Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 2: A ferreira vermelha

As tardes em Prospéria eram bem movimentadas. Os comércios já estavam a todo vapor e dezenas de pessoas enchiam as ruas. Todas as estradas dos vilarejos vizinhos iam até lá, então era normal que até mesmo quem não fosse parte daquelas terras somasse ao todo, mesmo que por um curto tempo, até chegar em uma das saídas.

Uma jovem que fazia parte desses breves visitantes passava pelos cantos das ruas. Sua grande manta cobrindo o corpo e a cabeça a ajudavam a evitar ter contato com os demais.

Pelo bem dos outros, principalmente dela, era melhor que fosse assim.

O barulho das conversas paralelas, dos breves cumprimentos entre os transeuntes e das carroças dos comerciantes indo e voltando das regiões próximas poderiam encantar estrangeiros e pessoas do interior, mas para ela só causavam apreensão.

"Não sei como o Conselho aceita a presença do seu tipo aqui com a gente" era o comentário mais leve que ela ouvia. Porém, tinha que aguentar, pois a entrada da Guarda só era acessível pela estrada principal.

Chegando no arco que indicava a saída sul do vilarejo, viu dois guerreiros parados conversando.

"Fique tranquila, passe rápido por eles, mas não corra", reforçou para si mesma.

Manteve a cabeça baixa enquanto passava, os dois homens pareceram não reagir. Quando eles iam ficar para trás, ela sentiu sua canela ser atingida e caiu de cara no chão.

— Preste atenção, praga — disse um deles, rindo da situação.

O homem havia propositalmente colocado a bainha da espada na frente da garota para fazê-la cair.

— Você vai acabar infectando minha arma!

— Desculpe, senhor — disse ela enquanto levantava, ajeitando seu traje. Depois, só seguiu em frente.

Geralmente, os guerreiros não ficavam nas estradas. Era raro prestarem serviços de escolta, pois não haviam registros de assaltos há anos, o que era um alívio. Estando sozinha, a garota voltou a erguer a cabeça e seguiu sua caminhada.

Os campos à sua direita tinham vegetações mais rasas, permitindo ver tudo até a base da muralha. Lá, pequenos grupos de trabalhadores se esforçavam para manter os mecanismos das plataformas de elevação em pleno funcionamento, além de frequentemente verificarem estoque de alimentos para os vigias que permaneceriam em serviço no turno da noite.

Não demorou até que ela chegasse perto do perímetro do quartel, o que a fez relaxar um pouco mais. Estando logo ao lado do seu objetivo, só restava conseguir fazer com que alguém ouvisse o que ela tinha a dizer.

A garota atravessou para o outro lado e seguiu o caminho próximo das paredes que cercavam o lugar. Queria apoiar a ponta dos dedos para sentir a textura, mas tinha medo de ser apanhada fazendo isso.

Chegando no portão, viu um homem grande e forte de mechas emaranhadas encostado lá. Seu sobretudo e calças largas deixavam claro de que se tratava de um lutador, uma das classes de guerreiros de ataque. Mais do que a vestimenta, ela também reconheceu seu rosto.

— Com licença — disse a garota —, o senhor é o Conselheiro Bernard, não é?

— Ah, olá, querida! Sou sim — respondeu recepcionando a garota de forma muito simpática. — Ainda é estranho ser chamado de Conselheiro. Mesmo depois de anos, ainda fico meio acanhado. Posso ajudar?

De repente, quando olhou diretamente para ela, o sorriso de Bernard falhou e ele expôs uma leve preocupação. Antes que ele pudesse dizer algo, a garota fez sua proposta:

— Meu nome é Leanor. Eu gostaria de me tornar guerreira da Guarda.

— Você é... uma vermelha — balbuciou enquanto ainda encarava o rosto dela. Como Leanor havia pensado, o manto não a escondia completamente.

— Sim, e eu sei que nós não devemos ficar andando por aí, mas eu posso explicar. Minha mãe me ensinou a caçar desde pequena. Sou armadilheira e sei forjar equipamentos e armas leves. Nem preciso ficar aqui, podem me deixar dia e noite lá na muralha.

— Não, espera, espera. — Enquanto a garota ia falando, Bernard parecia ainda processar a primeira informação. — Por onde você veio? Tem que tomar cuidado ao andar por Prospéria uma hora dessas. Quer pôr a vida de alguém em perigo?

