Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Alluna Idle


Volume 1

Capítulo 11: Arte dos nove pontos

Lira lentamente abriu seus olhos e observou o teto de madeira escura, polida e bem cuidada.

“Mãe.” Murmurou assim que despertou. Aos poucos ela sentou-se, estava no sofá da sala de Philip e Merlin, que pareciam estar por perto. “O que diabos foi esse sonho?”

Ela se sentia confusa. Depois de ter aberto a primeira tranca, ela ouviu sua mãe, Laura, e sentiu como se tivesse se lembrado de alguém que há muito tempo esqueceu. Mas por que diabos eu esqueceria da minha própria mãe?

“Acordou, então?” Lira ouviu uma voz e se virou na direção dela. Philip estava parado ao lado da porta, segurando uma bandeja com uma chaleira branca e alguns biscoitos. 

Ele lentamente se aproximou, colocou a bandeja na mesinha do centro da sala e sentou-se de frente para a menina.

“Como se sente?”

“Cansada...” Respondeu ela, pegando um biscoito na bandeja e o comendo. “Com o corpo dolorido e te odiando muito.”

“Então eu não perdi o jeito depois de todos esses anos.” Ele riu sozinho. Um silêncio desconfortável tomou o quarto por alguns segundos.

“Eu ouvi o que você disse.” Lira falou de repente.

“Disse quando?”

“No caminho para cá.” 

“Estava acordada, então?” Philip brincou, mas dava para sentir um pouco de nervosismo em sua voz.

“Talvez… Não sei ao certo. Mas consegui ouvir você.” Lira se esclareceu. “É verdade?” Perguntou, nervosa.

“O quê?” Philip parecia irritado. “De eu me culpar?” Ele deu uma pausa melancólica, enquanto seu rosto se fechava numa carranca raivosa. “De eu me odiar por ter matado eles? Por ter criado monstros sedentos por sangue e morte?” Sua voz ficou carregada de decepção por um breve momento e seus olhos começaram a lacrimejar. “Sim, tudo o que eu disse era verdade.” 

Os dois evitaram olhar no rosto um do outro. Lira sentia-se envergonhada por ter pressionado Philip, e ele se arrependeu de ter gritado com ela. Havia corrido uma distância que até ele tinha dificuldade quando era mais jovem.

“Coma seu lanche, depois disso vou te ensinar algumas coisas.” Ele se levantou e começou a sair da sala. 

Lira bebeu o conteúdo da chaleira conforme pensava sobre o que disse. Até sentir o gosto do “chá”.

Aquilo tinha gosto de chá, mas também tinha gosto de café fora do ponto, suco de limão guardado há algumas semanas ou meses, leite estragado e sal. Ela cuspiu tudo assim que sentiu o gosto.

“O que aconteceu com a Merlin?” Foi a primeira coisa que conseguiu dizer. O gosto ainda não havia saído de sua boca e ela se sentia desesperada.

“Nada, ela só está dormindo.” Philip se virou surpreso e confuso com a agitação repentina de Lira.

“Foi você que fez o chá?” Estranhou chamar aquilo de chá.

“Sim, por quê?” Philip parecia mais confuso ainda.

“Isso aqui não é um chá!”

“Menina, o que você acha que sabe sobre chá? Não pode ter ficado tão ruim.” Ele pegou o copo da jovem e bebeu. Cuspiu no instante seguinte. “Isso não é chá..."

“Eu te disse.”

Os dois riram e não parecia que haviam brigado há pouco. Lira comeu os biscoitos da mesa, enquanto evitava até mesmo olhar para a chaleira.

Quando terminou de comer, acompanhou Philip até o celeiro, onde ficava seu escritório. No entanto, em vez de subirem a escada que levava até lá, subiram a da esquerda.

Ficaram de frente para uma porta de madeira e Philip destrancou os dois trincos e a escancarou. O cômodo era um espaço grande e sem móveis.

