Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Alluna Idle


Volume 1

Capítulo 7: O que tem atrás da porta

Na noite passada, Lira sonhou enquanto dormia em um galho no alto de uma árvore grande e velha.

Seu corpo parecia mais frágil, menor e pesado do que com o que estava acostumada. Morria de fome e medo, deitada em uma almofada conforme olhava para o teto, chorando.

“Não precisa chorar, pequena.” 

Ouviu alguém se aproximar e, com mãos gentis, uma mulher sem rosto pegou Lira no colo. Mesmo sem rosto, era possível sentir o carinho e afeto em sua voz e ações.

“Você é tão pequena.” Ela falava em um tom baixo e relaxante, balançando-a levemente enquanto brincava com suas pequenas mãos. “Como será que você vê o mundo, hein?”

“Com os olhos.” Lira ouviu uma voz grave e forte a distância, e sua risada era tão grave quanto. “Como está nossa pequena?”

“Muito bem, ******.” A jovem ouviu um som incompreensível. Não entendeu direito o motivo.

“Nossa terceira filha.” O homem se aproximou e a ruiva pôde ver que ele também não possuía rosto, mas sua barba longa e vermelha quase lhe tocava.  “Bem-vinda ao mundo, Lira.” 

O espaço mudou e tudo ficou escuro. Um estrondo alto soou e o som de madeira quebrando pôde ser ouvido, e logo após, escutou-se um grito de pura dor.

Lira abriu os olhos, morrendo de medo, com as mãos tremendo e o corpo inteiro suando.

“Não posso abrir aquela porta.” Falou para si mesma, quase chorando. “Eu não vou aguentar!”

Então ela ouviu o farfalhar de folhas e quando olhou na direção do som, enxergou um bando de macacos asa de carne olhando para ela com curiosidade.

Macaco asa de carne era uma espécie de macaco que evoluiu pela mana. Eram semelhantes aos macacos-aranha, exceto pelos braços extremamente mais longos e grossos.

“Olá.” Lira foi cumprimentá-los, mas eles se assustaram com o menor movimento. 

Abriram os braços e pularam dos seus galhos para o chão. De repente, os pelos de seus braços e pernas começaram a se unir, formando algo parecido com uma asa. Os macacos planaram para bem longe dali.

A menina ficou surpresa e deu risada da situação. Ela pegou a bolsa e colocou nas costas, o que a fez sentir todo seu peso de uma vez. Perdeu o equilíbrio e quase caiu do galho, mas conseguiu agarrar-se ao tronco da árvore e se acalmar.

Pegou as adagas na bolsa e, agarrada à árvore, desceu pelo tronco da mesma forma que subiu. Quando chegou ao chão ficou olhando ao redor, pensando no que faria agora.

“Talvez conseguir comida.” Ficou murmurando enquanto andava de um lado para o outro. “Ou não, talvez seja uma boa conseguir água, tenho só um cantil que nem cheio está.” Ela parou e, ao perceber o que disse, ficou com muita raiva. “O maldito do Philip nem sequer me deu um cantil cheio!” Vociferou.

Ela soltou a bolsa e caiu de joelhos, sentindo-se muito desanimada.

“Droga.” Deitou no chão, com os braços e pernas bem esticadas. “O que diabos eu faço agora?”

Lira ficou olhando para as folhas lá no alto, pensando que não conseguiria passar daquele teste e não cumpriria o desejo que tinha no seu íntimo. 

“Pense, Lira.” Ela sentou-se, cruzou os braços e pernas, fechou os olhos e começou a pensar nas possibilidades. “Na bolsa tem um rolo de linha de nylon. Talvez eu possa...” Uma lâmpada acendeu em sua mente. “Acho que vai dar certo. Mas se eu ficar carregando essa bolsa vou me cansar mais rápido.”

Ela procurou dentro da bolsa o rolo de nylon e pegou o resto de maçãs que tinha. Enquanto procurava um lugar alto para deixar a bolsa, ficou comendo as maçãs. Quando achou um galho baixo e largo o suficiente para se deitar, marcou um X na base da árvore e começou a escalá-la até o galho.

