Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 20: Restos de glória

Havia esse uivo incessante de vento naquela tarde. Era úmido e frio, ainda que o sol estivesse a plenos pulmões sobre as cabeças de cada demônio dentro e fora da capital. Capaz de irritar qualquer um que se expusesse por muito tempo, ele cortava por entre os galhos secos e remanescentes daquela colina, num ritmo incessante e inquietante. Assustador e raivoso. Maquiavélico e selvagem. 

Assim eram também os sons que Arnok produzia. Ali, naquela velha e conhecida colina, estava o jovem asa negra, não mais ensandecido como na arena, mas naquele momento não importava. Também havia outros nove cadetes da academia, jovens, filhos de pequenos donos de terra ou de famílias menos abastadas dentro da capital. Todos aterrorizados com seu décimo colega de esquadrão sendo golpeado sem grandes dificuldades pelo asa negra, como se não passasse de um amador.

Não sabiam para quem olhar em certos momentos. Num primeiro instante, mal dava para assumir aquilo como uma luta quando existia mais sangue escorrendo pelo nariz daquele cadete que suor pelo rosto de Arnok, mas então ele cometia um erro e o asa negra era golpeado três, quatro vezes seguidas. Uma leve esperança surgia naqueles homens, antes de Arnok retribuir aqueles quatro golpes com um tão forte quanto. Como um baque dado em um enorme sino de cobre, o cadete foi ao chão. O baque de sua cabeça silenciou tudo ao redor. Fossem os aturdidos cadetes da academia, fosse o próprio frio e úmido vento. Restava apenas a respiração de Arnok e sua fúria resguardada nos seus punhos. Além, claro, do leve som de grama sendo pisada conforme alguém se aproximava. 

— Achei que fosse um pouco mais orgulhoso que isso, Arnok. — Ilja gritou, recebendo os olhares de todos os presentes, exceto do próprio Arnok. O Demonkin estava parado à beira da colina, não muito perto dos cadetes e sendo o mais distante do asa negra. Da onde estava, tinha apenas visão plena apenas do enorme volume negro em suas costas.

Rosto, braços, pernas. Se não estavam encobertos pelas roupas da enfermaria, estavam desfocados pela distância que tinham um do outro. Não restava-lhe escolha além de se aproximar, e a passos lentos o fez. 

— Todos vocês retornem a seus devidos postos. É uma ordem direta de seu capitão de vanguarda, Ilja  Sangoskvamoj. 

N.E.: No primeiro volume, o sobrenome de Malar, mestre de Ilja, era dito como "escamas de sangue". O sobrenome é este em itálico.

Ao ouvirem esta ordem os cadetes, ainda que surpresos, a obedeceram sem pensar duas vezes. A maior parte correu de volta pela trilha que vieram, enquanto uma a minoria mais forte carregou o colega derrubado por Arnok para longe dali. Em momento algum o asa negra se virou para notar o olhar de ameaça dos cadetes. 

Foi somente quando ficaram sozinhos, Ilja e Arnok, que palavras foram proferidas, primeiro pelo Demonkin, que tinha em seu rosto uma expressão misturada de apreensão e raiva. 

— Vai me responder? Ou vai bancar o louco mudo, como bancou na arena. 

— Não foi minha culpa! — Gritou Arnok, olhando na direção de Ilja com todo o calor e ódio que apresentava na arena. Quando ele se virou, o Demonkin agora conseguia ver as consequências imediatas que Arnok enfrentaria. 

— Então de quem foi, Arnok? — Retrucou, se aproximando ainda mais e agarrando a mão de Arnok, mostrando-a para ele. — Eu não tenho queimaduras na mão, nem Hiotum. Muito menos Vincent ou Kaesar. Você tem! 

"Se mutilou ao perder o controle, atacou o próprio amigo ao se tornar a coisa mais próxima de um animal!" A cada palavra que Ilja proferia, Arnok tentava desvencilhar a própria mão, mas não conseguia. Fosse pela tremenda força que o Demonkin tinha, ou pelo excesso de feridas no asa negra. "Assuma as consequências do seus atos!"

