Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 7: ... mas ainda não é o suficiente.

Nada existia ao seu redor. Um breu doloroso a rodeava, com o ar chegando com dificuldade aos pulmões. A sua frente, um cadáver de pele pálida e cheio de cortes fundos, com um grosso e denso pus saindo deles. Não respirava e o olhar estava vazio. Sem alma.

Suas mãos tremiam com a mísera força que usava para manter o pesado revólver estável e na mira daquele corpo inerte. O desespero estampado em seus olhos e inundados de culpa, não gostava de admitir que reconhecia os rostos daquelas figuras. 

Num primeiro momento, via uma mulher. Cabelos vermelhos e longos como os seus, de feições dolorosamente semelhantes também. Mas de uma expressão muito mais madura e de um corpo muito desenvolvido. Se lembrava de ter sentido  inveja daquele corpo, a muito tempo atrás. 

Logo o rosto mudou. Algo mais infantil, mas ainda mais desenvolvido que ela. Feridas ainda mais profundas e um olhar de um terror ainda maior. Gostava de brincar com ela, mas então por que tinha uma arma apontada para ela? 

Uma terceira figura, com não só o rosto se transformando desta vez. Todo o cadáver mudou. Com um corpo muito mais magro e desnutrido, sua pele avermelhou, destacando o sangue que saia de sua cabeça e contrastando com carne exposta no buraco de bala. 

Esta última - disso tinha certeza - ela matou. Mas então, enquanto as outras duas? 

Esses pensamentos a inundavam, até se deparar com, não somente os três corpos de antes, mas outros dois de rostos também dolorosamente reconhecíveis. Um homem e uma mulher, ambos adultos, ambos de mãos dadas. 

Ao lado de todos os corpos, existia essa massa. Não tinha um perfil definido, cor de pele, ou mesmo tamanho. Era uma criatura amorfa, cuja única coisa bem definida e formada era a voz.

- E agora? - Perguntou a figura. Tinha uma voz grave e marcante como se fosse queimada diretamente na pele, com um tom cheio de uma indiferença diabólica. - É tão diferente assim de mim? 

Sua voz ainda ressoava no fundo de seu consciente quando o breu a apertou e consumiu tudo ao seu redor. Um silêncio insuportável e uma escuridão sufocante rodeavam-na agora. Sentia-se presa, imóvel, incapaz.

Forçava suas mãos a se moverem, mas nada, nem um sinal de obediência. Tentou as pernas e obteve o mesmo resultado. O suor frio lhe escorrendo pelo rosto e nuca a agitavam. Logo o ar, que já parecia pouco, rareou ainda mais. Respirações longas e secas, tentando capturar qualquer coisa. 

As pálpebras fechadas, como se tivessem sido coladas à força. Os músculos estavam tensos e retesados, enquanto a escuridão parecia se mover, lentamente se aproximando, como uma cobra que rastejava prestes a devorar sua presa.

Se remexeu mais uma vez e repentinamente suas pálpebras pareciam leves. Não se sentia mais no breu, e quando abriu os olhos entendeu o porquê. Estava caindo. Mais uma vez havia adormecido numa árvore e as consequências disso pareciam uma piada de mal gosto. 

Desesperada, tateando os próprios bolsos à procura de sua faca de osso, viu o chão se aproximar cada vez mais rápido, sua sombra se tornando maior e mais nítida a cada segundo. Logo agarrou um cabo gélido e de cor branca fosca. Com toda a força que tinha, enfiou no tronco da árvore que havia caído. 

Escorregou por alguns momentos antes de finalmente parar. A respiração arfante e ainda sentindo o suor frio escorrendo em seu rosto e nuca, agora mais do que apenas pelo pesadelo que teve. Tudo ainda estava assimilando-se em sua cabeça e sentindo os ombros pesando como chumbo, deu um longo suspiro. 

Faziam três noites inquietas que Lira estava na floresta, a primeira delas por conta dos ocorridos com os comerciantes, e as seguintes por pesadelos semelhantes ao que teve. Hoje, em sua quarta manhã, deu certeza a um pensamento em sua cabeça. Não tinha paciência para passar mais um dia de treino ali. 

Voltando ao topo da árvore, recolheu suas coisas e começou sua rotina de retrocesso para casa. Apagou os traços que deixou em seus dias de treino, mais o de sua viagem de volta. Isto era uma ordem direta que recebeu de Philip quando seus treinos na floresta ficaram rotineiros. 

