Dívida a Quitar Brasileira

Autor(a): The Mask

Revisão: TheMask


Volume 1 – Parte 1

Capítulo 4

Faltavam só seis dias. Só seis….

Por que diabos estava tão ansioso para que aquela casa fosse tombada? Cada instante do seu dia girava em torno disto. Eventualmente tomava um café aguado, lotado de açúcar. Também aceitava pedidos de empréstimos a homens de negócios, recusava aqueles que não parecessem ter futuro — coincidentemente, a maioria eram de famílias latinas ou não caucasianos — e rezava para que Pascal não surgisse no banco para pagar sua dívida, por mais que não admitisse que estivesse rezando. 

Num dia convencional, Samuel diria que sua crença era nas coisas reais e visíveis e na mesma ciência que levou o americano à Lua. No entanto, em momento de aperto, ele abaixaria as mãos abaixo de sua mesa e fecharia os olhos. Se alguém surgisse de repente, diria que havia dormido e que precisava de mais um café. Conforme sairia de sua sala, terminaria seus murmúrios pedintes em sua própria cabeça.

Nunca nomeava um Deus conforme pedisse por proteção, ou lucros, ou sorte. De fato não acreditava que pudesse existir algo como um Deus que criou o universo e tudo presente nele, mas… e se…?

Existem tantas coisas maravilhosas neste mundo que ele não podia explicar, como aquele palácio. As mesmas chances de se existir um Deus neste mundo eram as mesmas de não existirem, assim como inexplicáveis coisas horríveis existirem.

No entanto, Samuel continuava a pedir para uma santidade qualquer que Pascal não surgisse à sua porta, quando, ironicamente e coincidentemente, bateram à sua porta. Abriu os olhos e cessou seu murmúrio de imediato, tirando as mãos de baixo da mesa e caminhando até a porta. Girou a maçaneta no instante que a pessoa estava batendo uma segunda vez. 

— Senhor Goldberg, presumo? — Disse um homem de pele negra, estendendo a mão para o banqueiro. — Meu nome é Lorenzo Bianchi Lessley.

Samuel o cumprimentou por instinto, mas agora percebia quem de fato era aquele homem. Diante dele, vestindo não mais camisas simples e calças sujas, mas sim refinados trajes sociais de cores claras. Sua camisa, ainda era preta no entanto. 

— Você é o homem que estava gritando aqui na frente… — Disse, sem perceber. 

— Ele mesmo… Podemos conversar por um minuto? — Lorenzo pediu, apontando para as cadeiras logo atrás do banqueiro, convidando-o a se sentar. Goldberg se irritou com a ação do negro, no entanto… O que diabos esse criolo quer aqui?

Ambos se sentaram, de frente um para o outro, Samuel de costas para a janela emperrada e Lessley com as costas para a porta do escritório, da mesma forma que Pascal esteve semanas antes. 

— O que um negro de sua posição politica …— As aspas que deu para estas duas palavras tinham um tom de nojo, mas, mais uma vez, Samuel estava extremamente encucado. Este homem não havia sido preso ontem?

No dia anterior, mais uma vez, agora conhecido, Lorenzo esteve presente de frente do banco e gritou suas palavras contra a injustiça da sociedade capitalista. Contra os males que os Estados Unidos causavam em prol do auto crescimento econômico e de desenvolvimento. No entanto, a gerência do banco já estava cansada disto. 

Ligou para a polícia e pouco tempo depois daquilo, Lorenzo havia sido levado, a ponta pés. Foi uma cena violenta, onde ele não lutou contra em momento algum. Sequer havia feito algo inicialmente para sofrer algo assim. 

Ainda assim, diante de Samuel, estava um homem de pele negra, que foi espancado por policiais no dia anterior, com um lábio inferior inchado e um olho direito completamente machucado e roxo. Que vestia roupas caras, com unhas podadas e bem lixadas. Faltava a ele apenas um adorno, como um colar de ouro, para se tornar algum tipo de empresário.

