Magna Ordem Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 9: Trabalhe os gambitos

Os olhos dourados de Thales se abriram devagar. Levou a mão à testa, sentindo uma dor de cabeça dos diabos.

— O que aconteceu…?

A resposta se materializou através de uma conhecida janela brilhante:

 

«!»

O Jogador dormiu por três dias.

 

— Três dias?! — Saltou apressado do colchão, notando estar no quarto da estalagem.

Como primeira atitude, ignorou as outras mensagens de Mitty, que piscavam no formato de um envelope com exclamação, para avançar contra uma jarra de água em cima da cômoda, entortando o objeto de uma vez sobre a boca sem se importar com o que derramava no chão. Seu corpo estremecia de sede.

Ele esvaziou o conteúdo completo, bateu a jarra no móvel e respirou aliviado, reconhecendo a xícara pousada ao lado com um pouco de chá de Viçosa Azul depositado no fundo…

Os músculos tensionaram de repente; a mente invadida pelas lembranças da batalha contra o Guardião Capivara.

— Ellin… — sussurrou ele.

Aprontando-se o mais rápido que pôde, Thales desceu as escadas, arrancando a atadura que cobria a bochecha direita. Passou a mão pelo local, notando uma pequena cicatriz antes de avistar Claus limpando uma das mesas.

— Filho! — rugiu o homem, ao notar a aproximação do rapaz. — Pelos deuses, quando vai parar de me assustar desse jeito?

— Desculpe. Foi do nada. — Correu o olhar de um lado a outro pela taverna vazia. — Cadê a Ellin?

— Foi se alistar na capital. Como são três dias de viagem até lá, preferiu apanhar a carruagem com antecedência. — O homem fez um gesto para que Thales se sentasse no balcão, colocando dois pratos e um copo vazio à frente dele. — Aliás, você tem que agradecer de joelhos quando ela retornar. Além de ter te protegido de um darkinus da floresta, cuidou de você desmaiado até ontem de manhã, sabia? Poucas horas antes de partir.

O jovem fungou um sorriso. — Ela disse que enfrentamos um guardião?

Claus o fitou com repentina seriedade, piscou duas vezes e, sem mais nem menos, explodiu em gargalhadas, retumbando pelo saguão.

— Sua amiga já é mais forte que nós dois juntos, filho. Não tem necessidade de exagerar os feitos dela. — Ele enxugou uma lágrima do rosto. — Ellin estava certa quando comentou sobre você estar mais engraçado ultimamente… Enfim, vou lá apanhar algo antes que você caia duro de fome.

O pai desapareceu para dentro da cozinha, deixando Thales em companhia dos próprios pensamentos. Diante da reação efusiva de Claus, era seguro dizer que o homem acreditava que Ellin tinha feito tudo sozinha. Assim como no Xadrez, portanto, as regras de Cablanc também colocavam os Peões como seres fracos e descartáveis.

Suspirou longamente. Não adiantaria tentar explicar a história verdadeira, afinal.

Ao retornar, o homem distribuiu as porções pelo balcão, trazendo uma quantidade generosa de arroz, batatas assadas, carne de caça ao molho e um punhado de legumes cozidos que Thales não conseguiu identificar, terminando de encher o copo do filho com água fria.

De todos os males daquele mundo, pelo menos um detalhe havia agradado ao jovem: descobriu que, naquele lugar, a maioria dos alimentos eram parecidos com os da Terra, com exceção de um ou outro legume mais bizarro.

Faminto, Thales devorou a refeição em desespero, engolindo uma colher atrás da outra enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. — Como é bom estar vivo!

Prendendo um arroto ao terminar sua água, bateu na barriga e saltou da cadeira, seguindo na direção da porta da estalagem.

— Aonde vai, filho? — Claus convocou do balcão. — Você precisa descansar.

— Três dias é bastante tempo pra descansar. Preciso de um pouco de sol. Volto mais tarde. — E bateu a saída atrás das costas.

— Esse moleque… — riu Claus, esfregando uma sujeira difícil de sair. — Mas até que aquela cicatriz ficou boa no rosto dele.

 

*******

 

De volta à clareira, Thales encarou o cenário de destruição que deixaram para trás: um bando de árvores destruídas e muita coisa queimada.