No centro havia um boneco de feno fincado num pedaço de madeira preso ao chão, e nas paredes havia ganchos com equipamentos presos, os da direita sendo feitos de madeira ou materiais semelhantes, e os da esquerda sendo de ferro. 

“Certo...” Philip se aproximou dos equipamentos de madeira e pegou uma espada simples de cabo de uma mão. “Comecemos então, sente-se aqui e me ouça.”

A garota sentou-se onde o velho havia indicado e ficou vendo-o se aproximar do boneco.

“Se lembra de qual classe eu disse que era era, Lira?” Ele perguntou enquanto olhava a própria lâmina.

“Assassino.”

“Exatamente.” Ele aproximou a espada de treino no que seria a  garganta do boneco. “Somos caçadores, mas acima de tudo, exterminadores, e todo assassino que se preze tem uma técnica.”

Ele se afastou um pouco do boneco e ficou em posição. Firmou uma base longa com as pernas e deixou a lâmina da espada para trás, com uma das mãos. Com a outra parecia que estava mirando em várias partes no corpo do alvo a sua frente.

A menina mal conseguiu ver quando ele agiu. Em uma série de  movimentos rápidos, ele perfurou o ombro, o braço, o olho e bateu com a coronha da arma na garganta. Muito feno voou do boneco no meio de tantos golpes.

“O que foi...” Lira parecia aturdida e confusa.

“Isso é técnica, Lira.” Disse de maneira ofegante. O suor escorrendo da testa mostrou um esforço maior do que ele aguentava. “A forma como usamos a lâmina e o intuito dela contra o inimigo são as coisas que mais definem um assassino e a própria técnica em si. A que eu aprendi do meu primeiro mestre é a que vou passar para você.”

Ele começou a explicar a técnica para Lira. Chamava-se Arte dos Nove Pontos, onde o objetivo era acertar uma sequência de golpes em nove pontos diferentes do oponente.

“Parece fácil.” Lira comentou depois de ouvir a explicação.

“Na teoria parece, o problema está nisso aqui.” Ele pegou um lápis que tinha no bolso e o jogou para Lira. 

No reflexo, ela agarrou o lápis, mas ficou bem confusa com aquilo.

“Nesta técnica deve-se atacar em um tempo menor que você levou para agarrar o lápis.”

“Espera, isso é impossível.” Ela disse. “Você com só quatro pontos levou mais tempo que isso.”

“A técnica original não é a que eu uso.” Philip comentou enquanto ajeitava o boneco recém destruído. “Ela foi feita por um herói assassino capaz de usar mana, ele se aprimorava para fazer a técnica. Então é obviamente impossível para nós fazermos em um tempo tão curto.”

“Então como você resolveu isso?”

“Com a distância.” 

Philip novamente ficou de frente para o boneco com a espada em posição e começou a repetir os movimentos dos nove pontos, mas desta vez lentamente.

“Na base, ela serve para imobilizar o inimigo. Acerte o ombro para empurrá-lo, depois no braço para soltar qualquer arma que tenha, em seguida no olho para cegá-lo." Ele fez uma breve pausa enquanto via o olhar fixo que Lira tinha sobre ele. “No golpe seguinte, se não for rápido o bastante, a pessoa conseguirá se esquivar ou se afastar. É aí que entra o golpe na garganta, o inimigo ficará atordoado e você prosseguirá com os outros pontos.”

“E quais são eles?” Perguntou curiosa. Ela tinha um olhar sedento por conhecimento, como uma criança querendo doce.

“Melhor você não saber no momento.” Philip disse enquanto descansava a espada em mãos. “Se você se tornar boa nesses quatro movimentos, já será um bom começo. Então chega de teoria, hora da prática.”

Pelas quatro horas seguintes, Philip ensinou a Lira o básico da esgrima. Ensinou-lhe posturas e a fez praticar, corrigindo os mínimos detalhes. 

Fez ela lutar contra ele em “estilo livre”, usando as posições básicas que havia aprendido. Ela nunca ficou tão dolorida na vida. Os golpes não tinham força, mas tinham muita precisão. 