A conversa foi interrompida quando Bernard sofreu um esbarrão de um jovem que andava distraído.

— Espera a sua vez, tá, garoto? — alertou o Conselheiro, sem se incomodar pelo empurrão, que sequer o tirou do lugar.

O rapaz mal reagiu a ele, só se afastou e foi para trás de Leanor. Ela evitou olhar para ele para não ser identificada.

Como agora havia mais alguém por perto, Bernard terminou seu sermão falando baixinho e de maneira firme, mas sem ser desrespeitoso, o que já era um milagre.

Antes de dispensá-la, ele virou para falar com o garoto.

— Aí, você, de cabelo branco — exclamou o homem —, veio aqui para se alistar na Guarda também?

— Sim, senhor! Meu nome é, quer dizer, acho que é boa tarde, primeiramente. É Oliver Rivail que eu me chamo e, estar aqui... Um prazer enorme, senhor!

Parecia que o garoto nunca tinha conversado com alguém na vida, ou simplesmente estava nervoso para se apresentar. Assim, ele simplesmente gritou um monte de frases decoradas completamente fora de ordem.

— Não precisa falar tão alto. Eu consigo te ouvir bem, ok?

Bernard parecia meio confuso, mas achou graça na situação. Leanor também, mas mantinha sua cabeça baixa.

— Você deve estar meio empolgado, acontece — disse sorrindo. — Eu sou Bernard. Membro do Conselho de Prospéria e mestre lutador aqui na Guarda. Não costuma ser nosso papel ficar por aqui, mas meu assistente não podia assumir a função. Você vai entrar para qual classe?

Leanor foi pega de surpresa. "Qual classe? Ele é um Rivail", pensou. O garoto ter se apresentado com o nome completo já deveria ter deixado isso claro. Então, Oliver voltou a discursar.

— Bem, é que... Durante toda a minha vida eu sempre quis vir aqui e ser aceito para poder mostrar como o nosso passado recente não apaga a história de benevolência e proteção que dedicamos para esse vilarejo. E-eu sinceramente acredito que posso mostrar que sou capaz de fazer o bem por Prospéria e...

Antes que ele pudesse continuar, acabou sendo interrompido por Bernard.

— Espera, passado de quem?

— Dos magos, ué.

O silêncio constrangedor entre os três era o suficiente para expressar o quanto aquela conversa estava cada vez mais confusa, até que o Conselheiro pareceu finalmente ter se dado conta.

— Uau, vocês ainda existem? — perguntou Bernard, arqueando as sobrancelhas. — Eu me lembro de ouvir histórias da tal noite, mas é um assunto que as pessoas costumam evitar. Nem os mais velhos aqui falam muito disso.

A garota ficou estática. Dentre todas as possibilidades que ela havia imaginado, nunca passou pela sua cabeça que teria uma chance tão clara de poder entrar para a Guarda.

Enquanto o Conselheiro fazia mais perguntas ao garoto sobre suas especialidades, Leanor, esperava por uma abertura para entrar na conversa.

— Eu entendo, mas sinto muito, jovem. Não treinamos magos. Talvez queira se alistar para uma outra classe no futuro — disse Bernard enquanto virava-se para a garota novamente. — E quanto a você, mocinha, como eu disse, sua presença aqui não seria segura para os demais guerreiros. É melhor se retirar.

— Espere! — exclamou Leanor — Preciso falar com esse menino aqui a sós.

Ela cobriu a mão com a manta, pegou no braço de Oliver e o levou para longe da entrada.

— O que você está fazendo, sua idiota? Me solta!

— Me escuta, por favor. Você precisa me ajudar a entrar. Diz que eu sou uma maga também.

Leanor o olhava nos olhos. Ela sabia que a essa altura não dava para disfarçar seu desespero, mas tinha que fazer o plano dar certo. Ninguém iria querer ser a dupla de um mago, mas ela não se importava.

— O que acha? Podemos formar nossa própria equipe — perguntou dando um sorriso simpático — Os guerreiros sempre trabalham em duplas, é perfeito.

— Por que eu ajudaria alguém que sente nojo de mim e nem quer me tocar? — Oliver vociferou enquanto se soltava. Ela nem tinha se dado conta que ainda o segurava com a manta suja de terra.