Deixou a bolsa ali e pegou mais algumas coisas, como o lampião da noite passada e uma bússola. Pulou de volta no chão sentindo-se muito mais leve e determinada do que antes.

“Hora de procurar uns galhos.” 

Na hora seguinte, a jovem fitou cada galho caído no chão daquela floresta, procurando o galho perfeito, um que fosse longo e grosso o suficiente.

Demorou um pouco, mas enfim o achou. O galho era maleável e tinha um pouco mais de noventa centímetros, simplesmente perfeito para o trabalho que viria a desempenhar.

“Agora, preciso de um lago.”

Segurando o galho, ela começou a caminhar, prestando atenção nos cheiros e sons. Após algum tempo, começou a ouvir o som de água corrente, e seguiu lentamente na direção do som. Logo depois chegou em uma pequena correnteza.

Ela tinha menos de 10 centímetros de largura, mal tinha profundidade e vinha correndo no sentido norte-sul.

“Deve ter um rio no começo.” Lira comentou antes de se abaixar para beber um pouco de água. Sentiu que era bem fria e docinha, então pegou o cantil e encheu o máximo que pôde daquela água.

Voltou a caminhar, agora, com uma direção para seguir. Conforme foi contornando o pequeno rio, o terreno ficava cada vez mais inclinado e cansativo de se subir, mas aquela jornada toda valeu a pena.

No topo dessa colina, Lira encontrou um lago cristalino, com algumas vitórias-régias. Um sorriso de alegria se abriu em seu rosto.

“Hora da verdade.” Com os pés dentro da água, ela pegou o galho e amarrou o fio de nylon na ponta. De repente, sentiu alguma coisa em seu pé. Quando parou para olhar, viu diversos peixinhos indo e voltando a cada movimento dos seus dedos. “Temos peixes...” Quando deu o último nó no fio de nylon, olhou orgulhosamente para a vara. “E uma vara de pescar. Agora está na hora de conseguir as iscas.”

Ela deixou a vara perto do lago e voltou um pouco do caminho que havia vindo. Cavou um buraco no chão e achou o que estava procurando. Várias minhocas se contorciam, tentando voltar para debaixo da terra, mas Lira rapidamente as agarrou

Voltou para o lago com cerca de 15 minhocas frescas, iscas perfeitas quando não se sabia os peixes que habitavam um lago.

Ela pegou uma das minhocas e foi colocar na ponta da vara, mas percebeu que não tinha um anzol.

Lira olhou para a bussola na sua mão, ela tinha uma tampa que com o apertar de um botão abria e mostrava as direções, porém o gancho que segurava essa tampa era bastante longo, curvado e pontiagudo.

“Achei meu anzol.”

Levou algum tempo para Lira quebrar a tampa e tirar o gancho, mas quando o fez, percebeu o quanto ele seria perfeito para um anzol.

Amarrou o seu mais novo anzol na ponta do fio de nylon e colocou a minhoca nele. Naquele resto de tarde ela pescou pela primeira vez na sua vida, e descobriu que era horrível nisso.

Das quinze iscas que ela jogou na água, apenas cinco cinco deram resultados, e dessas cinco, somente três peixes foram reivindicados. Lira culpou a qualidade do seu anzol, mas ela mesma duvidava dessa afirmação.

Olhou para os frutos de sua cansativa e entediante pesca com uma feição desanimada.

“Isso não vai dar para uma semana, definitivamente.” Já estava desistindo daquilo e pensando em algum outro plano, quando se lembrou das adagas que carregava consigo.

“Acho que isso vai funcionar.” Lira se despiu e ficou apenas com as roupas íntimas e com as duas adagas. Então, pulou na água.

Ela teve duas dificuldades lá embaixo. A primeira era a água muito fria, e a segunda eram os peixes. Aparentemente era muito difícil acertar um peixe debaixo d’água o golpeando com uma adaga. Ela tentou algumas vezes, entrava e saía da água cada vez que falhava, mas não conseguiu pegar nenhum peixe.

