tempo e minha opções estavam acabando. E essa ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| me parecia algo mais tangível que essa biblioteca idiota. Parecia mais real, mais alcançável... Será que realmente eu encontraria o que estou procurando lá? Será que não seria arriscar mais do que o necessário?

Minhas pesquisas na maior biblioteca de ||GARDENMOON V|| estavam sendo infrutíferas e nada me garantia que no ||CONVENTO DE KIN’ODESSA|| seria diferente. Quem sabe eu só fosse lá para perder mais dias e dias de pesquisa e dor de cabeça inúteis, sem nem ao menos uma pista real da biblioteca?

— Mas... essa ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| também não é uma lenda? — Eu estava tentando convencer a mim mesma de que era uma ideia ruim.

— E é — Uma voz me relaxada respondeu à minha pergunta subitamente, vindo de cima. Quando percebi, uma sombra me acompanhava desde a biblioteca.

— Aaaargh! Que susto, criatura!

— Sentiu minha falta, Lelê? ♪ — Era Juno, flutuando deitada em sua vassoura como se estivesse deitada em um sofá.

— Porra nenhuma! E que história é essa de “Lelê” ?! — Desde quando ficamos tão íntimas?

Ela desceu da vassoura em uma acrobacia e aterrissou no chão com os joelhos dobrados e braços estendidos para os lados, como uma artista marcial. E então, seu corpo estremeceu e suas pernas cederam, ficando de joelhos na minha frente.

— Ai, ai, ai! Porra! Acho que ainda não tô tão completamente boa. Ai, ui, ai! — Eu ajudei ela a se levantar com uma careta. Então, ao se levantar ela prosseguiu: — Sim, a ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| é uma lenda que existe desde que todos em ||GARDENMOON V|| se entendem por gente.

— Mas ela pode ser encontrada onde os registros dizem? — perguntei, meio que sem saber o porquê de eu ter perguntado.

Sua vassoura, como um cachorrinho obediente, veio flutuando até parar atrás dela como um indicativo para que a ladra se sentasse, e foi isso que ela fez.

— Claro que sim. Inclusive dá pra ver ela lá da entrada do ||TEMPLO DE KIN’ODESSA||. Você nunca viu não?

Neguei com a cabeça. Juno levantou uma sobrancelha questionadora, como se estivesse pensando o porquê de minha resposta. Logo ela balançou as pernas e começou a rir como uma garça engasgada.

— Nossa, uma torre daquelas e você não enxergou? E ainda mais com esses óculos... você deve ser cega mesmo! — disse enquanto ria com escárnio.

— Ah, que engraçada — disse em uma risada áspera. — Agora que tal pularmos para a parte em que você se torna útil para mim?

Juno girou em sua vassoura e voltou para o chão com um rosto divertido antes de retornar ao ponto. Pelo visto, seria mais difícil do que imaginei interagir com ela.

— Então você está pensando em ir na ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO||, não é? Pensou mesmo na minha proposta?

— Olha, garota, não me leve a mal, mas eu já estou encucada demais atrás de uma lenda. Não preciso perder meu tempo com outra — retruquei, seca.

Juno torceu os lábios quando cruzou os braços em uma expressão de reprovação, dizendo: — E pelo visto, você deve estar indo muito bem com sua pesquisa para negar a minha ajuda, não é?

Sua provocação me acertou com uma flecha bem no meio do peito. Apesar de eu estar trincando os dentes agora, era verdade; eu não tinha feito nenhum progresso em quase uma semana lá. E eu não podia me dar ao luxo de passar semanas e até meses longe de ||AMINAROSSA|| em uma caçada por uma biblioteca mágica — pelo menos não no meio do quase ápice de uma guerra.

— E o que você quer mesmo, afinal?

— A torre... — Ela apontou para uma direção indefinida atrás de mim. — Estou aqui para guiar você até lá.

— E quem disse que eu preciso de você pra isso? — rebati, as palavras tão afiadas quanto o olhar.

