Volume 1

Capítulo 6: Um Novo Propósito

Os flocos de neve caíam lentamente do céu. Eles se acumulavam em meus cabelos e nas pontas de meus cílios, envolvendo-me em uma brancura imaculada, como se eu fosse parte da própria neve.

Sentado sobre um dos vários destroços da nave espacial, permiti-me um momento de reflexão sobre mais um dia sem sucesso na busca pelo Livro. “Pode ser que demore mais do que esperava”, pensei com um suspiro, lembrando-me de que aquele destroço estava fora do raio da explosão.

A possibilidade de o Livro ter sido jogado em alguma vala escura enchia-me de apreensão. Eu precisava ser mais minucioso em minha busca, vasculhar cada pedaço de terra coberta de neve, vale e fenda entre as montanhas. Era uma tarefa árdua, que tornava meus dias mais aflitos à medida que o tempo passava.

Balançando a cabeça, derrubei a neve que se acumulava nela e esfreguei o rosto vigorosamente, tentando afastar os pensamentos negativos. Não podia deixar-me abalar por algo tão simples.

— Já passei por algo pior que alguns dias procurando o Livro — murmurei para mim mesmo, buscando força em minhas memórias mais difíceis.

Levantei-me, sentindo-me pronto e renovado para continuar a busca pelo meu companheiro perdido. No entanto, antes que pudesse dar o primeiro passo, um vento feroz surgiu, sua força quase arrancou o pano que eu usava em minha cintura

“Ainda bem que arrumei um cinto”, comemorei mentalmente, ajustando o pedaço de fio que havia encontrado na nave espacial.

Quando morava sozinho, eu não me importava com esses detalhes, mas agora era diferente. Agora, tornou-se um acessório essencial para evitar qualquer constrangimento. Minha dignidade estava em jogo.

— Pela velocidade do vento, acho que é melhor voltar mais cedo — disse, enquanto observava o horizonte. 

Uma tempestade se formava, nuvens escuras e sinistras pairavam nos céus. Se não fosse os clarões que iluminavam pensaria que era uma nuvem de fumaça vinda direto do planeta vermelho.

Elevo-me do chão, quase não sentindo o leve formigamento de sempre. Precisava voltar rápido para a caverna antes que a noite caísse.

As montanhas passavam como um borrão branco e cinza, com pequenos pontos verdes da vegetação que teimava em sobreviver nas encostas íngremes.

Finalmente, o solo começava a mudar de cor. Agora estava na cadeia externa de montanhas, as montanhas baixas. Elas possuíam uma altura menor em comparação com as altas montanhas cobertas de neve, e sua cor era diferente, com uma vegetação mais abundante.

A terra era robusta e austera, de um marrom claro, e era ali que as gramíneas ondulavam como ondas ao vento selvagem, desafiando o ambiente hostil, enquanto flores mostravam sua beleza em meio ao caos. E as árvores...

“Ah, árvore! Quase me esqueci de pegar lenha.”

O zumbido constante do ar foi diminuindo à medida que desacelerava. Sem tempo a perder, olhei para baixo e vi a floresta entre as montanhas. Com um movimento ágil, desci ao solo e observei atentamente as árvores ao meu redor. Uma delas chamou minha atenção. Não era muito grande, mas seria suficiente para alguns dias.

“Sim, esta é a escolha certa. Essa lenha queimará com um bom calor”, pensei, satisfeito com minha decisão. Agachei-me perto da base da árvore, concentrando minha energia na mão direita. Quando ela se estabilizou, formei uma faca com os dedos. Em um movimento rápido, minha mão bateu na árvore. Para minha decepção, em vez de cortar, a marca da lateral da mão ficou impressa na árvore.

— Por que ainda tento? Ainda não estou nesse nível — murmurei frustrado.

Usei minha Mão de Faca Telecinética como uma serra. Finalmente, a arvore caiu. No entanto, o céu acima começou a escurecer rapidamente.

“Droga, meu tempo está acabando.”