O rapaz se dirigiu até o ponto em que imaginava ter ficado inconsciente, considerando bastante mórbido encontrar um pedaço das pernas do Guardião Capivara começando a apodrecer.

Afastou-se, apoiando as costas sobre o toco de uma árvore caída.

— Status.

A janela do sistema revelou que Thales subiu do Elo 2 para o 7, além de um ligeiro aumento em todos os atributos, especialmente impressionado com a pontuação da promoção, luzindo agora em +1557.

Sem esperar pelo comando, Mitty atualizou a informação, avisando que o Elo necessário para a ativação d’O Ferreiro, outra Habilidade Passiva, havia sido atingido. Thales clicou no ícone, cada vez mais curioso.

 

«O Ferreiro»

Artesão Alquimista:

O Jogador pode criar armas e artefatos a partir dos itens que adquirir.

Ativar?

>Sim / Não

 

Os olhos dourados do rapaz se arregalaram. Fosse a descrição verdadeira, seria de bastante utilidade num mundo repleto de criaturas perigosas. Pressionou no “Sim” e esperou pelo próximo acontecimento fantástico, sendo recebido, entretanto, pelo ícone do envelope com exclamação, finalmente cedendo à pressão de Mitty.

A carta se esticou na janela diante dele, revelando mais informações:

 

«!»

O Jogador derrotou o Guardião Capivara

 

Recompensas:

2× Ossos do Guardião Capivara «RARO»

1× Cristal darkinus «LARANJA»

 

Deseja usar «O Ferreiro» em «Ossos do Guardião Capivara» ×2?

>Sim / Não

 

— Vamos ver no que dá… — O holograma se alterou mais uma vez ao ativar a habilidade, abrindo-se numa aba que solicitava a Thales outra escolha.

 

Uso de 2× «Ossos do Guardião Capivara». Escolha o resultado alquímico:

>Lança da Besta

Espada Errática

 

Como não podia conferir os detalhes antes de tomar a decisão, Thales optou pelo nome que mais lhe agradou, observando os ossos de roedor brilharem por um instante até despencarem em seu colo, transformados numa bela espada bastarda; o pomo no formato de um crânio de capivara.

— Incrível… — Um tanto animado, tomou o objeto pela empunhadura, impressionado com seu peso quase inexistente e com o fato de acrescentar +77 pontos em sua Força, testando o balanço agradável da arma.

De repente, Thales flagrou um cervo o encarando à distância de algumas árvores, sentindo-se imbecil sob o olhar acusatório do bicho. Suspirou longamente e parou de fingir que cortava o vento, aceitando o fato de não saber uma vírgula sobre Esgrima e de estar passando vergonha sob o flagrante de uma testemunha — mesmo um animal.

Ele guardou a Espada Errática e o cristal laranja no Tabuleiro, voltando-se ao motivo principal do retorno à clareira: finalmente apertou a tecla que iniciava a missão da área ampla e seca.

Inesperadamente, algo estourou pelo local, levantando uma rala cortina de poeira e espantando o cervo enxerido. Tossindo um pouco, o rapaz abanou próximo do rosto até avistar um conjunto bastante inesperado de objetos, ao mesmo tempo que um pequeno orbe azul, do tamanho de um limão, surgiu em sua mão direita.

Diante de Thales agora se esparramava uma grande tenda de quatro apoios, sob a qual descansava duas barras de metal, anilhas, halteres, uma gaiola de agachamento e barra fixa e um banco de supino.

Sentindo um músculo repuxar na têmpora, uma nova mensagem de Mitty apareceu diante dele:

 

«!»

Missão Comum atualizada para >>> Missão Diária

Trabalhe os gambitos: Um manual de fortalecimento criado por um guerreiro lendário chamado Lohorse. O poder dos músculos emana deste guia esquecido.

Requisitos: Termine os «Exercícios» antes do fim do dia.

Recompensas: EXP

 

Durma bem, coma bastante e beba muita água. Carnes, ovos e queijos, arroz, pães, legumes e frutas construirão um corpo másculo. Bum-Bum!”

 

«Exercícios»

Agachamento: 0/70 reps

Supino: 0/70 reps

Barra fixa (mãos para si): 0/70 reps

Levantamento terra: 0/70 reps

Abdominais: 0/70 reps

Corrida: 0/7 km

 

Thales estava mudo de perplexidade. Olhou da tela para os equipamentos de musculação e destes para a tela outra vez. Queria ter certeza de que não era vítima de uma pegadinha.