Entretanto, Juno ainda me olhava de cim... me olhava como alguém em uma situação de vantagem, ignorando completamente meus avisos e palavras — não vou dizer que ela me olhava de cima, não vou dizer! Quem ela estava pensando que era afinal? Eu podia estar desesperada por informações e por um norte, mas era muito conveniente para ela que eu fosse lá com ela sendo minha guia.

O que ela pretendia com isso? Seria uma armadilha para mim? Talvez alguma forma de me usar para conseguir alguma coisa agora que ela sabia das minhas habilidades?

— Qual exatamente é seu interesse nesse lugar? — Nossos olhares se encontraram, e tratei de deixar o meu tão afiado quanto uma espada. — Me diga agora o porquê eu deveria confiar em você, Juno.

Seus olhos se desviaram dos meus, indo de um lado para outro como dois pêndulos. Seus lábios se apertaram, bem como a sua pegada na vassoura. Fiquei esperando o que ela diria, com os braços cruzados.

— Hunf... tá bom. Acho que se você vai fazer isso comigo, eu lhe devo pelo menos uma explicação... — Ela desceu da vassoura e ficou de pé na minha frente, com um rosto sério antes de continuar: — Não ligo pra nenhum cacete de tesouro ou qualquer coisa que possa haver lá dentro, mas eu... eu... estou atrás de algo. — Sua voz vacilou um pouco, talvez tentando escolher a melhor palavra. — Estou atrás de descobrir algo.

— Descobrir? — Levantei uma sobrancelha, mais de confusão do que desconfiança.

— Isso. Descobrir algo sobre mim mesma — Juno levou sua mão até a cabeça como quem tem uma forte enxaqueca. — Eu... por mais que eu tente, eu não consigo me lembrar... não consigo me lembrar do que aconteceu no meu passado.

— E você acha que vai descobrir mais sobre si mesma lá? — Havia alguma verdade em suas palavras, mas meu instinto e desconfiança treinados como o de um predador da tundra sempre estavam alertas, não importava o rosto bonitinho que eu encontrasse.

A ladra assentiu com um aceno de cabeça. Seus olhos brilharam, talvez refletindo um pouco da ideia que ela tinha... do que poderia encontrar nesse lugar. Juno prosseguiu:

— Isso. As lendas contam que toda a informação e conhecimento do continente está lá, inclusive o conhecimento sobre cada um que pisa ou já pisou nessa terra. — Sua voz aumentou o tom, exalando animação enquanto cerrava os punhos em gestos exagerados. — Lá o guardião pode ter as respostas que eu procuro.

Ela juntou as mãos como se estivesse me fazendo um pedido.

— Por favor?

Meus olhos se estreitaram enquanto suspirei.

— Se estiver me enganando, você vai se arrepender, ouviu garota? — Soei o mais ameaçadora possível. — E então, vamos na sua vassoura?

— Ah, claro. Eu não estou acostumada a voar com passageiros, mas acho que consigo levar alguém do seu tamanh...

— Está dizendo que é fácil de me levar só porque eu sou pequena?! — A saraivei com os olhos, como um milhão de flechas miradas na sua cabeça.

Juno encolheu a cabeça nos ombros.

— Não, não! Não quis dizer isso! — Ela riu como uma boba enquanto balançava as mãos. — Sobe aí logo. Estamos perdendo tempo.

— Hunf!

Eu subi na vassoura, atrás dela; era uma sensação estranha. Não era a mesma coisa que montar em um cavalo ou um javali selvagem — sim, eu já montei em um. — e causava um certo desconforto. Assim que o objeto planou no ar, minhas pernas bambearam e meu corpo quis deslizar para algum lugar, algum lado, mas apertei a pegada no cabo da vassoura como se pudesse colar as duas mãos a ela.

— Se segura firme aí, Lelê, que agora eu só vou parar na torre! ♪

 

  

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Ao Nordeste de ||GARDENMOON V||, entre uma imensidão de arvores engolidas pela neve...