Prevenção para tudo… Dizia ele, enquanto enterrava a fogueira da noite anterior. Fazia um ano inteiro disso. A muito tempo Philip não treina junto de Lira.

Seu mestre havia mudado em algum momento, não sabia dizer quando. Sua figura parecia ter ficado menor conforme os dias iam passando. Seus golpes pareciam cada vez mais sem espírito e seu rosto, um poço cada vez mais triste e fúnebre. Tinha, no entanto, a certeza do motivo. 

Lira não o via subir ao segundo andar da casa a muito tempo. Tempo demais para ser uma mera coincidência. Ainda que passasse muitos dias fora de casa pelo seu treinamento, quando voltava estava tudo no mesmo estado. A poeira era a mesma, os tapetes e teias de aranhas se acumulavam. Davam um ar de abandono à pessoa que ainda vivia adormecida ali em cima. 

Mas o Philip não pode ter abandonado ela… Pensava, seus pés afundando na trilha natural que levava para casa. Ele não é assim… não é?

A floresta se abriu. Estava mais a porta de sua casa. Não importava quantas vezes voltasse e tivesse visão daquele cenário, era sempre uma sensação estranha. Como uma nostalgia fingida. Saudades de algo que não pertencia, que não era real. 

Esses pensamentos sempre rastejam no fundo de sua mente, como uma praga insaciável. Mas hoje, naquela manhã, após todos os sonhos e acontecimentos dos dias anteriores, a praga parecia uma ferida exposta, inferindo dor e memórias ruins. Mas aqui e agora, o que podia fazer além de seguir em frente?

 Lira deu o primeiro passo de volta para sua casa, ainda que estranhasse chamá-la dessa maneira. Logo viu a fazenda já funcionando. Os animais estavam todos soltos e fora de suas cocheiras, incluindo os Laraltos. 

Era um ocorrido raro estarem soltos dessa maneira. Considerando o quão ariscos eram, Philip não arriscava que eles fugissem pulando a cerca, algo que era fácil de ser feito por um animal do porte de um Laralto. No entanto, lá estavam eles e pareciam inquietos. Olhavam para dentro de sua cocheira, como se estivessem esperando por algo. 

Devagar e tentando evitar os animais, entrou naquele lugar. Seu teto alto e o cheiro de feno eram reconhecíveis para Lira, assim como o odor do esterco. 

Dali de dentro, começou a procurar o motivo da comoção e não demorou a encontrar. Vinha da sala aos fundos do cocheiro e via as costas de um homem. Sua pele pálida acentuava as longas e finas cicatrizes que tinha, os músculos bem definidos apesar da idade e uma coisa se destacava em meio a tudo aquilo. Uma tatuagem, feita não por mãos profissionais, mas amadoras e descuidadas. Riscos de contagem, como se marcassem os dias. Mas Lira duvidava que aquele era o verdadeiro propósito daquela marcação - que segundo suas contas, chegava a casa dos 50. Tinha medo do real propósito dela. 

Deu mais um passo e seu pé quebrou o feno seco abaixo dela. Como se estivesse despertando um predador, o homem se virou. O peito ensanguentado foi a primeira coisa que Lira viu. 

- Philip! - Gritou, se aproximando do mestre, preocupação nítida em seu rosto. - O que aconteceu? 

Mais próxima, viu a situação em que o homem estava. Em sua frente estava uma enorme mesa de trabalho, onde um cadáver residia. Era o corpo de um Laralto. Philip estava aparentemente dissecando-o com brutalidade claramente exposta em seu trabalho, enquanto um cutelo, manchado em vermelho carmim, descansava ao seu lado. A primeira reação de Lira foi desviar o olhar daquela cena. 

- O que diabos está fazendo?

- Tirando os ossos…- Começou a dizer, pegando o cutelo e continuando a atividade logo em seguida. A lâmina sibilou no ar logo antes de bater com força contra a carne do animal, partindo em dois o que talvez tivesse sido a perna dele. Lira engoliu em seco sem perceber. - O pó dos ossos vende mais fácil que o pó dos chifres. 

A explicação não acalmou os nervos de Lira. Algo na maneira como Philip segurava o cutelo fazia ela temer por sua vida, mais do que gostaria de admitir. 

- Mas e quanto a você? - Começou  a dizer, o som de sua voz se misturando ao baque do cutelo atravessando a carne. - Passou um bom tempo na floresta. Me fale, como foi seu treinamento dessa vez? 

