Magna Ordem Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 1: Xeque-Mate

Thales Belacruz segurou a peça como se sua vida dependesse daquilo. Tomou um segundo para si antes de mover a própria Torre numa linha reta e…

Rei adversário encurralado. Xeque-mate.

Assombrado pela vitória, ergueu os olhos do tabuleiro para o oponente, sem acreditar no próprio feito. O semblante do rapaz na outra cadeira, um engomadinho habilidoso, fechou-se numa máscara.

Esticando a mão para cumprimentá-lo, Thales recebeu uma esmagada forte nos dedos e uma nova onda do perfume exagerado do oponente. Aquele cheiro havia lhe causado uma dor de cabeça dos diabos durante toda a partida e, para ajudar, agora a destra latejava.

Mesmo assim, decidiu que não se deixaria provocar, limitando-se a sorrir com educação. Thales já esperava pela dor de cotovelo, mas nem o pior dos perdedores poderia acusá-lo de sorte: Não existe sorte no Xadrez, é tudo tática e posicionamento, pensou ele.

O adversário afrouxou o aperto no momento em que a juíza, uma senhora de postura solene e terno impecável, terminava de anotar os lances num tablet. Ela percebeu a exaltação dos ânimos e olhou feio para os dois jogadores.

O perdedor, enfim, abriu a boca para perguntar:

— Quem é o seu mentor?

— Meu pai.

— E quem é seu pai? Não esperava ser derrotado por um jogador que não conhecia.

Thales abriu o sorriso e olhou à volta, adiante das várias mesas de Xadrez que se distribuíam pelo ginásio de esportes. Passou pela equipe de jornalismo que cobria o evento e os seguranças do local, até chegar a uma pequena e silenciosa torcida que assistia às partidas da arquibancada, em sua maioria composta por amigos e familiares dos participantes.

A expressão de Thales, no entanto, fechou-se num misto de decepção e estranheza: Camilo Belacruz, seu pai, não estava em lugar nenhum. Quando tornou a encarar o adversário para explicar a situação, encontrou-o se afastando num grupinho de amigos.

— Meus cumprimentos por ter chegado à final, participante. — A voz tediosa da juíza trouxe o garoto de volta à realidade. — Faremos uma pausa de meia hora antes de prosseguirmos ao último jogo. Sugiro que retorne antes desse período, entendido?

— Sim, senhora.

Naquela manhã, parecia haver uma movimentação atípica pelo local, borbulhando uma sensação de inquietude no peito de Thales, que limpou a barra do terno simples e deixou a mesa para trás, desviando-se das partidas que ainda aconteciam.

Ao adentrar no sanitário masculino, lavou as mãos na pia e encarou a si mesmo no reflexo: um jovem magricela e de olhos escuros. Suspirando, ele puxou um objeto do bolso.

A velha peça dourada de um Rei havia se tornado seu amuleto desde que o pai lhe presenteou em sua primeira vitória oficial, fazendo os pensamentos viajarem até o homem e sua ausência atípica.

Acreditava que, como forma de compensar a morte da esposa — e mãe de Thales —, Camilo simplesmente resolveu acompanhar o filho em tudo o que pudesse, e isso incluía as partidas de Xadrez. O esforço do pai o comovia, sempre arranjando torneios com premiação em dinheiro para o garoto participar.

O problema era o valor das inscrições, por isso ficou puto da cara ao descobrir que aquele campeonato custaria metade do pífio salário de professor do pai. Daquele modo, ele cruzou os braços, afirmando que não participaria.

“Não se preocupe com dinheiro, filho. Se perder, basta eu fazer uns bicos por aí.” Dias atrás, aquela fala saiu em meio a um sorriso otimista de Camilo, quebrando a convicção de Thales. Vencido, resolveu dar uma chance à disputa depois de ler as regras e constatar que o vencedor levaria cem mil reais para casa. Decidiu, ali, que lutaria com todas as forças para vencer e ajudar seu velho.

Em todo o caso, ele sabia que o campeonato era uma daquelas oportunidades únicas da vida, com olheiros e patrocinadores rondando o local a procura de jogadores geniais, embora não se considerasse um deles. Claro, havia derrotado seu último adversário — um dos favoritos do torneio, inclusive — e agora se encontrava na final, mas tinha a impressão de que seu cérebro estava no limite das ideias de jogo.

De repente, Thales escutou um ruído estranho invadir o banheiro, arrancando-o daquele transe. Percebendo que vinha do lado de fora, a curiosidade o transportou até a porta para olhar.

Sentiu o coração subir na boca e voltar ao testemunhar uma cena pavorosa: os seguranças do local cobriam os rostos com capuzes e rendiam as pessoas até o meio da quadra, ameaçando com suas escopetas e pistolas.