Ele recebeu um grito gutural como resposta, seguido do breve instante que teve para notar a mão de Arnok faiscando e acendendo em chamas. Ilja apenas o encarou, enquanto suas escamas rodeavam e protegiam sua mão e braço que segurava o seu amigo. O silêncio que ambos trocaram, enquanto tamanha chama se acendia de Arnok e uma massa negra rodeava o braço de Ilja, era quase palpável. 

Arnok partiu para um segundo golpe, usando sua outra mão, mas Ilja apenas se aproveitou de toda a força e velocidade desnecessária que o asa negra usava e o levou ao chão. Uma alavanca limpa, sem floreios, nem o uso demasiado de força.

A técnica de um mestre, contra a força de um animal selvagem. Diziam os Anciões e alunos da universidade a todo momento que ambos lutavam. Uma de tantas interpretações possíveis da rivalidade e amizade deles. 

No entanto era fato, Ilja sempre o derrubava em algum momento, e quando o fazia, não havia nada que Arnok pudesse fazer. 

Com suas asas expostas para Ilja e ambos os braços sendo imobilizados, só podia se debater. Qualquer tentativa de usar magia era inútil com Ilja protegendo suas mãos com as escamas. Nem os momentos em que suas asas esbofeteavam o Demonkin, o abalavam. 

— Já chega Arnok! — Ilja grita, pressionando com ainda mais forças as mãos de Arnok, ambas incandescentes em meio às chamas. — Vai se machucar desse jeito!

Mas Arnok não dava ouvidos, mais uma vez cresceu uma onda de chamas em suas mãos e conforme elas lambiam os seus braços, partes da roupa da enfermaria eram chamuscadas. A simples camiseta branca que vestia não deveria estar numa situação como aquela. 

Ilja encarou aquilo, a preocupação escancarada em seu rosto,  no instante que confirmou o desespero e descontrole de Arnok. O que aconteceu na arena estava prestes a se repetir. 

Numa ação impensada, agarrou o cabelo de Arnok, arriscando soltar uma das mãos daquele enorme volume de chamas, e com toda a força que tinha, levantou sua cabeça. O asa negra tentou resmungar, mas antes que notasse, sua testa foi obrigada a bater com força no chão. 

— Já chega, Arnok! — O Demonkin gritou, enquanto todos os seus esforços eram colocados em manter o seu amigo no chão.

Arnok mais de uma vez tentou se soltar das mãos de Ilja, mas a força do Demonkin parecia estar aprimorada e inabalável, e em todas as situações onde tentava algo mais drástico, o Demonkin batia a cabeça do asa negra no chão.

Já sentia sua testa se rasgar e a terra ficar encharcada de sangue fresco. Seus dentes rangiam em desprezo pela sua situação, por sua fraqueza e pela aparente falta de opções. Se debatia cada vez mais, e sua voz esganiçava num grito infantil e lento. O soluço foi uma consequência previsível, junto das lágrimas quentes.  Cuspia e praguejava, soluçava e chorava, se contorcia e esperneava. 

Quem o visse de fora, o acharia infantil. Quem o desconhecesse, acharia uma atitude indigna do discípulo de um dos Anciões da universidade. Mas não Ilja. O jovem Demonkin tinha pena. 

Seu olhar pesava conforme prestava cada vez mais atenção ao estado de Arnok, suas mãos em momento algum se afrouxando do aperto, com medo de um desastre. Mas ele nunca veio. 

Aos poucos Arnok se cansou. Parou de se debater e restou apenas as suas lágrimas em seu rosto. Tinha o rosto todo sujo de terra, e quando o fogo de seus braços finalmente se apagou, suas queimaduras estavam claras como o dia. Vermelhoes límpidos e grossos, do músculo e da gordura sendo tostada pelas próprias chamas. 

Finalmente Arnok foi solto, e aos poucos se levantou. Aparentava uma exaustão ilógica, como se todo o cansaço que teve ao longo da vida repentinamente caísse sobre seus ombros. Ele evitava olhar para Ilja, encarando a bagunça e a sujeira que estava ali ao redor - a terra levantada, a grama em diversas partes falhada, com um grande monte de cinzas no lugar. Seu olhar se levantou, não para Ilja, mas sim para as árvores ali perto. Grandes pedaços negras e secos. Hiotum a muito havia dito que ele fora o culpado por aquilo. Ataques que fez sem controle algum, o que fez um relâmpago cair sobre todas aquelas árvores.