Havia algo em seu tom. Uma raiva surda, misturada a descrença. Lira ainda evitava olhar diretamente para ele enquanto trabalhava, mas podia imaginar suas rugas da testa se cruzando.

-Teve algum acidente? - Aquela pergunta soou,  em Lira, como se um criminoso tivesse sido pego em flagrante. 

Será que ele sabe sobre aqueles comerciantes? 

Estava prestes a dizer algo, sua boca se abrindo para relatar o que acontecera e que fez o certo, quando o homem saiu do cômodo. Passando por Lira e carregando todos os ossos do animal morto, a garota mal conseguiu ver o rosto do mestre com toda esta situação, mas era clara sua irritação. 

Mas irritação com o quê? Se perguntou, começando a ouvir troncos de madeiras sendo empilhados. Philip estava prestes a calcinar os ossos daquele Laralto e Lira foi averiguar como ele estava. 

Parado ao lado da enorme forja que havia ali próximo, Philip atiçava o fogo com o fole, usando toda a sua força. Lira conseguia ouvir os ossos jogados ali dentro estalarem, e logo se lembrou do ocorrido a três noites. Quando, sem qualquer ideia do que fazer, pegou o cadáver do demônio que matara e o queimou. 

Não foi em uma forja. Acendeu uma fogueira com o maior número de madeira seca e troncos retorcidos que conseguiu. Foi um trabalho árduo. Mal dormira naquela noite, e ainda teve a angústia de sonhar com seu dedo deslizando pelo gatilho do revólver o disparo de sua arma soando, de novo…

De novo…

E de novo…

Tudo enquanto ouvia o crepitar do fogo ardente e enorme. 

- Preciso que arrume algumas coisas em casa… - Philip começou a dizer, tirando-a de seus devaneios. - Vamos para a cidade hoje, vender algumas coisas.

Lira acenou positivo, enquanto murmurou palavras de consenso. Hesitou para se virar, temia o que Philip havia querido dizer anteriormente. Mas não havia nada a fazer naquele momento. Lhe faltava a confiança para perguntar diretamente o que o incomodava,  e também, ressentida, não gostaria de descobrir o motivo. 

Ela se virou e saiu, sua cabeça travada, incapaz de olhar para trás. 

Dava passos largos, apressada e com certa ansiedade, para chegar em casa. Não queria admitir, mas sentia falta de sua casa, das paredes segurando os ventos gélidos da madrugada e do cheiro de carne queimada quando Philip decidia cozinhar. 

Ainda que tivessem sido apenas três dias de treino, a solidão era um incentivo forte para sua mente. As portas sempre reaparecem. Empoeiradas e mal cuidadas, mas sempre imponentes e irresolutas, com a dúvida do que tem atrás delas surgindo como a praga insaciável que eram. 

Mas as dores irremediáveis do passado, no momento, não seguravam Lira. Não havia incômodo distante o suficiente que a impedisse de entrar em casa e reencontrá-lo. 

Finalmente chegou. De frente para a porta de casa, empurrou com força a maçaneta e o trinco soou mais alto do que gostaria. Apesar do som alto anunciando sua chegada, caminhou a passos lentos até a sala, os ouvidos alertas a qualquer barulho. Virou a esquina do corredor e ali, iluminado pela luz da manhã, viu ele, o corvo de asas dúplices que machucou-a tantas vezes, e seu companheiro mais próximo. 

O animal dormia com a cabeça enfiada entre o par de asas direito. Parecia desconfortável, mas mesmo quando Lira se aproximou, ele não dava sinais de acordar.

Então, lentamente e segurando o máximo possível a respiração, Lira se aproximou. Com um sorriso travesso no canto do rosto, assoprou a cabeça do corvo escondida entre suas penas. Ele se debateu assustado e sua companheira começou a rir. Quando o corvo percebeu quem era, se agitou ainda mais, dessa vez de animação, e voou até os ombros dela. 

Diferente dos ombros de Philip, ele mal tinha espaço para se manter de pé ali, mas deu seu máximo para manter o equilíbrio enquanto Lira acariciava seu peito e cabeça. Os dois caminharam para fora do cômodo, em direção à cozinha, quando a garota entendeu o pedido de Philip. 

Dúzias de caixotes, todos lacrados e de conteúdo desconhecido, descansavam no corredor principal. A madeira era nova, bem polida. Ela sozinha poderia ser vendida a algumas dezenas de moedas de comerciantes. Se o vendedor estiver num dia de sorte, uma moeda de nobre parecia apropriada também. Mas isso não importava, o que era relevante eram os pesos delas. 