O homem acertava nas aberturas que ela criava com os erros de sua postura. Ela tentava corrigi-los e continuava lutando, apesar da dor.

Lira sabia que por debaixo das suas vestes havia roxões enormes e alguns arranhões pelos tombos. 

Mas eu posso aguentar mais. Pensou pouco antes de voltar a atacar.

Philip, percebendo seu estado, mantinha-se preocupado a cada novo golpe. Ela não estava aprendendo com seus erros.

“Chega, Lira!” Ele gritou de repente. “É o bastante.”

“Não!” Lira gritou de volta, arfando de dor e irritada. “Eu aguento!”

“Não, não aguenta.”

“EU AGUENTO SIM!” Gritou ainda mais forte que antes. Ela avançou com tudo com o único golpe que ela aprendera corretamente do Philip, uma estocada direta no meio do peito.

Philip logo se aproveitou do erro de sua discípula, que fez uma base mal feita. Ele desviou da lâmina e a garota passou reto, errando completamente o golpe.

Com um último vislumbre, ela viu o cabo de espada vindo rapidamente em sua direção. Foi doloroso.

Um golpe preciso entre o ombro e o pescoço fez Lira cambalear para o chão. Seu braço inteiro formigava e era difícil sequer mover os dedos. Ela gemia de dor.

 “Satisfeita?” Philip disse enquanto largava a espada e andava até Lira para cuidar do machucado. “Peguei leve, podia ter feito você ficar sem sentir ou mover o braço por horas.”

Lira queria retrucar e gritar com ele, mas a dor era tanta que até falar se tornou difícil. Philip a pegou da mesma forma de quando ela desmaiou e a levou para casa o mais lento que conseguia. 

O menor movimento dele causava uma dor intensa nela, mas não foi capaz de reclamar. Aquela dor fez a clareza voltar à sua cabeça.

“Você foi uma idiota se forçando daquele jeito.” Philip disse irritado.

Eu sei. Lira pensou. Ainda era uma tarefa difícil falar algo sem ter uma onda de dor logo em seguida.

“Numa luta real de vida ou morte, isso seria algo incrível. Mas estamos em um treinamento. E você estava enraizando erros demais nos seus movimentos. Se entregou à raiva no pior momento.”

Difícil não sentir raiva quando está sendo golpeada de todos os lados.

“Assassinos são impassíveis, Lira, nossas emoções vêm em último lugar.” Philip pareceu se lembrar de algo e uma expressão fria tomou posse do seu olhar irritado. Era amedrontador. “Acho que foi por isso que eu quis sair...”

Ele ficou em silêncio a partir daí. Seu rosto permaneceu igual até ficar de frente para a porta de sua casa. Com um sorriso falso, tentando disfarçar a expressão que tinha antes, ele abriu a porta.

Merlin estava parada com os braços cruzados e olhando furiosamente para Philip.

“Eu não te disse para maneirar?” Ela perguntou irritada.

“Ela que passou dos limites, eu apenas lhe ensinei uma lição.” Philip levou a jovem até o sofá da sala e a deitou com cuidado. Merlin os seguia logo atrás.

“E fez isso do mesmo jeito que fazia com seus alunos antigos?”

“Talvez, mas isso não importa.” Ele dispensou o assunto balançando as mãos e se afastou de Lira em seguida. “Apenas cure ela para agilizar as coisas.”

“Eu não faço isso há muitos anos, sabe disso não é?” Ela disse enquanto se agachava próxima ao sofá. 

Merlin esticou uma das mãos para perto da luxação no ombro e começou a murmurar algo.

“Luz verde que me guia, ajude esta alma debilitada a percorrer seu caminho sem grandes problemas...” A cada palavra que Merlin dizia, um brilho verde surgia ao redor de sua mão e do ferimento.

Ele trazia uma sensação confortável para Lira, era quente e aconchegante. A dor parecia ir embora a cada segundo que se passava.

