Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 40: Repetição

O que fazer quando sua mãe escondeu um grande segredo durante sua vida inteira? Tanto o Lucas anterior quanto o atual se sentiram enganados pela mulher que os criou desde pequeno.

Mas, mesmo que não quisesse admitir, fazia sentido. Sua mãe nunca falava muito do trabalho, ela era fechada em falar de coisas do passado e tudo que fazia emitia um tipo de melancolia.

“Por que ela escondeu isso de mim o tempo todo? O que tem de perigoso eu saber o que ela faz?”

Ele repetiu essa pergunta diversas vezes durante a noite, sem conseguir dormir direito por sua mente se concentrar demais naquele fato.

Sabia que era um trabalho perigoso, e pior, imaginar que a qualquer momento sua mãe poderia sumir durante uma raid piorava o senso de segurança dele.

Essa sensação maldita foi carregada pelo dia seguinte inteiro. Por não conseguir dormir, engoliu uma poção de energia e saiu mais cedo, seu treino correu como da forma esperada.

“Lembre, tenho que evitar usar esses energéticos quando virar a noite. Isso pode me matar de exaustão.” Subiu mais uma vez na barra, pousando os pés no chão depois da última repetição. 

Pôs as luvas de boxe nas mãos calejadas, seus punhos socaram com uma força absurda o saco de pancadas feito de pneus e areia, acumulando mais marcas pretas no cinza do pneu.

“Essa energia… por que não consigo parar de pensar nisso? Por que você não esquece de uma vez, caralho?!?”

Um chute atingiu a lateral do saco, tão forte que quebrou o apoio usado para mantê-lo pendurado e batendo na parede de tijolos. 

Já que não tinha mais essa opção, o jeito foi treinar esquivas, mas nem isso eliminou a preocupação. Ele agora se perguntava se era por isso que seu irmão fez aquela pergunta.

O Lucas anterior poderia saber disso, sua personalidade agressiva talvez era para impedi-la de continuar esse trabalho perigoso.

Mesmo não tendo como saber, Lucas se moveu pelo ginásio do ferro-velho igual vento, os pés indo de um lado para o outro em alta-velocidade e a cabeça mal ficando no lugar.

Ainda estava cedo, daria tempo para a corrida matinal. O rapaz usou todo seu folêgo para correr, eletrizado da cabeça aos pés com os pensamentos.

No final, não adiantou, depois de terminar o treino ele decidiu tomar um pouco de ar num parque que estivesse aberto aquela hora da manhã antes de ir trabalhar. 

Sequer olhou para o gatinho roxo deitado, a pressa falou mais alto que sua própria boca. Amora reparou isso, mas manteve-se quieto por respeito ao desespero dele.

A paisagem urbana se desenrolou pelos olhos de Lucas. Ele pegou o celular, ainda lembrando de ter gravado o número de Viviane anteriormente.

Tristemente, essa mulher era a única pessoa da qual teve algum contato desde o começo do reset. Quanto a Levi, deveria estar dormindo a essa hora, ao contrário da moça.

Hesitou em discar, mas era melhor do que se lamuriar pela mãe. O celular tocou e tocou na sua mão.

{Alô? Quem fala?}

“Verdade, eu esqueci que nunca liguei pra ela ainda”, pensou, aproximando o celular do ouvido. — Oi, Viviane, é o Lucas.

{Ah, é logo você de qualquer pessoa. O que diabos tá querendo de mim?}

— Sin-sinceramente… não sei. Na verdade, me sinto ridículo por te ligar agora, seria melhor desligar.

{Bom, eu também acho ridículo da sua parte me ligar também, depois daquilo… mas quem sou eu para te julgar, nem sou sua amiga ou coisa do tipo. Só que pra me ligar, deve ter uma razão, não é?}

— Talvez… eu só queria conversar com alguém mesmo, você era a primeira na minha lista de contato.

{Nossa, isso é… estranho. Não lembro de ter me dado seu contato.}

— Você me deu, só não tá lembrada agora. 