“Isso não está dando certo.” Lira reclamou, arfando e deitada com o sol sobre ela, tentando tirar o frio do corpo. As adagas, por mais que fossem leves, era muito difícil balançá-las na água, e ter força o bastante para cortar um peixe era a pior parte para ela. Pensou em voltar a pescar, mas teria que conseguir mais iscas e com sua desculpa sobre o anzol, refutava ainda mais aquele pensamento. Porém, foi olhando para a vara de pesca que teve uma ideia.

Pegou a vara, tirou o fio de nylon e segurando a adaga contra a ponta do galho ela amarrou os dois. O resultado foi uma “lança” bem improvisada e capenga. Logo desfez a coisa toda e tentou mais algumas vezes, até que finalmente chegou em um resultado que lembrasse uma lança.

Perto da água, Lira esperou. Ficou observando os peixes se aproximarem e se afastarem logo em seguida. Ela queria ter certeza de que acertaria.

Uma carpa se aproximou lentamente, ficando quase colada com os pés de Lira e, em um movimento rápido, ela avançou com a lança. A carpa mal teve tempo de reagir e foi perfurada pela lança.

“Mais fácil que pescar.” Lira ficou olhando para o peixe na ponta da sua arma com um sorriso animado.

Ela passou algumas horas assim e no fim disso estava exausta, mas com um estoque de quinze peixes. Tirou a adaga da ponta da lança e fincou cada um dos peixes no galho de madeira, para facilitar o carregamento. Olhando para cima, percebeu o céu laranja, denunciando o fim da tarde.

Aprontou todas as suas coisas e voltou correndo para onde sua bolsa estava. Levou algum tempo até ela encontrar.

Lira desceu com a bolsa e decidiu que naquela noite comeria no chão, aquecida.

Com uma busca breve, encontrou gravetos secos o suficiente para a fogueira daquela noite. Ajeitou eles e pegou a pedra de sílex dentro da sua bolsa.

A ruiva acendeu a fogueira batendo a faca contra o sílex e criando faíscas. Levou algum tempo até as chamas ganharem força, mas ela esperou pacientemente, sentada de frente para a fogueira, sempre evitando que o fogo apagasse.

Pegou dois peixes e, usando uma das adagas, cortou-os e tirou suas espinhas e escamas. No final, o resultado ficou bem ruim, com alguns pedaços pequenos de espinhas ainda sobrando no meio da carne, mas era melhor que nada.

Lira empalou os dois peixes usando um graveto e os colocou sobre o fogo. Ficou esperando os peixes assarem, e para passar o tempo, observava o movimento do fogo. As idas e vindas das chamas a hipnotizavam, esvaziando sua mente.

No meio das chamas, ela começou a ver a sua mãe, lendo seus livros com toda a atenção do mundo. Um sorriso feliz e nostálgico surgiu no rosto de Lira. 

As chamas tremeluziram e a imagem mudou. Agora, sua mãe estava estirada no chão, com a cabeça longe do corpo e os pulsos cortados. Lira pensou ter ouvido um estrondo e um grito agonizante vindo das chamas e ficou desesperada. Suas mãos suavam, sua cabeça latejava de dor e seus olhos queimavam com o tempo seco e as lágrimas que não saíam.

Os gravetos estalaram e ela teve um choque de realidade. Tombou para trás, percebendo o quão perto ficou do fogo. Olhou para o lado e viu que os peixes estavam prontos. Pegou um deles e rapidamente o comeu, tentando distrair sua mente.

Quando terminou de comer, pegou suas coisas e subiu para um galho alto e seguro, para poder dormir. Ficou sentada de costas para a árvore, observando as estrelas e esperando o sono chegar. 

Levou algum tempo até sentir sono e quando finalmente apagou, sentiu-se até mais leve. Foi como se ela estivesse sendo carregada por um rio quente e aconchegante.

Até que tudo isso sumiu em um único instante e a porta da noite passada apareceu em sua frente, parecendo ser ainda mais assustadora. Dava para ver uma luz saindo debaixo da porta e Lira conseguia ouvir sons vindo de trás dela.

