Volume 1
Capítulo 14: Os La Manchas , parte um.
O sol brilhava com orgulho no céu, como se também quisesse assistir ao espetáculo. A feira da cidade fervilhava: barracas coloridas, frutas frescas, gritos de pechinchas e o cheiro de pão recém-saído do forno no ar. Era mais um dia comum no Reino de Hiden — até que deixou de ser.
Um goblin atravessou o mercado como um furacão em miniatura, pulando por cima de barracas, derrubando pães, espalhando maçãs e arrancando gritos assustados de comerciantes.
Ele fugia.
Não de guardas. Não de caçadores experientes.
Mas de dois garotos com mais imaginação do que juízo.
— TUDO BEM, CIDADÃOS! OS GRANDES CAVALEIROS ESTÃO AQUI! — gritou Alonso, um menino magricela de cabelo bagunçado, nariz afiado como espada e armadura de madeira velha que fazia mais barulho que proteção.
Ao seu lado, Jeff, com oito anos e uma barriga que quase rasgava a camiseta, ergueu um escudo feito de tampa de panela e empunhava com bravura um bastão encapado com uma cabeça de cavalo de pano, provavelmente roubado de um brinquedo velho.
— ESTAMOS AQUI PARA PROTEGÊ-LOS! — completou ele com a seriedade de um veterano de guerra, mesmo com o nariz escorrendo.
Alonso, em êxtase:
— AVANTEEE, SANCHO!!
— Quem? — perguntou um homem com um saco de cebolas, franzindo a testa.
— Que bagunça esses pirralhos estão fazendo... — murmurou um velho vendedor de frutas, vendo seus tomates serem esmagados pelo pé de Jeff.
Para quem observava de longe, era só uma cena caótica: dois moleques correndo atrás de uma galinha com chapéu improvisado de goblin (provavelmente algum figurino de festa de aniversário), derrubando mercadorias, esbarrando em clientes e causando o tipo de destruição que só crianças com espada de pau conseguem causar.
Mas, na cabeça de Alonso e Jeff, era uma caçada épica. Eram cavaleiros lendários enfrentando um terrível monstro das trevas. O goblin carregava informações secretas. A feira era um campo de guerra. A população? Reféns do terror.
— NÃO DEIXE ELE ESCAPAR, SANCHO! — Alonso berrava enquanto pulava por cima de uma caixa de laranjas, escorregando no que pareceu ser uma goiaba esmagada.
Jeff, ofegante, mas comprometido com a missão:
— EU TÔ CORRENDO O MAIS RÁPIDO QUE POSSO, DOM ALONSO!!
E, apesar de toda a confusão, havia algo lindo ali.
Dois meninos que acreditavam com todo o coração que estavam salvando o mundo.
Mesmo que o mundo, naquele momento, só quisesse fazer suas compras em paz.
Alonso esticou os braços e quase agarrou o ser mágico... mas escorregou no próprio entusiasmo e foi de cara no chão. Seu corpo deslizou alguns gloriosos metros, como um herói caindo em câmera lenta. Na cabeça dele? Uma queda épica. Para quem assistia? Um tropeção vergonhoso digno de um “ai, meu filho!”
Seu fiel escudeiro, Sancho, assumiu a ofensiva. Com uma coragem cega e total falta de noção, preparou seu escudo para lançar. Mas seu cavalo (leia-se: aquele cabo de vassoura com uma meia na ponta) se enroscou nas pernas do garoto, fazendo-o girar no ar como uma roda de pizza voadora. O escudo voou... e acertou em cheio a testa brilhante de um comerciante calvo, que caiu como uma árvore velha. Sancho rolou como um barril solto, derrubando um grupo de pessoas como num strike de boliche.
Resultado: o goblin — ou melhor dizendo, a galinha — conseguiu escapar dos bravos heróis.
— Sancho! Você está bem?! — Dom, ainda tonto, correu até o escudeiro caído.
Jeff estava estirado no chão, com os joelhos ralados, o rosto cheio de terra e um sorriso largo no rosto, como quem tinha acabado de salvar o mundo.