Mentiras estavam gradativamente ficando mais comuns em seu dia a dia, mas ele não se importava. Limpou o suor da testa, sentando num banco no meio daquele parque.

— Eu quero me desculpar por como falei contigo. Pensando agora, pareci um babaca mesmo.

{Oh, aceito suas desculpas, querido. Ainda estou interessada na sua habilidade, sem contar.}

— É, imaginei que falaria isso, sua interesseira… Enfim, tu fez certo em correr. Não é como se tivéssemos algum pacto de sangue que não pode ser quebrado ou coisa assim, se salvar era o mais lógico naquela hora.

{Obrigada por entender, mas fiquei impressionada por ter saído vivo. Eu pensei que você ia morrer.}

— Obrigado pelo incentivo, Viviane.

{Não há de que, Lucas.}

Houve um silêncio na ligação. Os dois lados não sabiam o que dizer mais, especialmente Lucas, a pessoa menos especializada em interações sociais.

— Quer tentar ir de novo numa caça a monstros? Acho que estraguei as coisas da última vez… Posso te mostrar uns outros monstros se tudo der certo, talvez.

{Agora você falou minha língua. Esse final de semana, que tal?}

— Pode ser… Bom, vou caminhar mais um pouco antes de ir trabalhar. Tchau.

{Até mais, Lucas. Te vejo na praça de novo nesse final de semana, combinado nosso.}

E assim a ligação acabou. Lucas andou por aí aleatoriamente, observando as pessoas normais com suas famílias e vivendo suas vidas àquela hora.

Mesmo sendo muito estranho encontrar com essa gente em tal hora, ele pensou mais em como eram felizes consigo mesmos, diferente dele, que ainda se frustrava com sua própria personalidade e com as verdades que lentamente descobria.

Após se afundar em algumas crises existenciais e numa depressão ferrada, Lucas foi trabalhar no bom e velho banheiro, desconexo da realidade com seu fone de ouvido e músicas.

Nada poderia tirá-lo de seu mundinho de pensamentos, nem as reclamações dos clientes ou a grande briga que rolou dentro do restaurante.

Quando bateu a hora, ele só saiu e procurou alguma forma de se distrair, mas não achou. 

Os jogos de fliperama numa loja que passou a frequentar desde sua viagem aquele mundo não o tirava dos pensamentos, muito menos as lindas action-figures de personagens nas lojas otakas com suas garotinhas mágicas coloridas.

Só era frustrante e irritante de qualquer forma. Lucas bateu a mão na cabeça, querendo retornar a mente a realidade, até lembrar de uma coisa que sempre o ajudava: farmar.

No entanto, não queria ir as zonas, pois teria que ou voltar ao restaurante ou andar direto para casa. Queria um lugar diferente, e sua mente sabia exatamente onde poderia descarregar sua energia.

Ele passou pela cidade em direção ao lugar que Alice e Theo limparam goblins, um esgoto abaixo do viaduto, isolado e bem escuro.

O portão infelizmente estava fechado, mas sua falta de paciência não podia ser maior. Pegou a katana, quebrando o cadeado e entrando pela porta de grades.

Seus olhos demoraram para se adaptar as luzes opacas do teto. Seus ombros relaxaram um pouco, mas a tensão e desejo de usar sua energia estavam nas alturas.

Dessa vez estava sozinho, mas isso era uma benção. Em uma certa quantia de dias, eles visitariam aquele lugar, encontrariam o hobgoblin e teriam uma luta complicada.

O rapaz não era nenhum tipo de monstro, então julgava ser o ideal fazer uma limpeza lá para garantir que nenhuma tragédia aconteceria.

Era estranho andar sozinho por aqueles corredores podres, e inclusive, Lucas se arrependeu de ter chegado adiantado.

O fedor estava insuportável, nem sentia o cheiro quando usava o traje. Estalou o pescoço para se desatentar do odor, enfim encontrando o que queria: goblins.