— Já que é assim, não me resta outra opção. — Aproximei-me do ponto onde os galhos da árvore se encontram e estendi meu antebraço em direção ao tronco.

Concentrei minha energia ao redor dele e executei o mesmo movimento que fiz com a mão, serrando o tronco de uma só vez. Em poucos minutos, separei a copa do tronco. Agora, com a lenha em mãos, era hora de voltar para a caverna e me preparar para a noite iminente.

Subi no tronco cortado e senti a textura áspera da madeira sob meus pés descalços. Com um pensamento, a madeira flutuou graciosamente sobre a exuberante floresta. Juntos, cruzamos as montanhas e vales. Evitei ir muito rápido para preservar a integridade da madeira.

A sensação era indescritivelmente prazerosa, muito diferente de canalizar energia e forçar para impulsionar meu corpo pelo ar. Até tive algumas ideias para um meio de transporte para mim e a garota.

“Podia ser uma simples e prática tábua”, pensei, enquanto visualizava uma prancha de madeira esculpida. Ou, quem sabe, uma caixa resistente com compartimentos estrategicamente colocados para armazenar suprimentos. Se a caixa for grande, talvez seja necessário adicionar rodas para locomoção terrestre.

“Se tivesse um teto, poderíamos até mesmo enquanto chove...", meus pensamentos foram interrompidos por um raio que cortou o céu. “Melhor evitar os dias chuvosos; um raio poderia cair enquanto voamos”, concluí rapidamente.

Finalmente, retornei ao presente quando avistei a entrada de uma caverna, aninhada no sopé de uma montanha íngreme. A floresta ao redor era um verdadeiro espetáculo visual, livre de predadores perigosos, e a montanha parecia inabalável, tão sólida quanto uma rocha.

De fácil localização e ainda posso desfrutar da vista deslumbrante todas as manhãs, um refúgio perfeito. Cada minuto — na verdade, um dia inteiro — que passei cavando com minhas próprias mãos valeu a pena.

Próximo à entrada da caverna, desci do tronco e o deixei cair suavemente no chão.

— Vaeli, mass ye! — anunciei minha chegada na língua da garota, empolgado.

— Mye — respondeu ela, correndo na minha direção.

— Chuva. — Apontei para as nuvens se aproximando rapidamente. — Guardar. — Em seguida, indiquei o tronco.

Ela assentiu com a cabeça, parecendo entender minha intenção imediatamente. Quando Vaeli se aproximou para me ajudar a empurrar o tronco, coloquei gentilmente um braço na frente dela, sinalizando para que se afastasse um pouco.

Estalei os dedos das mãos e ergui a madeira diante de mim. Com um único e fluido movimento, parti-a em dois pedaços que caíram graciosamente no chão, ao menos foi o que pareceu para a menina. No entanto, a verdade por trás desse feito impressionante era a minha habilidade de telecinese. 

Os olhos da jovem se arregalaram, seu rosto exalando admiração enquanto observava meu feito. Ela tinha conhecimento de algumas das minhas habilidades, mas o mistério por trás de como eu as fazia funcionar continuava a fasciná-la. Era gratificante testemunhar o brilho em seus olhos, sabendo que eu era capaz de despertar esse sentimento genuíno em outra pessoa.

Com a lenha dividida, rolamos os troncos para dentro da caverna, sentindo o cheiro úmido e terroso encher o ar enquanto entrávamos no nosso refúgio.

Lá no fundo da caverna, ao lado da mesa de pedra que eu mesmo esculpi, largamos a lenha. Em cima da mesa, a mochila da garota jogada, com seus pertences espalhados desordenadamente.

— Vaeli, arrumar. — Encarei a jovem enquanto apontava para a bagunça na mesa.

Ela inclinou a cabeça com uma expressão confusa.

“Parece que a palavra 'arrumar' ainda não faz parte do seu dicionário.”

— É... tipo... Eeja? Vuajo? — gaguejei, tentando lembrar de um equivalente na língua da menina.

— Éja? Aruma?

— Isso aí... acho.