— Pelos Lordes, desculpa! Eu fiz isso pensando na sua proteção, é sério.

— Ah, conta outra. O que foi? Você acha que eu sou tóxico ou algo assim? Seu cabelo vai começar a cair só porque você está respirando o mesmo ar que eu?

Sem que percebesse, a proteção que Leanor tinha feito na cabeça estava se soltando, então o garoto aproveitou para puxar uma das mechas curvas e avermelhadas do cabelo dela para fora.

Ela saltou de susto com essa atitude.

— O-o que você fez?! — gaguejou enquanto dava passos para trás.

— Ora, qual o problema? Se tem medo disso, nem deveria tentar se alistar.

— Ei, o que você pensa que está fazendo?! — Bernard saiu correndo na direção dos dois quando presenciou a cena. O coração de Leanor gelou e até o garoto se assustou com o grito. — Ela vai acabar te matando, não pode fazer isso.

— Por favor, me perdoe, eu juro que não tive a intenção. — A jovem se ajoelhou.

Leanor temia o pior. Exílio, talvez? Porém, ela percebeu o garoto ainda parado, sem saber o que fazer.

"Ele não conhece a maldição. E o corpo dele não está com nenhuma reação grave. Preciso ser rápida, antes que algo aconteça", pensou.

— Me escuta, senhor Bernard — disse a garota enquanto se levantava novamente —, o senhor não precisa se preocupar. Ele não é afetado pela maldição porque nós dois somos magos, então nossa energia espiritual cancela as maldições. Não é verdade?

De alguma forma ela conseguiu dizer pelo olhar: "entre no jogo ou nossa chance morre aqui".

— Ah, é. Não somos afetados por essas coisas, é tranquilo. — Ambos apoiaram o braço no ombro um do outro com confiança. — Temos plena resistência à maldição.

— Isso é impressionante — disse enquanto admirava a dupla, boquiaberto. — Eu nunca vi ninguém tocar os cabelos de uma vermelha de forma tão casual, sem se preocupar com as consequências. Vocês dois precisam ser meus aprendizes, vai ser o máximo!

Os olhos do mestre brilhavam com tamanho entusiasmo, mas os dois jovens ficaram um tanto confusos com aquilo.

— Eu falei sério! Olha, tudo bem, eu sei, não tenho ideia de como magos lutavam, só que se seus corpos são tão resistentes assim para aguentarem a maldição, posso transformar vocês em lutadores poderosos. Uma dupla perfeita. O que me dizem?

— Topamos! — responderam sem pensar duas vezes.

— Ótimo! Como Conselheiro, posso inscrever os dois diretamente na lista da cerimônia de boas-vindas. Quando chamarem vocês, mostraremos para todos o que eu acabei de ver aqui e não teremos problemas. Venham aqui para o portão amanhã, ao nascer do sol.

— Sim, senhor! — Leanor e Oliver o saudaram e se retiraram.

.

 

 

Após se afastarem da entrada da Guarda, a dupla procurou a sombra de uma árvore para conversarem um pouco enquanto observavam as plataformas de elevação carregando seus futuros companheiros para o alto da muralha.

À medida que os guerreiros eram levados por aquele mecanismo, Leanor não conseguia evitar de sentir o entusiasmo e receio do que estava por vir. Como os dois iriam lutar juntos lá em cima?

Ela não podia ser um peso morto na mão de Oliver. Era uma questão de honra por ele ter aceitado ser parte da ideia maluca dela.

— Ei, não foi ótimo? Nós vamos entrar e ainda conseguimos que um Conselheiro da Guarda se oferecesse para nos treinar — disse empolgada. — Aliás, meu nome é Leanor. Foi tudo tão corrido que eu nem me apresentei.

Oliver, que também estava perdido nos próprios pensamentos, rapidamente voltou a si. Parecia verdadeiramente confuso sobre ela, o que era estranho.

— Acho que não preciso me apresentar, já que você conhece a história da minha família, mas o que é essa tal maldição? Até aquele cara enorme parecia estar com muito medo.

— É sério que você nunca ouviu falar? — A surpresa era ainda maior com essa vontade dele de saber mais. — Como o senhor Bernard disse lá atrás, eu sou uma vermelha. Nós meio que somos conhecidos assim, não temos um nome de família como o seu.