Inevitavelmente, acabou se lembrando da vez em que tentou malhar. Acontecera anos atrás e durou uma única aula que resultou em três dias de dores insuportáveis pelo corpo. Foi o suficiente para desistir de vez da atividade, decidido a trabalhar somente o cérebro.

De qualquer modo, ele releu a explicação sobre as recompensas. Pelo jeito, receberia Experiência caso cumprisse a missão, algo que, como todo RPG que se prezasse, seria necessário para subir de nível — naquele caso, de Elo —, aumentado suas chances de desbloquear informações sobre retornar à Terra.

Thales respirou fundo e guardou o Orbe de Teleporte no Tabuleiro. Preferia dar uma olhada mais atenta ao objeto em outra hora.

Finalmente deixando o desânimo se apoderar de si, arrastou as pernas até a tenda, encarando aquele amontoado de pesos e anilhas que se distribuíam sob a área.

— Isso vai ser um desastre…

Recordando-se das instruções que recebeu em seu martírio na academia, Thales seguiu até a gaiola para montar o agachamento. Enfiou as anilhas na barra livre, que se ajustaram magicamente ao objeto, e se ajeitou no exercício, respirando fundo antes de descer a primeira vez. Na hora de subir de volta, o rosto se contorceu numa careta de morte.

O rapaz conseguiu reproduzir a ação mais três… quatro… cinco vezes… Na sexta repetição, ele apenas largou a barra na proteção, e caiu com um baque macio sobre a grama; as coxas estremecendo de dor.

— Cacete, Mitty! — Thales foi tomado pela revolta. — Eu jogo Xadrez. Não sou bodybuilder!

Ele passou o restante da tarde na clareira, sozinho, e a única resposta do sistema foi deixar seu fracasso em evidência. Horas mais tarde, a janela ressurgiu como uma espécie de nota de deboche.

 

«Exercícios»

Agachamento: 23/70 reps

Supino: 26/70 reps

Barra fixa (mãos para si): 12/70 reps

Levantamento terra: 15/70 reps

Abdominais: 70/70 reps

Corrida: 3/7 km

 

— Chega! — Ele parou de correr, largando-se ao pé de uma árvore para recuperar o fôlego. — Desisto dessa merda…

 

*******

 

Era quase noite quando Thales apareceu na estalagem.

— Que cara é essa, meu filho? — assustou-se Claus. — Parece que um ogro rolou por cima de você.

— Hã…? — O rapaz ergueu os olhos fundos, arrastando as pernas como se tivesse esquecido a alma em algum lugar. — Foi… quase isso. Tentei pagar pelos meus pecados, mas não consegui.

O homem ergueu uma sobrancelha. — Aconteceu alguma coisa?

— Nada pra se preocupar. — Ele deu de ombros. — Vou tomar um banho. Tô morrendo de fome.

— Pois tome e coma depressa. Um bardo vai vir tocar aqui essa noite, então você vai me ajudar com os clientes. Sabe como é a voz de um elfo, provavelmente vamos ter casa cheia.

— Mas… Mas eu tô quebrado! Mal consigo andar.

— Sem desculpas. Veja se Ellin fica de choradeira. — Claus cruzou os braços. — Sabia que o cristal dela se quebrou? Isso acontece quando se usa Mana demais, e ela fez isso pra te salvar. Agora foi se alistar sem uma arma. Pobre garota… Não sei como vai se virar.

O semblante de Thales foi tomado pela surpresa. — Como assim?

— Ela não conseguiu comprar outro a tempo de partir. Parece que só tinha dinheiro pra carruagem. Não quis desanimá-la, mas Ellin provavelmente será reprovada no teste…

O olhar de Thales se perdeu sobre o nada, sentindo parte de culpa pela situação. Antes de voltar para ajudar, havia se acovardado e deixado a garota lutar sozinha contra o guardião.

— Pai? — chamou ele com a voz grave. — Onde vai acontecer o alistamento?

— Na Tábula, é claro.

Mergulhando em pensamentos, Thales passou a mão pela cicatriz da bochecha, lembrando-se da recompensa da última Missão Comum: um Orbe de Teleporte que o levaria diretamente até o prédio da Magna Ordem.

Agora só precisava arranjar um anel mágico para Ellin antes de partir.



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