Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 20.1: Agente De Campo

“Cole Chapman.”

 Apesar de não confiar muito nele, devo dizer que seu trabalho é essencial para o bom funcionamento do DCAE. Quero dizer... Não precisamos do Chapman per se, mas precisamos de alguém na linha de trabalho de Chapman.

 Geralmente eu começo explanando sobre alguma raça perigosa de destaque, mas creio que é preciso lhe situar no que agentes infiltrados como Chapman trabalham.

 Basicamente um agente infiltrado é um policial disfarçado, que age de intermeio entre as línguas soltas da população envolvida com atividades ilegais e a polícia propriamente dita. Não que a população esteja envolvida diretamente, mas colhendo informações nos locais corretos você sempre acaba ouvindo boatos. E boatos são muito mais espalhados para fofoqueiros comuns do que para policiais fardados em horário de trabalho.

 Aí vem o papel do agente do disfarce. O papel de Chapman é socializar com pessoas que potencialmente possam revelar informações que jamais revelariam a alguma autoridade. Por isso ele costuma frequentar botecos de esquina após a meia noite, e porque não dizer: bocas de fumo. O fumo aliás, faz parte do odor exalado pela jaqueta que Chapman nunca troca.

 Para ilustrar como ambas linhas de operação do DCAE são importantes, exibo dois exemplos de como Chapman acabou responsável por resolver duas questões que até então não tinham sido resolvidas: no outro dia, quando ele ficou sabendo de antemão a localização de Pierre e Bad Boy, contou-nos que havia se feito de viciado e chegado a simular intenção de transação ilegal de Deluxes com um intermediário de um dos três mafiosos que tiveram o nome delatado: Verde, Wilkinson e Dragão. No caso provavelmente o Verde. É preciso reconhecer quando cumpre seu papel. Aquele foi um bom trabalho. Foi uma boa cilada armada por ele, mesmo que com uso de meios duvidosos, para que pudéssemos capturar os dois marginais com sucesso.

 Não foi o caso da última noite, em que ele acabou resolvendo separadamente outro caso: neste ele não havia cumprido papel algum. Ele me telefonou dizendo que havia resolvido o caso do cabeludo dos Johnson. Bem... Não era bem assim. O cabeludo quem havia decidido contatar a polícia por vontade própria.

 Era o dia seguinte. Estávamos na central eu, Joey e uma visitante:

 — Megan Mourne. Sou repórter do Daily Inquirer. Pela segunda vez. E você já devia saber.

 — Não costumamos aceitar entrevista sem hora marcada, senhora Mourne... — Fiz minha cara de “meu Deus, que saco”.

 — Eu já disse, não estou aqui para entrevista. Estou para tirar satisfações do caso do Sanford! Vocês não estão se mexendo, e o caso tinha que ser repassado e até agora não foi e vocês ainda por cima estão ignorando todas as pistas.

 Acendi um cigarro.

 — “Estão ignorando todas as pistas”. Poderia por obséquio esclarecer sobre essas “pistas” que estamos ignorando, senhora Mourne?

 A garota jovem de cabelos negros meio curtos e meio longos que estava na minha frente portando uma expressão frustrada fez que ia proferir mais uma frase intermédia de insulto, mas optou por responder a pergunta:

 — Aconteceu quando eu voltei para casa ontem. Ou melhor, anteontem: Até então eu e a Beth estávamos decididas a ajudar no caso e não me venha dizer — ela fez um gesto com a mão — para ficarmos fora disso.

 Joey, que também estava ali presente, me olhou desta vez com a expressão dele de “que saco”. Ela continuou:

 — Desde que resolvi... Resolvemos ajudar no caso eu tenho deixado uma de minhas câmeras ligada dentro do meu guarda-roupa quando saio de casa, justamente porque eu tenho deixado o fruto do meu trabalho na escrivaninha do quarto, e se alguém entrar lá... Sabe... Eu vou ficar sabendo.

 Tamborilava na mesa com meus dedos da mão livre.

 — Ah é? E que tipo de trabalho tem em cima da sua escrivaninha?

 — Ora, anotações sobre pistas e... Teorias... Enfim. Não importa! Está tudo lá. Mas o que acontece é que alguém entrou na minha casa! Alguém está querendo me tirar de cena.

 Eu e Joey nos entreolhamos novamente. Curvei-me mais um pouco na direção da moça.

 — Sua câmera... Captou alguém dentro de seu quarto?

 — Não! Quer dizer... Sim. Quer dizer. Sim e não. Alguém foi filmado... Mas a câmera não pegou.

 — ?