Leanor começou a falar baixinho, enrolando as mechas nos dedos.

— Nosso cabelo cor de sangue é uma maldição de tempos antigos, nem mesmo sabem quando começou. Dizem que quem tocar nos fios terá um destino cercado de ódio e dor. É por isso que ando com essa manta no corpo, minha mãe fez para evitar que eu colocasse outras pessoas em risco.

— Ah, entendi. Então você vai usar isso contra os invasores?

— Você não prestou atenção no que eu falei?! — perguntou indignada — Não está nem um pouco preocupado com seu bem-estar?

— Fala sério, minha vida não vai mudar porque eu toquei em um fio de cabelo. — Oliver deu de ombros.

— Acho que foi sorte nada ter acontecido com você. Talvez tenha sido salvo pela sua magia, só que isso é coisa séria.

O garoto olhava para ela com indiferença, como se aquilo tudo fosse brincadeira. Leanor insistia em fazê-lo acreditar.

— Para você ter ideia, nenhum de nós jamais demonstrou ter uma habilidade da Natureza, incluindo eu. Só que, sendo bem sincera, prefiro virar um alvo lá em cima do que viver a vida que eu tenho hoje — respondeu com uma voz trêmula.

— Você não será um alvo — disse Oliver, confiante.

Ele apontou a palma da mão em direção à cabeça da garota e o corpo dela começou a ficar contornado por uma energia cor de esmeralda, indo de cima a baixo.

— Quero fazer parte da Guarda para mostrar que posso ajudar as pessoas e, diferente dos outros, eu não vou te excluir. Consigo passar um pouco da minha energia espiritual para você, acho que deve bastar para lutarmos juntos.

— Que incrível! — Leanor ficou olhando para as mãos enquanto o brilho apagava lentamente. Essa breve demonstração já fez com que ela se sentisse mais forte e disposta a lutar — Mas como? As habilidades da Natureza não funcionam assim.

— E o que você sabe sobre as Naturezas?

Leanor não gostou do tom de desdém, mas resolveu responder mesmo assim:

— São seis. — Começou a contar nos dedos. — Água, Fogo, Terra, Ar, Sombra e Luz.

— E Alma. — completou Oliver. — Mas essas aí que você falou são forças materiais. Nossa alma usa força espiritual, fica dentro da gente e continua até depois da morte.

— Escuta, eu não tenho ideia sobre essa parte, então vou acreditar em você. — Leanor virou-se de lado e abriu a manta para tirar pequenas ferramentas enferrujadas de um sutil cinto preso na barriga. — Mas eu sou uma excelente ferreira. Faço armas e equipamentos para arqueiros, espadachins, defensores, animalistas, lutadores e até curandeiros se for necessário.

— Só que magos não usam equipamentos — riu. — Os outros usam porque as habilidades da Natureza são muito instáveis.

— Ah, tudo bem então. Nesse caso, que tal se eu deixasse você terminar aquele discursinho que estava fazendo para o Bernard? Vou ouvir com bastante atenção — devolveu o riso ao ver a cara de vergonha de Oliver.

— Quer saber? Eu ainda posso mudar de ideia — esbravejou.

— Não precisa ser tão mal-humorado. E saiba que você já ganhou a minha confiança. — De um sorriso de provocação, passou para um que mostrasse que sua gratidão era sincera. — Muito obrigada por me colocar na Guarda, agora vamos dar o nosso melhor.

Apesar da confusão inicial, os dois estavam se dando bem. Mais do que ganhar a admissão, Leanor estava sendo tratada como uma igual.

— Pode contar com isso! — A empolgação do garoto era ainda maior.

Após se despedirem, Oliver voltou correndo para casa, enquanto ela continuou seguindo a estrada ao norte e teria que passar por Prospéria outra vez. O tratamento tranquilo de seu novo companheiro de Guarda a fez se sentir leve, quase como se nunca tivesse sido um problema ser quem ela era, mas não queria se deixar levar pela situação.

O caminho de volta continuaria o mesmo, com xingamentos fortes e provocações estúpidas que ela teria que engolir, pois já sabia desde cedo que revidar só traria mais problemas.

"Como seria bom poder fazer o dia passar logo", pensou enquanto voltava para casa, já querendo estar na cerimônia.

 

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Prospéria

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