“Lhe suplico, guie-me por essas linhas e caminhos infinitos para que eu possa ajudar a alma ferida em minha frente...”

Alma ferida? Lira estranhou o que Merlin estava recitando. Eu machuquei meu ombro, não minha dignidade.

Mesmo com essas palavras estranhas, o ombro já não doía e apenas um leve formigamento no braço restou, que já estava desaparecendo.

“Luz verde, venha na sua forma perfeita e elimine as dores e aflições deste pobre ser. Cura!Ela enfatizou grandemente a última parte. O brilho verde se dissipou e a dor de Lira sumiu por completo. Mas em vez de agradecer, olhava torto para Merlin tentando entender o que diabos foi tudo aquilo.

“Qual o problema?” Merlin perguntou preocupada.

“O problema é a forma como você faz magia.” Philip retrucou. Ele estava com os braços cruzados e olhava para elas duas, com um sorriso cômico.

“Qual o problema com ela? É a forma que eu achei de fazer o feitiço de cura.” Merlin comentou, parecendo indignada com Philip.

“Você já fez esse feitiço tantas vezes, como diabos ainda precisa falar esse roteiro de teatro para invocar a magia?”

“Como eu disse, faz muito tempo que não fazia isso.” Ela se levantou devagar, levemente ofegante quando o fez. Limpando o suor que escorria pela testa, continuou. “Mal me lembrava o fluxo da minha própria mana.” Falou com raiva, quando de repente suas pernas pararam de obedecê-la e tombou para o lado.

Philip foi mais rápido e a segurou antes que fosse ao chão. Ela estava com a testa muito quente e suava cada vez mais. Seus olhos começaram a lacrimejar e sentiu todo seu corpo ficar cansado de um instante para o outro.

“Talvez não tenha sido uma boa ideia fazer uma magia depois de tanto tempo, não é?” Ele comentou, forçando um sorriso de canto de boca.

“Cala...” Merlin sentia dificuldades de falar, sua respiração estava lenta e parecia muito exausta. “... a boca.”

“Lira, já passa das dezoito horas...” Ele se virou para a garota enquanto enxugava o suor na testa de sua esposa. “Por que não come algo e vai dormir? Deve estar cansada.”

Lira não estava cansada, mas entendia o significado por trás daquele pedido. Ela se afastou, pegou duas frutas na cozinha e subiu para o seu quarto. Quando passou na frente da porta do quarto do casal, viu os dois juntos na cama.

Philip estava sentado na beirada, passando um lenço de seda na testa de Merlin, cuidadosamente, enquanto acariciava seus cabelos. Sempre que sua esposa quase dormia, o homem dava um leve peteleco no seu nariz.

“Não estou tão mal assim, não precisa se preocupar.” Disse com a voz rouca e tentando manter os olhos abertos. “Só preciso dormir um pouco.”

“Não vou deixar você morrer para uma doença de demônios, Merlin.” Disse, passando mais uma vez o pano de seda. Sua voz tinha um tom preocupado e fúnebre. Tentava reprimi-lo, mas os sentimentos que tinha transbordavam até mesmo em seu rosto. “Não posso deixar você passar do limite como da última vez.”

“Só estou cansada, Phili… Só isso.”

“Da última vez que disse isso, você dormiu por um ano inteiro.” Falou, enquanto se agarrava a uma das mãos de sua esposa. Ele olhou suplicante para ela. “Por favor, não durma.” Segurou um soluço, que tentou escapar da garganta, quando disse isso.

Os dois se abraçaram por algum tempo, sem dizer mais nada.

Lira se afastou achando que havia interrompido algo pessoal demais para uma estranha como ela se intrometer.

Foi para o seu quarto correndo e se deitou, sem comer as frutas que havia pegado. Ficou pensando no que havia acontecido com Merlin no passado para estar debilitada desse jeito.

Quando o sono veio, ela sonhou com portas e trincos gelados e pesados.



Comentários