 — A câmera foi alterada! Digo... Alguém entrou, mexeu nas minhas coisas e desconectou a pilha. Mexeu na câmera. Não sei. Quando voltei para casa, a câmera estava desligada e a pilha estava fora. Mas quando eu saí eu tenho certeza que deixei ligada. Eu sempre deixo ligada. Eu...

 — Senhora? Como pode ter certeza?

 — É como eu digo, eu...

 Fiz um gesto com a mão do cigarro para ela me deixar falar.

 — Espere. Se está dizendo que alguém entrou na sua casa... Então mais coisas devem ter sido reviradas, não? Como estavam suas... Anotações? Estavam no lugar? Se lembra como as deixou quando saiu?

 Joey me cutucou com o braço.

 — Não... Eu também tenho deixado elas noventa graus e de frente para o teclado, com um espaço de dois centímetros... Elas estavam no lugar. Tudo estava no lugar.

 — Um espaço de dois centímetros... — Fiz a reticência em tom como se aquilo fosse um exagero, levantando ligeiramente também as sobrancelhas — E tem mais alguma... “precaução” que a senhora vem tomando?

 — Eu tenho deixado um clip preso na porta, para que caia no chão quando ela abre...

 — Estava no chão?

 Ela abriu e fechou a boca antes de responder.

 — Não...

 — Senhora... Não pensou na possibilidade de que realmente tenha esquecido de fechar a pilha na câmera?

 Ela alterou novamente o tom de voz, o que era insuportável.

 — Lógico que não! Aliás é o que estou te dizendo desde o começo! Eu tenho tomado todas as precauções possíveis. E agora tenho certeza que tem alguém que sabe que estou no caso e está começando a entrar em minha casa!

 Curvei-me novamente, chegando a me debruçar sobre a pequena mesa quadrada da minha sala. Fiz um tom baixo, quase compassivo:

 — Senhora... Senhora Mourne. A senhora está cansada...

 Ela literalmente se levantou da cadeira.

 — Não é isso! Eu sei que estou certa! Eu...

 Interrompi-a. Não porque fosse uma boa maneira de tratar uma moça prestes a surtar, mas eu queria deixá-la brava o suficiente para que saísse logo em espontânea vontade:

 — E mesmo se estiver... A pilha poderia ter saído sozinha do lugar. Você poderia ter encaixado ela mal!

 — Eu. Estou fornecendo informações. E ninguém leva a sério! É isso!

 Ela fez um gesto decisivo com os dois braços e saiu da sala estupefata.

 — Senhora...

 Joey começou a ir atrás. Parei-o com um gesto de meu braço.

 Ouvimos a garota jornalista sair e bater a porta.

 — Tenente?

 Deixei o cigarro na mesa e comecei a levantar-me, ameaçando sair. Peguei também minha jaqueta, que estava pendurada no encosto da cadeira.

 — Vamos?

 — Vamos? — Perguntou Joey.

 — Para o Chapman. Ele disse que o cabeludo dos Johnson tinha combinado as 10:30.

 — Espere. Ele tinha combinado? Ou o Chapman fez mais uma daquelas...

 — Vamos indo. Te explico no caminho.

 E fomos nos dirigindo ao pátio do prédio do DCAE, até a viatura. Joey continuou:

 — Ou o Chapman fez mais uma daquelas emboscadas igual com o Picelle e o Bad Boy?

 — Pierre. Não... Ele disse que o cabeludo procurou a polícia por vontade própria. Ele tem declarações a fazer. Ah. Falando no diabo...

 Meu celular começou a tocar. Era o Chapman. Atendi:

 — Oi...?

 No ponto de vista do Joey eu devo ter ficado parado no corredor escutando a voz do Chapman do outro lado da linha durante sabe-se lá quanto tempo e depois falado apenas uma frase: “Entendido. Estamos indo para aí” e depois desligado.

 Como pode ver aquele dia começou — e terminou — na maior correria. Primeiro tivemos ninguém menos que Megan Mourne, do Daily Inquirer, que agora estava dando uma de detetive particular nas horas vagas tentando convencer-nos de algumas teorias conspiratórias. Em seguida estávamos a caminho de nos encontrar com Cole Chapman, e o suposto cabeludo que fugiu de nós usando peripécias acrobatas nos telhados de Little Quarry na quinta-feira retrasada.

 — O que aconteceu? — Perguntou Joey preocupado, após eu desligar o telefone e o guardar no bolso. Enquanto isso descíamos até o estacionamento da central.

 — É o cabeludo. Ele sumiu.

 — Droga. Fugiu de novo?

 — Não... — Olhei para baixo — O Chapman disse que tem algo diferente... Apareceu alguém lá. Um corpo.

 — Um corpo?

 — Não bem um corpo... É o Sprohic. O irmão dele... Alexander Sprohic.