“Lira, venha!” Uma voz masculina e grave disse. A jovem reconhecia ela, mas não queria admitir ou se lembrar disso. “Temos que ir às compras, lembra?” Ela queria abrir a porta, mas seu corpo não se movia. Queria dizer tudo o que não pôde dizer para seja lá quem estivesse atrás daquilo, mas não conseguia. O que a impedia era ela mesma, mas Lira não entendia o motivo.

Enfim desistiu, revirou os olhos para a porta e apagou de sua mente. Voltou a dormir e tentou fingir que nada daquilo havia acontecido.

Os dias foram passando e sua rotina se tornou um tédio puro.

Por já ter onde encontrar água e comida, Lira não tinha muitas coisas para fazer, além de contar as folhas de uma árvore e ver o sol ir de leste a oeste. Até seus sonhos eram quase sempre os mesmos.

Toda noite ela sonhava com a porta. A luz estava lá, junto com a vontade e incapacidade de abri-la, porém havia uma coisa diferente: a voz atrás da porta. Às vezes era aquele homem e às vezes uma voz jovial e infantil pedindo para a menina brincar com ela. Os pedidos que vinham da porta também mudavam. Houve uma noite que parecia que a porta estava tendo um diálogo com Lira.

“Lira, por que será que a mamãe tem que contar nossas histórias para esses estranhos?” A voz soava birrenta e, ao fundo, era possível ouvir pessoas e carroças correndo.

“Talvez seja para que eles saibam.” Lira respondeu em seus pensamentos.

“Saibam o quê?”

“Dos perigos que existem no passado e que devemos evitar ao máximo que eles retornem” Lira não entendia de onde aquelas palavras saíram, mas simplesmente saíram e ela sentiu-se muito estranha com isso.

Até que então, na manhã do sétimo dia, ela lentamente abriu os olhos e viu Philip bem perto dela, com uma careta estampada no rosto. Ela se assustou e tombou para o lado, caindo do galho.

Agindo por instinto, pegou a adaga no lado esquerdo do corpo e a fincou no tronco da árvore. Sentiu todos os galhos menores baterem no seu corpo e uma dor latejante crescer em cada junta dela, abaixo da cintura.

Cinco segundos depois, parou de cair quando estava há dois metros do chão. Ela arfava de medo e suas pernas formigavam de dor.

“Tudo bem aí?” Philip perguntou lá do alto.

“Óbvio que não, seu velho desgraçado!” Sentiu que toda sua garganta foi usada nesse grito. “Que porra de ideia foi essa?!”

Com alguns poucos movimentos, Philip desceu até ficar bem perto de onde Lira estava.

“Quer ajuda?” Perguntou.

“Se isso for um teste igual ao da bolsa...” Lira comentou sem olhar nos olhos de Philip. “Eu juro que conto para a Merlin.”

“Ok, eu te ajudo a descer.”

Depois de descer do próprio galho, Philip ajudou Lira a ir para o chão. Quando desceram, Lira deu um soco nele.

“Mereci essa.”

“Mas bem, por que você está aqui?”

“’Por que’, você diz? Seu treino já acabou.”

“Não estou no sexto dia?” Ela parecia genuinamente confusa.

“Este é o sétimo dia de treino, Lira.” 

“Devo ter perdido a conta, então.” 

“Acho que perdeu o equilíbrio também.” Ele levou outro soco da jovem. “Mereci essa também, mas venha, vamos voltar.”

“Espera. Será que dessa vez você pode levar a bolsa? Minhas pernas estão muito doloridas por causa de certo alguém.” Ela olhou irritada para Philip.

“Você não vai esquecer tão facilmente esse ocorrido, não é?”

“Acho que dá para dizer que cair de trinta ou quarenta metros é algo bastante traumatizante.” Lira abriu um sorriso sarcástico.

“Certo, acho que mereço isso.”

Com a bolsa pesada, os dois começaram a caminhar de volta para a fazenda e Lira ficou impressionada com Philip. Mesmo sendo velho, ele conseguia aguentar aquela bolsa muito bem e caminhava sem grandes problemas. Lira, porém, mancava e reclamava de vez em quando mais para si própria do que para qualquer outra coisa.