Esses mal-entendidos linguísticos são menos frequentes agora. Foi um desastre quando ela quis ir ao banheiro pela primeira vez; pensei que ela estava furiosa comigo e não queria minha companhia.

— Olha. — Peguei um objeto da mesa e o coloquei na mochila.

— Éja é aruma?

— Hum... Sim. — Balanço a cabeça para confirmar.

No fim, ela começou a arumar as coisas depois de eu dar o exemplo.

Voltei meu olhar para fora da caverna e comecei a pensar no meu dia.

— Por pouco não deixei a chuva me pegar. — Um suspiro de alívio escapou de mim.

As primeiras gotas de chuva caíram lá fora, como aplausos após um dia extenuante. Contudo, o cansaço que eu sentia não era físico; era como um fardo na mente.

O desgaste continua implacável, não importa o que faça, sinto-me exausto. Às vezes, fechava os olhos, esperando dormir, mas nada acontecia. A mente estava tão agitada quanto o tempo lá fora.

— Bluq! — gritou a garota, que correu em direção à chuva.

— Opa, vai parando, mocinha. — Agarrei-a pelo ombro enquanto passava por mim. — Nada de virar peixinho de água doce. Você pode ficar resfriada, e isso seria um grande problema para nós, especialmente para mim, que terei que cuidar de você. 

Mesmo que não entendesse a maioria das palavras, ela sabia que a estava repreendendo. Dói-me ter que privá-la de sua diversão, mas é para o bem-estar dela.

— Agora, sente-se enquanto eu preparo algo para nós dois comer.

A garota fez um biquinho, mas, com um sorriso resignado, concordou. Ela dirigiu-se até o fundo, pegou um bloco de pedra da mesa que servia como banco e, com imensa dificuldade, o arrastou até a entrada. Finalmente, com um suspiro leve, acomodou-se para desfrutar da chuva que caía.

“Pelo menos ela se sentou”, pensei com alívio. Era reconfortante ver que ela estava seguindo minhas instruções, mesmo que não da forma que eu imaginava.

* * *

Os trovões rugiam furiosamente lado de fora, sobrepondo-se ao crepitar das chamas sob o caldeirão improvisado feito do casco retorcido da nave espacial. Nele, fervia o ensopado que eu havia preparado com carne do gigantesco porco monstro que derrubei na floresta e frutas silvestres selecionadas por Vaeli.

As bolhas explodiram e liberaram seu aroma delicioso, o vento da tempestade o trazia até meu rosto ao mesmo tempo que quase apagava as chamas. O cheiro da chuva misturado com o cheiro da comida era um dos poucos prazeres do meu dia. 

Aquela região era marcada por chuvas frequentes e uma abundância de animais, o que era conveniente para mim. “Isso é uma baita sorte!”, pensei contente com minha nova morada.

Com uma colher de metal que confeccionei, mais uma vez utilizando partes da nave, mexi a sopa e provei um pouco. O sabor era uma mistura de doce e amargo, e a textura lembrava a de carne moída. Batizei esse prato de “Amargura de Carne”. Não era o melhor prato que já preparei, mas era o que estava disponível no momento.

Ao sentir um par de olhos curiosos, virei-me e encontrei o semblante apreensivo da garota, cujos olhos, claro, não estavam fixos em mim, mas na panela fumegante. Um leve sorriso escapou dos meus lábios sem eu perceber.

Caminhei em direção à mesa de rocha robusta; a menina estava sentada no banquinho de pedra, com colher e tigela de madeira em mãos. Sem dizer uma palavra, tomei sua vasilha e retornei à panela.

Retiro a colher de dentro da sopa. Em seguida, balanço-a para limpar. Logo depois, transformo-a em uma concha para poder pegar mais porções para a garota.

“Acho que os charlatões da telecinesia do meu mundo ficariam com inveja desse poder.”

Coloquei todo o caldo que cabia e levei para a garota. Botei a tigela sobre a mesa. Sua expressão se iluminou com entusiasmo infantil e, sem hesitar, levou a primeira colherada aos lábios.