Perdeu a conta de quantos deles já matou. Se não spawnassem infinitamente, com certeza teriam sido extintos pelas suas mãos.

A katana partiu o crânio do homenzinho verde na horizontal, seguido por um chute que quebrou a cabeça de outro. Fácil como tirar doce de criança.

Outros apareceram da esquina do corredor, armado com arcos e lanças. As flechas voaram em sua direção, mas eram lentas demais para pegá-lo.

Disparou na direção dos malditinhos, girando o corpo em conjunto com as lâminas e rasgando a carne roxa das criaturinhas.

Um sorriso saiu do rosto de Lucas, seguido pelo uso do fluxo que obrigou suas pernas a correrem mais depressa, de pouco em pouco matando goblins igual num hack’n’slash.

Não demorou para encontrar também o hobgoblin, seu principal alvo, mas aquilo não passou de uma brincadeira de criança.

As garras vieram em sua direção, o sabre bloqueou o impacto, então a ponta girou e arrancou sua mão fora. 

Um grito animalesco de dor ecoou no esgoto, exatamente de sua presa. A satisfação de Lucas aumentava, aquilo era poder bruto, poder de verdade!

A capacidade de se desatar de si mesmo e ir além do que se acreditava possível, a adrenalina de esmagar monstrinhos num joguinho bobo e infinito!

A katana estocou no peito do hobgoblin, uma puxada brusca rasgou para baixo e abriu a barriga dele, seguido por um chute para aumentar a distância e piorar a hemorragia.

Ele morria lentamente, e Lucas, misericordioso como era, decepou sua cabeça fora para dá-lo uma morte rápida e menos dolor. 

Limpou o sangue no fio da espada com balanços rápidos, seus olhos se voltaram a outros goblins mais distantes e o instinto ordenou que caçasse.

Mais cabeças rolaram pelo chão, o cheiro de ferro se misturou com o chorume conforme os cadáveres se acumulavam nos corredores.

Não encontrou nenhum outro dos hobs, somente homenzinhos verdes para incomodar seu caminho. Ao menos, eles serviam de pontos para o Anel do Abatedor.

 

O jogador ganhou o título Odiador de Goblins

Objetivo concluído:

O dano contra qualquer espécie goblinidea é aumentada em 100%.

 

“Super conveniente.” Sua lâmina se encravou na cabeça de outro monstrinho, lançando pedaços de cérebro para todos os lados.

Ele perdeu as contas de quantas vezes andou de um lado para o outro, seus dedos pareciam engordurados de tanto sangue.

Lentamente, seu corpo começou a se cansar. Matar era de certa forma impactante para sua cabeça, mas a forma com que a ansiedade sumia quando rente a uma pitada de adrenalina era bom demais para largar.

Parecia uma droga, viciava ver números subindo sem parar. Seu corpo e mente agiam como um, automaticamente se movendo e pensando em sincronia para maximizar seus ganhos.

Lucas parou de repente. Ele avistou uma coisa estranha num dos corredores, um caminho diferente das cores convencionais, pintado numa cor preta estranha.

— Tem alguém aí? — Essa pergunta foi retórica, nunca teria alguém lá. — Hora de investigar. Preparado ou não a coisa que esteja aí, lá vou eu!

Adentrou o caminho estranho, mas o lado de dentro fez um arrepio tocar sua espinha de uma ponta a outra. 

Um portal desmembrava a realidade diante de seus olhos, mas ele estava se adaptando ao ambiente, com raízes e terra escapando de dentro. 

O que era pra ser um mero caminho se transformou numa sala redonda, cheia de manchas pretas, terra, raízes e com passagens pequenas em todas as direções.

Túneis do tamanho de goblins do teto até o chão. Lucas respirou fundo, nunca havia visto algo do tipo, achou até o repentino susto desnecessário. 

“Hm, parece um ninho como disseram, mas por algum motivo o portal tá agindo de forma estranha…”

Curioso, Lucas entrou no portal, e o que viu do outro lado foi o coração do inimigo: uma vila goblin.



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