Prumo voou para um suporte ali perto, enquanto sua companheira erguia um dos caixotes. O fez com certa dificuldade, mas com a pressa lhe atazanando os músculos retesados pela força, tentou carregar dois de uma só vez. Levou-os com dificuldade pela casa  até a porta da frente. Sua sorte foi tê-la deixado destrancada.

Abrindo a porta, o corvo voou para céu aberto. Lira o perdeu de vista praticamente no mesmo instante, mas não se preocupou. Plumo sempre voltava. 

Desde a primeira vez que Lira e Philip tentaram soltá-lo de volta na floresta, o animal voltou poucas horas depois. Pousava animado no pequeno ombro da garota ruiva, e ela se desesperou em vê-lo ali, mais uma vez. 

Mas agora, era rotineiro. Plumo sempre voltaria. Era como o treino de Lira, um passatempo misturado a uma fuga necessária. Semelhantes apesar das diferenças.

-Aguenta levar até a carroça? - Lira ouviu de trás de si. Virou a cabeça para encontrar Philip, agora limpo de corpo e rosto. 

-Não, consigo levar até lá, mas o que tem aqui?

-Peças mecânicas em algumas, quilos de quinquilharia em outras. Coisas que o Maleke pode querer.  

-Certo… - Comentou, sentindo o denso silêncio que veio em sequência. Era mais que o simples assunto acabado, aparentava ser o oposto na realidade. Ambos com tantas coisas para dizer, mas nenhuma ideia de como dizê-las.

Em uma constante troca de olhares, apenas pelo canto do olho, eles dois carregaram a carroça com os caixotes. Aquela quietude era sufocante, mas o medo do que iriam dizer era maior. Mesmo quando Philip já tirava a carroça da fazenda, com Lira sentada ao seu lado, eles não haviam dito nada um para o outro e ali, estando tão próximos, evitavam até se olhar. 

As árvores se afastavam. A planície se expandia, infinita e vazia. Os rangidos da carroça pareciam distantes, ocos. Em certos momentos, até mesmo falsos. 

Aquele momento não parecia real para eles dois. 

- Lira… - Philip começou a dizer, suas mãos apertando com força as rédeas dos Laraltos e densificando a estranheza daquele longo momento. - Existem esses boatos na cidade sobre você… 

Ela olhou para seu mestre, viu sua cabeça baixa e seus ombros densos. Quase podia sentir a força que fazia para dizer aquilo com calma. Se viu por instinto indo até o coldre na sua cintura. Mas não havia nada lá. Nem sua arma, nem o coldre estavam ali. Não existia uma fuga para aquele momento. 

- Andam dizendo que você atacou esse grupo de vendedores de escravos… E que… - As palavras pareciam não sair de sua garganta, presas em meio à torrente de coisas a se dizer e não poder dizê-las. - Que você matou um demônio. 

Um baque foi o que Lira sentiu, finalmente entendo o motivo para Philip ter estado irritado todo esse tempo. Apertou com força os próprios punhos, sentindo as unhas perfurarem as palmas de suas mãos. 

-Isto é verdade, Lira? 

Não respondeu, apenas sentiu o olhar de Philip queimar em sua nuca, enquanto, envergonhada, cobria uma mão com a outra, sem parar. 

-Eu quero realmente acreditar que isto é mentira Lira, de verdade. Mas o seu tratamento de silêncio não está ajudando. Lira, você matou ou não…

-Sim…- Cortou-o, por fim. A voz saindo mais alta e tensa do que gostaria. - Provavelmente são todos verdadeiros esses boatos. 

-Então você feriu um homem comerciante de escravos?

-Sim.

-E matou um demônio?

Ela não respondeu com palavras e nem de imediato. Apenas balançou a cabeça num aceno positivo, suas mãos mais uma vez cobertas, como se estivesse escondendo a vergonha. Philip suspirou pesado ao ouvir isso. Sua inquietude parecia afetar os Laraltos. Eles agora também bufavam de tempos em tempos, e seu trote regular estava saindo de ritmo.

- Por quê Lira?- Ele perguntou, olhando para ela. - Eu lhe ensinei algo que não devia? Disse algo que você se irritou? Eu não consigo entender… 

Cada palavra queimava no âmago de Lira, todas cheias de uma decepção amarga e uma confusão plena. Ouvir tudo isso dele era doloroso demais para ela. 