No instante seguinte, um gemido abafado ecoou pela caverna. Vaeli recuou e cuspiu ferozmente, com os lábios e a língua vermelhos.

“Droga, eu esqueci a temperatura!”

Rapidamente, peguei a colher da mão dela. Mergulhei-a na sopa fumegante e tirei uma generosa porção. Soprei com cuidado, e o vapor condensou-se sobre a colher, formando grumos de gelo instantâneo. O líquido esfriou numa fração de segundo.

Ofereci a colher congelada para Vaeli, que a pegou com os dedos trêmulos. Seus olhos grandes brilhavam com as lágrimas que forçou a não soltar.

Depois de se recuperar, esperou pacientemente, observando os vapores se elevarem da comida com olhar atento. Após alguns instantes, mergulhou novamente a colher e soprou de leve, satisfeita ao constatar que a temperatura finalmente estava apropriada.

Enquanto a jovem parecia satisfeita com sua refeição, direcionei minha atenção para o caldeirão fumegante. A vapor dançava lentamente no ar, enquanto o caldo fervilhava suavemente sob uma fina camada que se formava na superfície.

A fumaça da fogueira desaparecia rapidamente, carregada pelas correntes de vento na caverna. Com meu poder de telecinese, eu era capaz de acender o fogo dentro da caverna sem preocupações de sufocar Vaeli com a fumaça.

Afundei a concha-colher no líquido quente, enchendo-a até a borda. Levei a colher aos lábios e saboreei um pouco antes de engolir. A carne se desfez na minha boca, enquanto se misturava com as frutas doces. Então pegue a panela com as mãos nuas e bebi direto da fonte.

Sentia o vapor quente subindo pela minha garganta e nariz enquanto engolia. A fumaça escapava em espirais brancas pelo meu nariz, como se eu fosse um dragão satisfeito. Em seguida, soltei um arroto acompanhado de uma grande quantidade de vapor pela boca. Suspirei de prazer no final, completamente satisfeito.

De repente, ouvi aplausos, apesar da chuva que caía. Era Vaeli, com um sorriso largo e olhos impressionados, observando-me. Recoloquei o caldeirão e, de forma dramática, curvei-me como se tudo isso tivesse sido ensaiado. Seu sorriso se ampliou e eu ri em resposta, feliz por vê-la se divertir.

Mais tarde naquela noite, enquanto a chuva começava a diminuir e os trovões cessavam, eu me encontrava acordado, como sempre. A garota dormia tranquilamente em sua cama de palha, coberta por peles de animais.

Sentado em frente à fogueira, com o caldeirão vazio no meu colo, observava as chamas dançarem ao meu comando. Elas se transformavam em números, símbolos e fragmentos de letras que eu lembrava. Era um espetáculo hipnotizante, mas meus olhos se sentiam cansados pela luz.

A energia que fluía do meu corpo era capaz de tudo. Seu potencial era quase ilimitado, mas tinha uma fraqueza: o conhecimento. Se eu comparasse minha situação a uma impressora 3D, a energia seria o material e a informação seria o modelo. Quando combinadas, eu poderia alterar a própria realidade.

“Teletransporte, mapa, localizador, rastreador...” recitei mentalmente as habilidades úteis, qualquer uma delas serviria para encontrar o Livro. “Eu sou como um faz-tudo que não sabe fazer nada, irônico”, pensei com um toque de autodepreciação.

Com um movimento delicado, ergui minha mão esquerda e estendi os dedos, acendendo cinco pequenas chamas. Uma a uma, fui apagando-as, até restar apenas uma, a chama do dedão. Com um sopro suave, ela se dissipou no ar, enquanto eu murmurava:

— Feliz aniversário de duas semanas para mim.

Era uma forma de marcar o tempo em um mundo onde, até então, eu não sabia a data. Cada dia naquele planeta se tornava especial para mim enquanto eu os contava. No entanto, à medida que os dias passavam, sentia-me cada vez mais cansado. Talvez, se eu conseguisse encontrar o livro, meu cansaço desaparecesse.



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