— Quase pegamos, Dom! AHAHAHAAA! — riu, cuspindo uma folha.
Dom riu junto, sentando-se ao lado dele.
— Sim... quase. Mas não vamos desistir, jamais!
Mas a glória teve um fim abrupto.
— Ei, pirralhos! — uma voz grave cortou o ar, como o rugido de um dragão... ou de um pai muito bravo.
A sombra que se formou sobre os dois fez o sol parecer fugir. Dom virou lentamente e viu um homem enorme, musculoso e com um semblante nada amigável.
— OGRO! — gritou Dom, apontando sua espada de madeira com honra e audácia.
— Ogro? — o homem respondeu, confuso e claramente ofendido.
— O que faz nesta terra? — Jeff entrou no personagem. — Voltai para a lama de onde viestes, criatura!
— Vocês têm problema, é isso? — resmungou o homem, tirando algo de cima da cabeça — Isso aqui é de vocês?
Era o escudo de Sancho, agora amassado e sujo de tomate.
— Estamos em uma missão nobre! — Dom se defendeu com a petulância de um rei — Estamos perseguindo um goblin de classe S!
O homem, já sem paciência, agarrou Alonso pela gola e o levantou como se fosse uma sacola de pão. Girou o garoto e o colocou de frente para a destruição: barracas despedaçadas, legumes pelo chão, velhinhas recolhendo cenouras e gente esfregando joelhos machucados.
— OLHA A MERDA QUE VOCÊS FIZERAM!
Dom olhou tudo. Era... devastador. Até ele teve que admitir que talvez tenha passado um pouquinho do ponto.
— Deviam nos agradecer. Isso é o preço de uma batalha. — disse, dando de ombros como um verdadeiro cavaleiro de guerra.
Jeff percebeu na hora: *ferrou.*
Tentou sair de fininho... mas deu de cara com outro comerciante, cruzando os braços na frente da única saída.
Fim da linha.
Mais tarde...
— MÃEEEEE, CHEGAMOOOS! — Jeff anunciou, empurrando a porta de casa com um dos braços e carregando Alonso desmaiado no outro.
Ambos estavam irreconhecíveis: hematomas, terra nos dentes, um olho roxo cada. Pareciam ter saído de uma batalha medieval de verdade... só que com adultos irritados.
A casa era simples, humilde e acolhedora em sua própria maneira. A sala vazia dava direto para a pequena cozinha, com um fogão a lenha cansado de tanto lutar contra o frio.
Jeff foi até um dos dois quartos. Lá, deitada em uma cama encostada na parede, estava sua mãe. Seu vestido cinza parecia ter sido lavado mil vezes. Ela tinha pele pálida, cabelos castanhos e olhos completamente esbranquiçados. A cegueira a impedia de ver, mas não de sentir.
— É você, Jeff? — perguntou, ao escutar os passos miúdos se aproximando.
— Sou eu, mamãe. — respondeu o garoto, sentando ao lado dela.
— E o Alonso?
— Tá dormindo... — disse, com um sorriso sem graça, escondendo a verdade. A última coisa que queria era preocupá-la.
— Ele deve estar cansado... como foi a aventura de hoje?
O rosto de Jeff se iluminou. E, por alguns minutos, toda dor sumiu.
— Você não vai acreditar, mãe... a gente enfrentou um goblin super ágil! Dom quase pegou ele! Eu rolei no chão que nem bola de ferro! E lançamos escudos! E o povo ficou tão agradecido!
A cada exagero, um sorriso brotava no rosto da mulher. E, mesmo sem ver, ela conseguia enxergar algo muito maior: a imaginação viva do filho.
— Nossa... hoje foi cheio mesmo, hein? — riu, passando a mão carinhosamente no cabelo dele — Eu admiro a coragem de vocês.
— Sim! A população está totalmente grata!
Mentira, claro.
Dom e Sancho estão proibidos de pisar na feira de Hiden pelos próximos 60 anos.
Mas, naquele momento, na segurança do lar, entre risadas e carinho, a fantasia vencia mais uma vez.