—...Quer aqui? — Finalmente conseguiu dizer, as palavras pareciam se prender em sua garganta. A estranheza daquele momento, para ele, era quase palpável. 

— A casa de Pascal… — Disse, sem nem pestanejar. — Por quanto estão vendendo? 

Samuel sentiu o próprio sangue congelar. Engoliu com tanta força, que se houvesse uma noz em sua garganta ela se quebraria e passaria moída. O crioulo quer comprar o palácio?

E como diabos ele sabia disso? A dívida não havia sido cobrada de fato, que dirá tombar a casa como propriedade do banco. O processo levaria alguns dias, e só então é que começaria a aparecer possíveis compradores… mas aqui está um comunista que quer comprá-la. 

— Como você… Não está à venda. — Disse, sem pestanejar e se levantando, tentava já finalizar aquele assunto ali, mas Lessley apenas estalou os dedos de maneira chamativa.

— Ainda. — Retrucou, com um sorriso que fez toda felicidade no rosto de Samuel desaparecer. — Mas quero já ser o primeiro comprador, então se possível eu… 

— Já temos um comprador. — Disse… Espera, por que eu disse isso? 

De fato, havia um real motivo para ele ter feito isso. Apenas um singelo desejo, pequeno e inocente, como uma criança que pensa em se tornar um engenheiro. E se eu comprasse a tal casa? 

Melhor dizendo, isto era algo pequeno e inocente no início. Começou após sua visita a casa, e a ideia parecia cada vez mais palpável e plausível. Por que não comprar uma casa na upper east side e que vale quase dois anos de seu salário? Dois anos bons e cheios de contribuições… Substituir sua pequena casa no subúrbio, a quinze minutos de seu serviço, confortável e aconchegante, por uma casa a mais de uma hora de distância de seu trabalho. Pensou nisso sem ter consultado sua esposa, mas já sabia que ela odiaria a ideia, mas o que importava de verdade? O dinheiro deles não estava indo para lugar nenhum, então por que não?

Por quê não? 

— Um comprador?

Pois por que não, não é?

— Você disse um comprador? — Lorenzo repetiu, fazendo Samuel se lembrar da onde estava. Ele ajeitou o próprio paletó velho, e com uma tosse, voltou a dizer:

— Sim, um comprador. Do tipo que fará de tudo para comprar isto. — Uma verdade.

— O comprador é legítimo?

— Mas é claro! — Uma meia verdade. e o que diabos ele quis dizer com isto?

— E seu chefe gostaria de vender a casa para ele? 

— Com absoluta certeza! — Uma verdade que virá a ser. Samuel ainda não havia conversado com o próprio chefe sobre isso, mas demonstrou nos últimos dois dias um insano interesse pela casa. O fato dele não ter dito nada contra isto até agora era um bom sinal, não é?

— E acha que ele não dará uma chance ao segundo comprador? 

— A você não! — Disse isto ao mesmo tempo que o encarava de cima. Não tentou aparentar ser superior que o cliente, apenas demonstrar que o outro era inferior.

Um comunista… um maldito comunista… Notou que está para perder a própria guerra e agora vem aqui comprar uma casa com as dadívas do nosso sistema? Comunista de merda, criolo maldito!

— E por que? — Ele perguntou, calando os pensamentos de Samuel. 

— Como é?

— Por quê ele não daria sequer uma chance para mim? 

Ah, mas tenho tantas respostas para isto. E talvez tivesse mesmo. O chefe de Samuel era um assíduo investidor, com grandes influências no mercado imobiliário. Era impossivel que ele entregasse para Um negro comunista a tal casa. Aquele palácio. Além disto, até o dia de ontem Lorenzo aparentava ser um homem de origem simples, onde estaria o dinheiro para esta compra? Além de ter causado toda aquela confusão na frente do banco, nos últimos dias.