 

A torre realmente era um construção a níveis colossais, superando e muito o design da ||FORTALEZA DE SUSERANO|| em tamanho e grandiosidade. Era como se a torre fosse uma espécie de pilar que sustentava os próprios céus, começando estreita na base e alargando à medida que subia. Eu sequer conseguia imaginar o que poderia acontecer se toda aquela estrutura um dia viesse a baixo.

Minha nuca ficou um pouco dolorido de tanto esticar o pescoço, tentando mirar no topo, mas não conseguia. O alto daquela torre majestosa se escondia em um capuz de nuvens grossas e cinzentas.

Como eu não tinha conseguido ver a torre até agora? Onde ela estava se escondendo para passar despercebida por meus olhos treinados? Seria alguma magia de camuflagem ou o próprio clima da região servindo como uma cortina para esconder a torre do mundo?

— Chegamos, Lelê! — Quando senti meus pés tocarem o chão, não pude conter o sopro de alívio que escapou por meus lábios.

— Dá pra parar de me chamar assim? Quando foi que eu permitir você me chamar assim? — ralhei com as sobrancelhas franzidas, mais de enjoo do que raiva.

Meu estômago havia ficado junto com o bando de pássaros que dispersamos lá atrás. Juno tinha se certificado de que chegaríamos em torno de 5 minutos e ela cumpriu com a promessa — ao troco do meu café da manhã, obviamente.

— Ah, qual é? Somos parceiras nessa, não somos? ♪

Eu já estava me arrependendo de ter concordado com aquela maluquice.

— Mas isso é...

— Incrível, né não?! Faz qualquer um parecer peque...

— Nem termine essa frase! — cuspi as palavras, com desdém.

— Eu ia dizer... insignificante — corrigiu a ladra e foi andando na frente. — Dizem que a ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| é uma estrutura secular e é dela de onde vem toda a magia que inunda ||REN DO SUL||.

— Só espero que esteja certa, Juno — murmurei. — Você não tem ideia do que está em jogo aqui.

Ela se virou e me lançou um sorriso animado e radiante, enquanto virava sua bolsa de couro pela alça para as costas.

— Vai por mim! Meu instinto de ladra nunca falha!

Eu assenti com um sorriso também e prosseguimos.

A entrada do lugar ficava no topo de um gigantesca escadaria — estava começando a achar que os habitantes daquela região amavam subir escadas —, selada por portões de ferro e madeira e um minério de cor cobalto que eu nunca tinha visto na vida. Essas pedras cintilavam com cores e formas dentro de cada lasca espalhada pelo portal, como se um céu estrelado inteiro dançasse em cada pedrinha daquela.

O chão era de mármore e jade brilhante, como se pisássemos na superfície de uma grande pedra preciosa e que refletia nitidamente cada um dos nossos rostos tomados pelo medo e receio.

Havia um sino que estava pendurado bem na entrada, por vezes tocando com o balançar gerado pelo vento. A cada sibilar do sino, era como se uma onda invisível balançasse meu corpo; era similar a estar boiando em um mar que te levava de uma direção para outra. A frequência mágica daquele lugar era tão alta que até alguém leigo na magia como eu poderia sentir?

Uma sensação confortável, mas ao mesmo tempo, uma fantasmagórica presença aparentava estar nos alertando para que não entrássemos. Um sussurro gerado pelo próprio vento, dizendo algo como recue, recue, recue! Bem mais sugestivo que qualquer placa de “se afaste!”.

Engoli em seco e nós nos entreolhamos. Juno parecia estar sentindo a mesma sensação que eu e estava mais do que claro quando sua testa brilhou com um suor nervoso e seus olhos faiscavam em interesse e medo ao mesmo tempo. Nem ela, nem ninguém — e muito menos eu — sabia o que encontraríamos lá dentro.

Mas pela primeira vez, desde que cheguei em ||GARDENMOON V||, eu sentia que eu tinha um rumo; Algum norte e uma esperança. Uma esperança real de encontrar pistas sobre a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||.

E munidas dessa esperança, nós entramos na ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO||.  

 

.

he.



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