— Vou preparar algo para comermos. — Jeff se levantou e pegou uma cadeira de rodas. Por complicações de saúde, sua mãe também não podia andar.
Sancho a ajudou com delicadeza, guiando-a até a cadeira.
Ele a levou até a cozinha… mas parou surpreso ao ver Alonso já diante do fogão.
— Dom?
— Ora, de vez em quando preciso mostrar meus dotes culinários! Um cavaleiro não vive só de lutas, também temos... fome!
A mãe deles riu com vontade ao ouvir aquilo. Sancho não aguentou e caiu na risada junto.
— Por que estão rindo? O que foi engraçado?? Falem! Falem!
Depois de muito rirem — e comerem — colocaram sua mãe para dormir. Ao verem que ela tinha finalmente adormecido, os dois foram para a frente da casa.
A noite havia caído. As lamparinas dos postes lançavam um brilho morno sobre a rua, e poucas pessoas passavam por ali. Os garotos se sentaram na calçada, observando o silêncio da cidade.
— A mamãe tá pior. — Jeff quebrou o silêncio, com um tom baixo e carregado.
— Ora! Tudo bem! Eu, como um grande cavaleiro, partirei em uma aventura para encontrar uma poção mágica capaz de curá-la! — disse Alonso, apontando o dedo com firmeza para o céu estrelado.
Ele se referia ao trabalho no campo, onde os dois iam todos os dias. A “aventura” era plantar, colher e vender — o que desse para garantir comida e remédio para sua mãe.
— Mas... acho que os remédios não estão mais funcionando... — Jeff continuou, olhando para o chão, com as mãos agarradas na barra da blusa. — Eu percebi... ela quase não come mais.
Havia dor em cada palavra. E, depois de um silêncio amargo, ele soltou:
— Se o pai estivesse aqui…
— CALADO! NÃO FALE DESSE VERME AQUI! — A voz de Alonso explodiu, afiada como um trovão.
Jeff se encolheu, assustado. Os olhos de Alonso brilharam em verde — uma centelha mágica acesa pela raiva. Uma aura sutil surgiu ao seu redor, como se sua magia quisesse protegê-lo daquela lembrança.
— Dom?
Alonso respirou fundo. A raiva ainda ardia, mas ele a domou com força.
— Nós não precisamos dele. Quando nossa bela rainha precisou... ele fugiu. Não assumiu nada. Então cabe a nós, o Lendário Cavaleiro e seu Fiel Escudeiro, protegê-la. Dar uma vida melhor a ela.
— Claro que sim. — Jeff respondeu, com os olhos brilhando de admiração.
Sancho entendia a raiva de Alonso. Sentia a mesma coisa. Quando o mundo desabou, o pai deles escolheu virar as costas. Eles, mesmo pequenos, escolheram lutar.
E ele se lembrou de onde tudo começou.
##
— Senhor, sua esposa não voltará a andar. — disse o médico, sério. — A situação dela é crítica. Infelizmente, com a magia medicinal atual, não consigo nem identificar qual é a doença.
Estavam fora da casa, onde ninguém pudesse ouvir. O pai da família usava roupas sujas e desalinhadas — a figura perfeita de um beberrão sem rumo nem esperança.
— Oras! Eu tô pagando caro pra você vir aqui me dizer que *não sabe* o que ela tem? — esbravejou, apontando o dedo sujo na cara do médico.
— Posso prescrever alguns remédios que vão retardar os sintomas...
O homem coçou a cabeça, bagunçando ainda mais os cabelos desgrenhados.
— E quanto isso vai me custar? Ela vai voltar a andar? Ela precisa cuidar da casa.
— O sistema central dela foi danificado... essa doença levou algo que a magia atual não consegue restaurar.
— CALA A BOCA! Responde logo! — gritou, furioso.
O médico, com pesar, balançou a cabeça negativamente.
— Merda! — rosnou o homem. — Eu não tenho tempo pra cuidar da casa, muito menos daqueles pivetes...
— O senhor deveria priorizar a saúde da sua esposa. — disse o médico, mantendo a calma enquanto entregava um papel com os nomes dos remédios. — Desejo melhoras a ela. É uma mulher que lutou muito pra cuidar do que tem, mesmo com dor. Ela não é só uma empregada.