 — Alexander? Que foi levado — ele pronunciou a palavra com certo remorso — aquele dia de mim e de Emma? Ele está morto?

 — Não exatamente...

 Havíamos chegado à viatura. Eu abri a porta para Joey que entrou, e então entrei em seguida e fechei o carro. Começamos a nos dirigir para o local combinado.

 — Parece que ele está em coma.

 — Coma? Por quê? Foi o paranormal da sexta feira que fez isso?

 — Eu não sei se foi o negro da sexta... O Chapman diz que nada se sabe. Diz que ele foi lá para se encontrar com o cabeludo e encontrou o Sprohic lá. O cabeludo não deu nenhum sinal.

 — Que esquisito...

 — Eu que o diga.

 — E onde é esse “local combinado”?

 — No centro. Noble Av North, 3556. Fica perto daquele posto da esquina dos restaurantes... O Chapman vai estar lá e disse que vai explicar melhor.

 — Não me diga que acha que o Chapman tem algo a ver com isso, assim como no caso dos Pierre e Boys.

 — Não... Creio que o cabeludo dos Johnson tem algo a ver com isso.

 — De fato. Deve estar tirando sarro da gente...

 Tirando sarro do DCAE dessa maneira. Faz ligação anônima, coloca o corpo lá, fazendo com que nos locomovamos até o lugar. Qual o sentido? Por que revelar previamente que é ele e não deixar no anonimato? Se quisesse tão somente nos entregar o Sprohic poderia ter feito sem revelar que era o cabeludo dos Johnson... E afinal como o Chapman sabe que ele é de fato o cabeludo dos Johnson? Ele chegou a vê-lo? Ou só conversou no telefone? Muita coisa está mal contada nessa história.

 A grande questão é: por quê Noble Av North, 3556? Por que não deixar Sprohic em casa ou trazê-lo pessoalmente ao prédio do DCAE? Seria uma cilada?

“Mas se eu tocar no assunto cilada com o Joey ele não vai me dar crédito porque eu já tinha falado o mesmo na noite da emboscada de Filliard Summit...” Pensei comigo. Joey interrompeu meu pensamento, quando estávamos parados em um semáforo:

 — Mudando de assunto... O que o tenente acha do... “Depoimento” — ele proferiu a palavra quase que ironicamente — da senhora Mourne?

 — Sobre a câmera? Bem... Do jeito que ela está fissurada em todo o caso do assassinato do amigo dela... Não é de se espantar que esteja realmente anotando cada detalhe a fim de provar que há alguém tentando sabotar sua pesquisa. Eu achei bastante curioso, entretanto... Um clipe na porta? E uma câmera filmando por entre uma fresta do guarda-roupa?

 — Uma ideia e tanto, não? Eu deveria começar a fazer o mesmo lá em casa.

 — E digo o mesmo... Ela daria uma boa detetive do DCAE se tivesse o treinamento adequado...

 — Mas...?

 Dei de ombros.

 — Mas... Não há como negar que foi exagerado. Ou você acha que não?

 — Está pensando que é uma coisa da cabeça dela, tenente? Que ela realmente deixou a pilha solta?

 Tive que dar uma pausa antes de responder.

 — É... É complicado. É difícil de acreditar que seja mesmo coisa da cabeça dela. Do jeito que ela está prestando atenção aos mínimos detalhes... Pode ser que realmente alguém tenha entrado na casa dela e alterado a gravação.

 — E se alguém entrou e alterou a gravação?

 — Aí o que ela diz é verdade: os culpados do caso do Sanford estão fazendo um trabalho na casa dela para apagar os rastros.

 — E estão fazendo um mau trabalho...

 Ainda em outro sinal, peguei um cigarro na minha carteira. Joey pigarreou então abri a janela.

 — Estão fazendo um bom trabalho Joey — traguei com uma mão enquanto segurava o volante com a outra — acontece que ninguém previu que ia ter uma câmera ligada escondida atrás do guarda-roupa que estava entreaberto. Mas você vai concordar que não deixar nenhuma outra pista, nem mesmo o clip na porta, e deixar tudo exatamente no local que estava... Foi um baita trabalho.

 — Humm... De fato foi um trabalho e meio... Quem teria o cuidado de arrumar tudo de novo?

 — Alguém que queria mesmo que ela pensasse que apenas esqueceu a câmera ligada. E alguém que é capaz de entrar na casa de outra pessoa sem abrir a porta.

 Fez-se um silêncio no carro por alguns instantes.

 — Então... Um ser paranormal? — Perguntou Joey.

 — Um ser paranormal.

 Não era nenhuma novidade. As mordidas no corpo de Sanford indicavam que era caso especial, mas para alguém estar tomando as medidas preventivas usando de pequenos detalhes até a esse ponto...