“Então...” A menina quebrou o silêncio depois de algum tempo de caminhada. “O que vai acontecer agora?”

“Bom, agora você passará pelos treinos.”

“Espera, isso não foi um treino?” Perguntou incrédula.

“Não, estava mais para um teste, e verdade seja dita, você agiu de uma maneira que eu não esperava.”

“Como assim?”

“Você, como dizer isso...” Colocou a mão na têmpora e ficou batendo-a de leve. “Os cadetes da minha época caçavam o que iam comer naquele dia, passavam por problemas diariamente e à noite mal tinham a capacidade de fazer um abrigo improvisado.” Ele deu uma pausa e olhou para Lira, frente a frente. “Você, Lira, fez o extremo oposto. Conseguiu uma fonte ótima de comida para passar os dias, achou um abrigo e ainda não teve nenhum problema com os lobos ou qualquer outro predador.”

“Eu fiz um abrigo?” Lira tentou se lembrar em que momento conseguiu um abrigo.

“Eu considero que ficar no topo das árvores é um ótimo abrigo.”

“Se eu não caísse delas seria melhor ainda.”

Philip virou-se de costas novamente e voltou a caminhar. “Mas acho que você vai ter uma diarréia em algum momento.”

“Por quê?”

“Os peixes que você guardou, na noite passada o último que você comeu estava quase estragando e você não tomou grandes cuidados em evitar os vermes.”

“Que merda.” Lira começava a se arrepender de ter pego tantos peixes, mas foi então que ela percebeu um detalhe. “Você ficou me olhando todos esses dias?”

“Óbvio que sim.”

“Velho pervertido!”

“Se algo acontecesse, eu tinha que estar por perto para te ajudar.”

“Continua sendo um pervertido para mim.”

“Devia se preocupar em ganhar músculos, isso sim.”

“Então você me olhou quando fui me trocar?! Seu velho desgraçado!” 

“Você devia parar de se preocupar com isso, se quer se tornar uma assassina, vai passar por situações bem piores que essas.”

“Isso me parece só uma desculpa para ver alguém quase pelado.”

“Não funciona, já tentei.”

“O quê?”

“Nada.” Philip apertou o passo e se afastou de Lira.

“Não, eu ouvi muito bem...” Lira também apertou o passo. “Como assim já tentou?” A Merlin sabe disso?”

“Foi nela que eu testei.”

“Cada vez mais você parece um pervertido.”

“Esse pervertido se casou por causa desse tipo de desculpa, para sua informação.”

“Então admite que é uma desculpa?”

“Eu não disse nada.” Deu uma risada curta e bem animada.

Os dois continuaram caminhando, com Lira tentando convencer que aquilo era uma desculpa horrível e Philip sempre rindo em resposta.

A caminhada foi divertida, os dois conversaram sobre muitas coisas, apenas matando o tempo. Bem diferente da primeira.

“Falando nisso, o que eu perdi enquanto estava fora?”

“Bem, Merlin nessa última semana fez minhas comidas e petiscos favoritos, mas em vez de me dar alguns, me deu uma gororoba velha que estava guardada, e me expulsou da minha própria cama também.”

“Perdi algumas coisas hilárias então. Mas você ainda não me falou o que vai acontecer agora.” 

 “Bom, muitas coisas eu diria, mas depois eu te falo. Chegamos.” Philip parou na borda da floresta. Lira ficou surpresa, mal viu o tempo passar e pareceu que chegaram rápido demais ali.

“Isso foi rápido.”

“Eu peguei um atalho.”

“E não podíamos ter usado esse atalho quando viemos aqui pela primeira vez?”

“Podíamos. Mas eu queria ver se aguentava uma caminhada.”

Os dois voltaram para a casa de Philip no centro da fazenda. De longe aquela foi a parte mais simples de tudo. Eles pararam na frente da porta antes de entrar. Lira arfava e olhava o número gigantesco de roxões que tinha na perna por conta da queda. Philip não estava tão cansado, ele apenas respirava mais lentamente, recuperando o fôlego.

“Finalmente de volta, não é?” Philip comentou.