— ÃH? NÃO VAI FAZER NADA? — o homem gritou ainda mais alto, furioso com o sermão.
— Procurarei outros meios. Se houver novidades, entrarei em contato. Tenha uma boa tarde.
Sem se abalar, o médico virou-se e saiu caminhando calmamente.
O homem olhou para o papel em suas mãos, bufando com desprezo. Eram remédios caros. Muito caros. Teria que abrir mão de algo — mas esse era um sacrifício que ele não queria fazer.
Com raiva, amassou o papel e o jogou no chão. Murmurando pragas, entrou de volta na casa.
Mas alguém havia escutado tudo. Uma figura se levantou de uma moita em frente à casa.
— Ouviu isso, Alonso? — Jeff perguntou, pegando o papel amassado do chão e abrindo com cuidado.
Alonso ficou em silêncio por alguns segundos.
— Vai ficar tudo bem. — Jeff tentou consolar. — Alguma coisa vai aparecer... o médico disse que vai procurar, lembra?
— Acho que não vai. — respondeu Alonso com a voz trêmula. Ele estava lutando para não chorar. — E... e se ele não achar?
A pergunta ficou no ar, fria como o vento que passou entre eles.
Um grito violento, vindo de dentro da casa, interrompeu o silêncio.
Sem pensar duas vezes, os irmãos correram. Ao entrarem, seus olhos se arregalaram diante da pior cena que poderiam imaginar.
Viram sua mãe jogada no chão, agarrada à calça velha do homem, tentando impedir o que ele pretendia fazer.
— Por favor... — ela implorava, chorando, enquanto o marido ignorava suas súplicas. — Eu preciso da sua ajuda...
— Cala a boca, Meredith! Eu não tenho como pagar a porra dos seus remédios! Os pivetes já são grandes o suficiente pra cuidar de você enquanto eu estiver fora!
Ele dizia que sairia em viagem para conseguir dinheiro para o tratamento da esposa. Mas todos ali sabiam: seria uma viagem sem volta.
Alonso, vendo aquela cena, sentiu o sangue ferver. Aquele homem, sempre ausente, que ela cuidava mesmo bêbado, que ela ajudava com remédio pra ressaca pra ele poder trabalhar... E agora, quando ela mais precisava, ele estava fugindo.
O garoto cerrou os punhos. Não podia aceitar.
— Eu volto em alguns dias, fica tranquila...
A fala do homem foi interrompida por um soco seco no estômago. Ele se curvou com dor, sentindo a bebida da noite anterior querer voltar. O golpe veio sem aviso — de seu filho mais velho.
— ALONSO! — Jeff gritou, em choque, sem acreditar no que acabara de ver.
— COVARDE! — Alonso rosnou, bufando de ódio. — COMO VOCÊ PODE FAZER ISSO?!
— Seu moleque... quer morrer?! — o homem cambaleava, segurando o estômago, tentando conter o enjoo.
— Vai fugir e deixar a mamãe e a gente? Você é um COVARDE!
O chão tremeu. Uma aura laranja brilhou ao redor do corpo do homem. Ele se recompôs, agora com um olhar assassino.
— VAI APRENDER UMA LIÇÃO! — gritou, rangendo os dentes, pronto para surrar o filho.
Jeff tentou impedir. Pulou sobre o pai, mas foi arremessado ao chão com brutalidade.
— Por favor... não machuque eles... — suplicou Meredith, com a voz fraca.
Mas ele não ouviu. Tomado pela fúria, fez o que achou certo.
A noite caiu.
Jeff limpava as feridas do irmão. Estava machucado também, mas Alonso estava em estado crítico. Os dois olhos inchados, hematomas pelo corpo, mal conseguia respirar.
A mãe se aproximou em sua cadeira de rodas.
— Onde ele tá? — Jeff perguntou, ainda com a voz embargada.
— Ele já foi... — respondeu, com um vazio no olhar.
Alonso começou a chorar. Mesmo com os olhos feridos, deixou as lágrimas escorrerem.