— Tem gente fugindo! — Um dos homens armados gritou para os outros.

E de fato tinha. Ainda do canto da porta, Thales observou que a juíza de sua partida estava para alcançar a saída de emergência quando um barulho muito alto ecoou pela quadra.

As pessoas gritaram quando o tiro atravessou o pescoço da mulher, despencando pelo piso como um boneco que teve as cordas subitamente cortadas.

Com o pânico descontrolando o coração, o garoto se encolheu na parede. Ficou ali paralisado por quase dez segundos até seu celular tocar no bolso. Tentando atendê-lo desesperadamente, rezou a Deus que o som não tivesse escapado do banheiro e chegado até os homens.

Era Camilo.

— Pai!? — chamou Thales, correndo para se trancar na última cabine.

— Oi, filho. Tive um problema no trânsito e…

— Pai! Espera. Me escuta! — cortou-lhe. — Não vem pro ginásio. Chama a polícia, por favor!

Sentado com pés e tudo sobre a privada, ouviu um arquejo do outro lado da linha. Quando falou, a voz de Camilo era uma mescla de medo e confusão:

— Calma, Thales. Que aconteceu? Me explica devagar.

— Os seguranças estão rendendo todo mundo aqui dentro. Mataram uma pessoa, pai! Eu tô no banheiro, não consegui ver direito. Acho que vieram atrás dos cem mil do prêmio.

— Jesus! N-não sai daí, filho. Não sai daí por nada! Vou ligar pra polícia agora e…

Naquele momento, outro barulho chegou até o jovem vindo da entrada do banheiro, por isso desligou depressa. Suando frio enquanto apertava o celular, escutou uma voz abafada por um tecido, provavelmente uma balaclava:

— Quem tá aí?

Tinha certeza que era um dos bandidos, por isso engoliu em seco sem emitir qualquer ruído.

Os passos do homem ecoavam devagar pelo piso, ao mesmo tempo em que o garoto estudava suas poucas opções com a adrenalina zumbindo a ponto de quase fazê-lo vomitar. Uma por uma, o assaltante começou a chutar as portas das cabines, o que fez Thales amaldiçoar o tamanho da abertura lateral do box — pequena demais para ele atravessar por baixo.

Daquele modo, só havia uma alternativa: aguardar até o homem encontrá-lo e se render de uma vez.

Ele respirou várias vezes, preparando-se mentalmente para o horror do inevitável. Sua cabine seria a próxima a ser aberta, então desceu da privada e ergueu os braços em sinal de desistência, embora preferisse continuar sentado porque estava prestes a se borrar.

Vai acontecer a qualquer momento… pensava ele. A qualquer segundo…

Então aconteceu. Thales não sentiu dor, nem medo. Somente um barulho muito alto que cessou de repente. As vistas se turvaram. Mesmo assim, conseguiu olhar para baixo e conferir que o peito e a barriga sangravam através de uma dúzia de perfurações.

Ele se voltou para frente. O sujeito mascarado havia aberto a cabine após atirar, com o cano da escopeta ainda apontada.

Puxando a balaclava de cima da boca, o assaltante sorriu, ironizando sem qualquer pingo de remorso:

— Ih, moleque… Acho que é xeque-mate.

Os olhos de Thales pesaram como chumbo e ele perdeu a sustentação das pernas, satisfeito que, apesar de sua tática ter falhado, pelo menos avisou seu pai a tempo. Ele não tinha arrependimentos, talvez apenas não ter dado um último abraço no velho…

Quando piscou a primeira vez, foi tomado pela sonolência; na segunda, a silhueta do assaltante se transformou em borrão; na terceira, as vistas escureceram diante do fim inevitável.

Mas havia algum mistério acontecendo ali. Mesmo no escuro, Thales ainda sentia a existência da própria mente. Quando vivo, sempre imaginou que a morte fosse como um puxar de plugue de tevê: os circuitos paravam e a tela simplesmente desligava, só que para sempre.

Contudo, lá estava ele; uma consciência sem o corpo. Ele não tinha mais pulmões, mas desejou soltar um longo suspiro, dando vazão à frustração. Que jeito merda de morrer!

E foi se lamentando que as trevas começaram a se dissipar, surpreso ao sentir os próprios olhos piscarem mais uma vez e flagrarem um entretom cinzento e esverdeado; algo indistinguível.

Na quinta piscada, a construção ganhou foco até perceber a floresta que invadia as ruínas do local que… Hã? Floresta?

Thales voltou a si apavorado, abrindo e fechando os olhos várias vezes até assimilar que a luz do sol golpeava suas vistas, sentado num chão pedregoso com as costas apoiadas sobre um pilar destruído e uma janela que flutuava, brilhando com uma estranha mensagem.

 

Sincronização finalizada >>> 100%

Olá, Jogador!



Comentários