“Sim.” Lira esticou as pernas e sentiu uma dor aguda vindo delas. “Acho que quero um banho depois de tudo isso.” Philip abriu a porta olhando para os machucados de Lira, então não viu a frigideira que veio voando na direção do seu rosto.

O baque do metal deu um susto em Lira e a pancada foi tamanha que Philip perdeu o equilíbrio. 

“Phili, você não vai entrar nessa casa enquanto Lira não estiver com vo....!” Merlin gritava com raiva, mas parou no meio da frase quando viu Lira olhando preocupada para Philip, caído e imóvel no chão. “Acho que exagerei...”

Uma hora depois Philip acordou com uma dor de cabeça que há muito tempo não sentia. Ele estava deitado no sofá da sala e na mesinha no centro tinha uma xícara com algo que fumegava. Perto dali, Merlin e Lira olhavam apreensivas para ele.

“Não sabe mirar antes de atirar, Merlin?” Philip resmungou enquanto se sentava devagar.

“Em minha defesa, você não disse que traria Lira tão cedo.” Merlin comentou.

“E eu precisava, você literalmente me obrigou a trazê-la para cá de manhã, ontem à noite. Não me deixou sequer dormir aqui!”

A ruiva começou a dar risada da situação, então Merlin acompanhou e Philip veio em seguida. Todos ficaram rindo por algum tempo.

“Bom, acho que vou tomar banho. Até mais tarde para vocês.” Lira se levantou sentindo a dor nas pernas voltar com tudo.

Foi uma tarefa dolorosa subir as escadas para o banheiro, Lira sentia cada músculo na sua perna doer.

Dentro do banheiro, ela ligou a água quente e esperou a banheira que tinha ali. Aquele lugar era bem compacto, a pia ficava ao lado da porta e o chuveiro logo acima da banheira, por mais que fosse um cômodo pequeno, tinha tudo que um banheiro precisava.

Quando a banheira ficou cheia, Lira entrou nela e se sentiu no paraíso. A água quente diminuiu o tamanho dos machucados e aos poucos, ela sentiu toda a tensão que acumulou nessa última semana ir embora. Foi quando alguém bateu na porta.

“Lira! Quer que eu prepare algo para os seus machucados?” Merlin perguntou do lado de fora.

“Eu aceito Merlin, obrigada.”

“Certo, vai ficar muito mais tempo aí? Já está nesse banheiro faz meia hora.”

“Sério?” Lira olhou para as próprias mãos e percebeu o quão enrugadas elas estavam. “Vou sair daqui a pouco.”

“Certo, esperarei por você lá embaixo.”

Devagar, levantou-se. Um pouco de água transbordou e foi para o ralo perto da banheira. Ela sentia que seus machucados já doíam bem menos. Se secou com a toalha e a enrolou ao redor de si.

Quando saiu para o corredor, foi direto para o próprio quarto. Lá vestiu roupas largas e confortáveis. Sentiu-se uma pessoa nova se comparada ao dia anterior.

Descendo as escadas com menos dificuldades que antes, foi até a cozinha e encontrou Merlin e Philip. Ele tomava uma xícara com chá enquanto segurava um pedaço de carne congelada perto de onde Merlin o golpeou. Ela misturava diversas ervas em uma pasta meio verde e marrom, com bastante empenho.

Lira se sentou na cadeira perto da mesa e ficou olhando Merlin trabalhar.

“O que está preparando?” Lira perguntou curiosa.

“Uma pasta para lesões leves. Depois disso, vou preparar o melhor café que já comeu na vida, Lira.”

“Vou poder comer dessa vez, ou vou ter que comer aquela gororoba do café de ontem?” Philip comentou, gemendo um pouco quando ajeitou a carne no machucado.

“Eu deveria te dar a gororoba pelo o que você fez com a Lira hoje cedo.” Merlin disse irritada.

“Mereci essa.” Comentou, tomando um gole do chá. Ele queimou a língua no processo. “Lira, estou começando a pensar que te treinar só vai me dar azar.”