— Mamãe... me desculpa... por favor...
Meredith desceu da cadeira de rodas com esforço, sentando ao lado do filho.
— Pelo quê, querido?
— Eu não fui forte... eu devia ter obrigado ele a ficar...
Ela o envolveu como pôde, puxando para junto do peito.
— Você foi mais forte do que qualquer um... meu pequeno herói. A culpa não é sua — ela disse, abraçando o filho com ternura, tentando confortá-lo. — Foi admirável da sua parte nos proteger. Você é um cavaleiro destemido. Aliás... vocês dois são ótimos cavaleiros.
Meredith agarrou os dois filhos, rindo sem parar, mesmo entre as dores e os hematomas.
— Mas nós apanhamos até pedir arrego... — Jeff comentou, meio rindo, meio desacreditado.
— Oras! Uma derrota não faz de vocês perdedores. Levantem a cabeça, meus incríveis cavaleiros! — ela falou com brilho nos olhos. — Usem essa coragem para proteger os outros também. E levem com vocês um lema: fazer o bem!*
Mesmo com o mundo desmoronando, com a doença consumindo seu corpo e o abandono do homem que deveria cuidar deles, ela sorriu. Um sorriso verdadeiro, cheio de amor, só para encorajar seus meninos. E aquele sorriso aqueceu os corações dos dois como um raio de sol em meio à tempestade.
Alguns dias depois...
Jeff limpava a varanda de casa, distraído, quando uma pedra acertou sua testa.
— Ai!
Olhou na direção da pedra e viu Alonso acenando com urgência.
— Ande, Jeff! Reunião secreta!
O garoto gordinho se aproximou do irmão mais velho, curioso.
— Tenho uma novidade, meu caro! A partir de hoje... seremos cavaleiros lendários! — anunciou Alonso, sacando uma espada de madeira como se fosse uma relíquia sagrada. — Eu serei *Dom Quixote*! E você, meu fiel escudeiro: *Sancho Pança!*
— Você ficou doido? Por que esse apelido pra mim?
— Calado! — respondeu Alonso, inflando o peito. — Seremos imbatíveis! Iremos conquistar tesouros e melhorar a vida da nossa rainha!
— Você diz... a mamãe?
— TEREMOS AVENTURAS E SEREMOS OS MAIORES CAVALEIROS QUE ESSE MUNDO JÁ VIU!
Jeff olhou para o irmão, e viu aquele brilho no olhar. Aquilo o tocou. Era uma loucura infantil, talvez... mas também era esperança. A mãe havia chamado eles de cavaleiros incríveis. E Alonso estava levando isso a sério.
— Muito bem, Dom Quixote. Só me diga onde começa a missão!
Ao ver o escudeiro animado, Alonso apontou sua espada de madeira para o céu.
— Muito bem, Sancho! Vamos partir para nossa primeira missão. E vamos *fazer o bem!
E assim, os dois partiram juntos. Cavaleiros lendários. Prontos para mudar o mundo.
##
Voltando para o tempo atual.
Sob o sol escaldante, vários trabalhadores aravam a terra. O calor queimava a pele e drenava as forças. Muitos já estavam quase parando. A preguiça reinava, e mesmo aqueles que sabiam magia evitavam usá-la para não gastar energia. O desânimo era visível nos olhos de todos.
Apenas dois funcionários trabalhavam sem parar. A calmaria dos campos foi rompida por uma rajada de vento. Jeff girou os dedos no ar e usou sua magia de vento para balançar os trigais, criando uma dança dourada sob o sol. Dom, por sua vez, cravou o punho no chão, lançando um ataque de terra que cortou as hastes com precisão, colhendo grandes feixes que caíram direto num carrinho de mão improvisado.
O carrinho ficou abarrotado, mal conseguiam empurrar aquilo pela trilha de terra batida.
Perto dali, sob uma tenda, um homem nobre — o dono da fazenda — conversava com alguns compradores. Homens com mantos reforçados, armaduras leves e emblemas bordados no peito. Cavaleiros mágicos.