 Difícil de acreditar que se o culposo fosse um mero lobisomem que se alimenta de carne e volta para casa, o mesmo tomaria o cuidado de revisitar a casa dos envolvidos e observar o quanto eles sabem. Até mesmo porque lobisomens não lembram o que causam durante sua transformação. E esse trabalho foi feito por alguém que está especialmente habituado a esse tipo de trabalho. Entra na casa, checa tudo, obtém suas informações, sai... E nada sai do lugar. Exceto por uma câmera que estava escondida e que mesmo assim ele conseguiu encontrar. Entretanto agora que a câmera havia filmado o fato de ele ter entrado no quarto, se vê com duas opções: ou rouba a câmera, ou faz uma pequena alteração, dando a entender ao dono que o mesmo deve ter apenas se esquecido de ligá-la antes de sair.

 Simular um roubo chamaria muita atenção. E visto que a maioria dos humanos não está especialmente prestando atenção a todos os pequenos rituais que deveriam cumprir antes de sair de casa, a segunda alternativa parece mais natural.

 O que ele não esperava era que a senhora Mourne estava mais ligada aos detalhes do que ele pensava...

 Tamborilava os dedos sobre o volante mais e mais, enquanto estávamos parados no engarrafamento do horário do almoço na avenida principal.

 — Nervoso, tenente?

 — Estava só pensando: esse lance todo... Sugere que há gente do tráfico envolvida com o caso do Sanford.

 — Lance? O que é isso, tenente? Está querendo parecer um daqueles tios que falam a gíria dos mais jovens?

 — Muito engraçado, jovem exemplar. Mas sugere que tem gente do tráfico envolvida.

 — Porque estão preocupados em esconder os detalhes? Não sei... Poderia ser algum lobisomem isolado com medo de ser pego pela polícia ou pelo DCAE.

 Faz um pouco de sentido. Mas é difícil pensar que há tantos grupos de criaturas paranormais na mesma cidade. E o pessoal do tráfico, especialmente aqueles que roubaram a carta e que enviaram o chocolate para Crane, são os únicos que imagino que possam ter essa habilidade de encobrir cada passo dessa maneira.

 De qualquer forma seria bom manter um olho em Megan Mourne. Se ela começa a se meter demais pode acabar virando comida de lobo...

 — A propósito, tenente... Falando em envolvido com o tráfico: tem um restaurante novo em Helmsley. Se chama Sweet Oaks.

 — Helmsley? E por que trazer isso à tona agora? Você planeja ir jantar lá depois? É no meio do nada.

 — Não é para jantar... É que o Galloway mencionou.

 Não pude deixar de sentir uma repulsa física correr em meu rosto diante o pronunciamento daquele nome.

 — Hm. O Galloway? O que tem o Galloway?

 — Ele mencionou que o lugar era bom... E que queria tentar trabalhar lá...

 — ...E?

 — E o lugar é barato...

 Traguei meu cigarro. Joey repetiu a frase enfatizando o superlativo:

 — “Bem” barato...

 — Espere! Você não acha que...?

 — Sim, “acho que”, tenente... Eu estava pensando em dar uma passada lá depois que virmos o Chapman.

 — Boa, Joey! Sabia que podia contar com você.

 — Ah, é mesmo?

 Lembrando bem Joey havia dito algo sobre pesquisar se Galloway podia ter alguma relação com o tráfico, mesmo que indiretamente. O fato de o chocolate ter sido enviado para Crane e então nenhuma tentativa de assassinato a mais ter sido feita durante todo esse tempo sugere que existe algum modo de monitorar Crane: há alguém que sabe o que Crane sabe, e o que se suspeitava que ela sabia na ocasião do atentado foi confirmado que ela não sabe; então ela não mais representa perigo.

 Tendo isso em base, a única pessoa que vive perto de Crane é Galloway, e por isso eu estava desconfiando dele.

 Entretanto no outro dia Joey meio que refutou a possibilidade de Galloway ter sido quem enviou os chocolates. Naquele dia eu pensei um pouco e de noite vim com a ideia que poderia ser que alguma finesse estivesse sim monitorando Crane por meio de Galloway, mas sem que ele mesmo soubesse.

 Daí enviei uma mensagem ao Joey e então ele havia ficado de pesquisar mais a respeito.

 Um restaurante bom e barato em um bairro remoto cheira a lavagem de dinheiro. Poderia ser que alguém que trabalhava neste restaurante estava fazendo a cabeça de Galloway para que ele trabalhasse para ficar mais fácil de fazer contato com seja qual for o aparato da finesse colocada nele? Seria plano de alguém envolvido com o tráfico? De fato, seria bom dar uma olhada...



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