O chefe de Goldberg sequer daria ouvidos. Assim que notasse que um homem negro tentava fazer negócios com ele, gritaria que o funcionário que o informou disso estaria ou louco, ou drogado, ou ambos. Quando notasse, expulsaria o homem não só do banco, mas do quarteirão e talvez o impedisse de fazer qualquer empréstimo em qualquer outro banco. 

Sim, era isto que ele faria. Era isto que ele devia fazer com esse criolo na minha frente.

No entanto… Isto não aconteceu, e nada Samuel disse diante da pergunta sincera de Lessley. O homem, apesar da irritante situação, não demonstrava nem mesmo uma mudança negativa em seu rosto. Ainda mantinha um sorriso amistoso, quase irônico. Não suava e nem olhava de sobrolho para a janela emperrada, por mais que o banqueiro já estivesse suando como um porco gordo. Não estávamos no outono?

— Senhor Goldberg, me ouça com atenção… — Ele disse, se aproximando. Sua feição era séria, cheia de uma determinação que não parecia vir de um único homem, mas de um exército. Seus ombros em posição de alerta e sua postura ereta e firme como rocha fizeram Samuel cair sobre o próprio assento. — Não haverá compradores em toda Nova York tão afincos quanto a mim para comprar esta casa. Entendo suas questões com minha posição política e com minha pele, mas tenho algo a oferecer que ultrapassará quaisquer expectativas suas.

Samuel se calou, enquanto forçava uma carranca. Ainda não acreditava que aquele homem pudesse ter algo que convencesse a seu chefe. Ele talvez entregasse alguma parcela que considerasse exorbitante, quando era na verdade um troco de pão para uma transação como aquela. Então Samuel iria falar com o próprio chefe após esta tentativa falha, e dizer que gostaria de comprar a casa, que trabalharia em dobro e receberia a metade se fosse necessário. 

Já abria um sorriso de glória, quando viu o que Lorenzo puxava de seu próprio bolso. Posto diante de Samuel, polida e brilhante como uma jóia, estava uma pequena caixinha de madeira, menor que o palmo de sua mão. Ela reluzia com a pouca luz que adentrava no cômodo, em uma cor carmim que o banqueiro nunca havia visto na vida. 

—  A caixa é feita de pau-brasil. — Lorenzo adicionou, virando o tampo, ainda não aberto, na direção de Goldberg. — Ela sozinha já valeria um dinheiro exorbitante, mas não é ela que estou entregando. 

Ele então abriu a pequena caixa de presentes. O carmim amadeirado pareceu se misturar ao objeto ali dentro, como sangue e carne. Uma carne verde e brilhante como uma jóia. 

Não como… é de fato uma jóia. 

Um anel, com uma jóia verde como uma folha de árvore e incrustado em várias pequenas pedras de cristal. Lindo de se ver, exuberante de se possuir e mais belo ainda para se vender. 

— Conhece o colar de Jadeíta De Hutton-Mdivani, senhor Goldberg? 

O banqueiro nada disse, pois conhecia o tal colar dito por Lorenzo. Era uma das jóias de jadeíta mais caras do mundo. Encomendadas por Cartier em 1933, suas 27 contas de jadeíte e seu fecho de rubis e diamantes o tornavam uma peça não só linda, mas caríssima. 

— Este anel foi feito pelo mesmo homem, com a vigésima oitava jadeíta que não foi usada na construção do colar. Seu valor não chega perto do preço do próprio colar, mas já recebi compradores que o queriam e me deram ofertas generosas. 

— Quão generosas…? — Samuel perguntou, ainda encarando aquela jóia diante dele, já imaginando o possível valor dela. Seu chute nunca chegou tão alto. 

— A oferta mais generosa que já tive em mãos chegou a casa dos cem mil dólares. 

Nota do autor: Em conversão, 789,741.57 dólares pela inflação de janeiro de 2022. 

 



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