Mas era mentira. Uma tentativa de seu mestre de ajudar o próprio discípulo. 

Arnok fizera tudo aquilo, a muito tempo atrás. Quando perdia o controle, nada ficava em seu caminho, diziam. Mas quando, de fato, Arnok tinha algum controle?

— Eu fiz tudo isso… não é? — Ele perguntou, não exatamente para Ilja, mas para as coisas ali ao redor. Ao que sobrava delas, ao menos. 

— É, fez… e adoraria saber o porquê… 

A resposta demorou para vir, Arnok parecia não saber ao certo também o motivo de se portar daquela maneira, nem a razão para ter corrido para lá. Apenas pareceu o certo para ele, ou o menos errado. 

— Não devia ser assim… — Disse, quebrando o silêncio e sendo encarado por Ilja. 

— Como assim?

— Não era para eu terminar assim… o Hiotum… o kaesar… vocês… eu não devia ter feito as coisas que fiz, eu sei disso! — Sua voz estava perturbada, não só pela culpa, mas por uma raiva e angústia, intrínseca ali. — Mas eu não consigo parar… não dá!

— Por que não, Arnok? — Ilja perguntou, se aproximando do amigo e pensando em todos os boatos que o rodeavam. Será que está sendo ameaçado a lutar naquele lugar? Depois de ter pensado isso, adoraria ter admitido que o silêncio de Arnok fora resposta o suficiente, mas não. Havia muito mais ali. O asa negra tinha uma expressão perturbada e contraditória no rosto. De orgulho e culpa. De raiva e da mais cristalina calma. De medo e de uma coragem inconsequente. 

Ilja olhava tudo aquilo, curioso e preocupado, mas quando pensou em insistir em uma resposta, Arnok se virou abatido por aquele momento de silêncio mais do que realmente aparentava. 

— Não posso sair das lutas, pois não serei nada sem elas. — Afirmou, com tamanho afinco que fez Ilja cambalear de surpresa. Não havia espaço para discussões ali, era óbvio. 

Ainda assim, Ilja tentou…

— Arnok, se metade do que eu ando escutando sobre essas lutas for de fato real, você se apoiar ali só vai te puxar cada vez mais para baixo! Não importa o que te ofereçam lá, vão ser apenas humilhantes esmolas! Restos que o diabo amassou!

— Restos ainda são restos, Ilja. — Disse, não numa forma de retrucar o que foi dito por Ilja, mas como que para deixar claro para si mesmo. 

— Você fala como se não tivesse nada…

— Esta é a pior parte, Ilja, sei que tenho.

— Mas então por que aceita restos, Arnok?!

— Porque me viciei nesses restos… Se algum dia eu ficasse longe dele, eu provavelmente desmaiaria. Não sei o que me acontece, é ilógico pensar dessa maneira, mas nenhuma glória… — Parecia prestes a continuar a frase, mas se calou e uma expressão de nojo se formou em seu rosto. Revirou os olhos para si mesmo conforme aquelas palavras derretiam em sua garganta. Por mais que Ilja tenha insistido numa resposta, de nada adiantou. Arnok nada disse depois disso, e o silêncio voltou a reinar. 

As peças na cabeça de Ilja lentamente começaram a se juntar, num emaranhado confuso. Sem começo, nem final. Faltava para ele uma imagem clara do problema, e entender apenas alguns pontos talvez não o ajudasse a resolver aquilo. No entanto, ele tinha uma cartada. Uma surpresa, no mínimo interessante. 

— E se eu te dissesse que não é o último asa negra? — Ele perguntou, quebrando o silêncio de tal maneira que até mesmo o vento voltou a uivar. — Largaria as lutas na arena?

Ele abriu um sorriso orgulhoso quando viu a expressão que surgia no rosto do amigo. Um brilho de esperança tão inocente e sincero que até contrastava com toda a sujeira e sangue de seu rosto. Sabia que fez o certo ao fazer aquela escolha. 

Naquele momento, não sabia os problemas que isto traria. 

 

 

 

 

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