- O que o demônio fez a você? Te atacou? E por quê feriu um homem também?!

- Philip! - Ela gritou. Os olhos marejados se dirigiam ao próprio mestre, cheios de remorso e culpa. -Muita coisa aconteceu! Esses vendedores de escravos entraram aqui, com suas carroças e estavam acampando, comigo de olho neles, e tudo tava indo bem. Até que discutimos e eu… - Hesitou. - Eu disparei e mandei eles embora da propriedade. 

- Como havia uma caravana aqui? Eles não deveriam conseguir passar a cerca. 

- A cerca estava destruída… uma parte dela ao menos. Não foram eles que fizeram isso. Alguma coisa a explodiu… ou queimou, não sei dizer ao certo. Eu verifiquei ontem. Não havia nada lá, e uma trilha de mata queimada levava para dentro da floresta. 

Philip prestava atenção em tudo aquilo, sua cabeça balançando enquanto assimilava o que parecia ser uma história inventada na hora. Mas não havia motivos para Lira mentir para ele. No entanto, a raiz do problema não estava naquilo. 

- Então onde está o demônio? - Perguntou, olhando diretamente nos olhos de sua discípula. -Se ele estava em uma das carroças, então estava indefeso. Por quê matou um demônio indefeso Lira?

Mais uma vez, ela não lhe deu uma resposta imediata. Pensava bem numa resposta, nem ela sabia ao certo o motivo de ter feito o que fez. Sentia que era por um ato de misericórdia, mas no fundo havia aquele sentimento doce e reconfortante de vingança. Do ódio ainda remanescente depois de tantos anos. 

Não havia como olhar para o que fez, e pensar que fora algo totalmente altruísta, ou mesmo dentro do que Philip esteve educando-a nesses últimos anos.

Era incapaz de dar a seu mestre uma resposta concreta, então o melhor que podia fazer…

- Eu não sei porque…- Começou a dizer, sendo sincera consigo mesma, e com ele. - Ela estava ferida da cabeça aos pés. Não tinha forças sequer para respirar direito. Partes lhe faltavam no corpo… Estava tão miserável que a primeira coisa que fez quando me viu foi… pedir que eu a matasse. 

Um instante de silêncio passou por eles. Não era como antes, a ansiedade por não dizer o que era necessário havia sumido. Ali e agora, eles apenas digeriam o que um e o outro diziam, com Philip, em especial, prestando atenção em cada detalhe vindo de Lira. Seu olhar distante e sombrio, como se lembrasse de algo que odiava. Seus ombros tensos e carregados, como os dele a muitos anos atrás quando se aposentou. As mãos pareciam pesar, como se carregassem o peso do mundo em chumbo. 

- Eu hesitei como nunca. Olhei para ela e vi minhas… vi a minha… Apertei o gatilho com tanta angústia no peito, que achei que ia atirar em mim mesma… mas não atirei. Matei um demônio e queimei seu cadáver, sem dar a ela um enterro digno. - Sua respiração estava arfante. Os olhos agora jorravam lágrimas como se fosse a primeira vez, encharcando suas mãos pequenas e frágeis. 

Não parecem as mãos de uma assassina… Philip pensou, logo então olhando as próprias mãos. As minhas eram assim…?

Suspirou, cansado, aturdido, e agora, culpado de ter gritado com a própria discípula daquela maneira. 

- Lira, eu…- Começou a dizer, mas um estalo alto o calou. Assustado e confuso, olhou na direção de Lira para ver as mãos dela caindo de volta no próprio colo, enquanto a vermelhidão aos lados do seu rosto ficavam em um tom cada vez mais vivo. 

- Eu sinto muito…- Disse, carregando no rosto uma certeza que não parecia ter vindo dela. Um perfil endurecido e enegrecido. Aquele rosto lembrava Philip de algo, só não sabia dizer o que. - Não existe maneira de mudar o que já aconteceu… Também sei quantas coisas eu poderia ter feito naquele momento, mas não fiz… 

Seu silêncio não parecia vir dela, da garota que Philip encontrou na floresta desmaiada e com febre a tantos anos atrás. Aquela quietude estranhamente séria e madura, junto de uma postura perfeita. Impecável a qualquer um que a analisasse por muito tempo. No entanto, ainda assim...

-Mas não acho que houvesse opção melhor para o eu daquele momento.

Existiam meios para ela crescer ainda mais. 



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