Quando o remédio de Merlin ficou pronto, ela foi até Lira e passou ele em cima de cada roxão que tinha na perna. No final de tudo, sua perna ficou toda pintada com várias manchas verdes e marrons. Merlin voltou para a cozinha e começou cozinhar alguma coisa.

“Lira, acho que já é hora de te explicar algumas coisas.” Philip falou ao se virar e olhar Lira nos olhos.

“Como assim?”

“Sobre o que vai acontecer a partir de agora.”

“Phili, você não pode esperar a menina comer?” Merlin falou, sem tirar sua atenção do que estava preparando.

“Você vai me xingar de qualquer maneira, então prefiro que seja agora.” Philip voltou a olhar para Lira agora mais sério que antes. “Vou te dar uma rotina de treinamento, que vai ser seguida à risca. Entendeu?”

“Sim.” Lira disse sem hesitar.

“De manhã cuidará do gado e vai cuidar das plantações, perto do almoço comerá uma refeição pesada para aguentar o resto do dia e de tarde vamos treinar esgrima ou caça. Você só não seguirá essa rotina nas segundas, terças e quartas, porque estará na floresta como esteve essa semana.”

“Philip!” Merlin reclamou, mas ele a ignorou.

“Sobreviverá três dias seguidos, de uma maneira completamente diferente da anterior. Entendeu?”

“Entendi.” Lira pensou um pouco antes de responder.

“Eu não ouvi.”

“Entendi.” Falou com mais determinação dessa vez.

“Ótimo.” Ele se levantou e começou a sair da cozinha.

“Aonde vai?” Merlin perguntou.

“Cuidar do gado.”

“Coma alguma coisa antes.” Ela soou preocupada.

“Eu pego algo no estoque.” Philip saiu e pouco depois deu para ouvir a porta da frente.

Desse ponto em diante, as duas ficaram em um silêncio desconfortável até que Merlin terminou o café da manhã. Levou até Lira um bolo e se sentou ao lado dela.

“Me diz como está o bolo.” Fez uma expressão ansiosa. 

Lira cortou um pedaço e o levou à boca. Era doce, porém cítrico, e tinha vários pedaços de alguma coisa que o tornavam crocante. Era estranho de comer, mas não era ruim.

“É bom... de que é?”

“Chocolate com semente de laranja caramelizada.”

“Sério?”

“Sim, é uma receita antiga, bem difícil de fazer na minha opinião, mas posso te ensinar algum dia.”

“Obrigada.” Falou animada, enquanto comia outro pedaço.

“Mas me diz. Como foi na floresta?” 

“Mais fácil do que eu imaginei.”

“É, Philip me contou sobre como você sobreviveu lá. Algo de estranho aconteceu?”

“Não, só tive alguns pesadelos.”

“Sobre?”

“Não sei, só sei que eram pesadelos.” Lira começou a ficar apreensiva ao se lembrar.

“Se lembra como eram?”

“Foi com...” Lira hesitou um pouco antes de dizer, se sentia um pouco envergonhada pelo que ia dizer. “Uma porta.”

“Uma porta?”

“Sim. Alguém falava atrás dessa porta, me chamando ou conversando comigo.” Sentiu as mãos tremerem e quase derrubou o garfo por causa disso. “Eu queria saber o que tinha atrás da porta, ao mesmo tempo que eu não queria abri-la. De alguma forma, sei que o que está atrás dessa porta vai me machucar.” Lira foi falando cada vez mais amedrontada, até que Merlin a abraçou e ela sentiu todo o medo ir embora.

“Está tudo bem. Termine de comer e vá descansar, o remédio vai fazer efeito mais rápido.” Ela se levantou e foi para a cozinha limpar tudo o que sujou preparando o bolo.

Lira terminou de comer aquele delicioso bolo e voltou para cima, meio cabisbaixa. As pernas já não doíam tanto, mas pensar na porta quebrava todo seu bom humor.

Quando chegou no quarto, deitou-se na cama, sentindo todo o conforto que não teve nos últimos dias. Ficou pensando na porta enquanto aos poucos o sono chegava.

Foi na porta que Lira pensou antes de dormir e foi com ela que sonhou.



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