— Quem diria... um colégio de cavaleiros mágicos — comentou o empresário, intrigado.
— É uma iniciativa do Major Scarface. A primeira turma já vai entrar este mês. O investimento dos Três Reinos está altíssimo. Precisamos de muita comida para manter os alunos de todas as regiões. — respondeu um dos cavaleiros, vestindo um uniforme vermelho com um brasão de leão dourado no peito.
— Falaram com a pessoa certa — disse o fazendeiro com orgulho. — Minha terra é a terceira maior de Hiden, pertence à família Gomes há gerações. Vocês terão vegetais, carne, ovos, o que precisarem.
— Excelente. Um agente virá ainda esta semana para fechar os preços anuais e...
Antes que pudesse terminar, uma ENORME onda de trigo caiu sobre eles, interrompendo tudo.
— Muito bem, senhor Cullen! Aí está a primeira parte da colheita de hoje! — gritou Alonso, triunfante, jogando o carrinho cheio de trigo bem no meio do grupo.
A cabeça do fazendeiro Cullen emergiu no meio da palha, o corpo inteiro soterrado.
— DOM! SANCHO! O QUE VOCÊS PENSAM QUE ESTÃO FAZENDO?! — gritou furioso, tentando se desvencilhar da montanha dourada.
— Ora! Estamos entregando sua parte do trigo. Agora vamos ver os animais. — disse Alonso, com uma reverência exagerada. — Não precisa agradecer, apenas retribua a gentileza de um nobre cavaleiro com... ouro.
— Até! — completou Jeff, acenando enquanto partia com o irmão.
Marcharam como heróis, em fila desengonçada, em direção à próxima missão.
O cavaleiro mágico tirou a cabeça de dentro do trigo, ajeitando a capa.
— Me perdoe! Eles às vezes perdem a noção... — desculpou-se Cullen, desesperado com medo de arruinar a negociação.
— Me intriga o senhor trabalhar com crianças... Não é um pouco antiético? — perguntou o cavaleiro, olhando com desconfiança.
— Eu entendo... — suspirou Cullen. — No início recusei. Mas eles insistiram. Disseram que não queriam mais pedir esmolas. Quando fui até a casa deles... vi a situação da mãe. Cega, acamada, sem poder fazer nada. Eu... compreendi.
Ficou em silêncio. A imagem dos garotos, sujos e decididos, segurando a mão da mãe, ainda o assombrava.
O cavaleiro vermelho olhou novamente para os dois garotos se afastando. Riam, discutiam e apontavam espadas de madeira para o céu.
— Entendo... — disse, pensativo. — Fico feliz que ainda existam almas nobres assim. Dariam bons cavaleiros.
E com um leve sorriso, limpou o uniforme e voltou a observar os “pequenos heróis” marchando pela terra, prontos para salvar o mundo — ou pelo menos a próxima tarefa do dia.
— Espero que meu futuro filho seja assim... — comentou o cavaleiro consigo mesmo.
— Disse algo, tenente? — perguntou um de seus soldados.
— Nada não.
No celeiro...
Jeff acariciava o focinho de uma vaca, enquanto Dom ordenhava com cuidado, enchendo um balde.
— Ei! Pateta um e Pateta dois! — chamou uma voz zombeteira.
Um homem se apoiava na porta do celeiro. Seu olhar malicioso deixava claro que ele estava tramando algo.
— Fala logo, Finrand. Não temos tempo a perder. — respondeu Alonso, seco.
— Tenho uma missão de cavaleiro pra vocês — disse o homem com um sorriso torto.
A fala fez Alonso dar um pulo de empolgação. O susto assustou a vaca, que deu um coice certeiro... bem no rosto do garoto.
Alonso voou como um saco de batatas, batendo com força contra a parede de madeira.
— DOM!! — gritou Jeff, correndo até ele.
— Você disse... missão de cavaleiro?! — Dom se levantou num pulo e correu até Finrand.
— Isso mesmo! Algo que vocês vão gostar — disse o homem, gesticulando com as mãos. — Hoje é aniversário da minha mãe. Eu queria comemorar com ela, mas tenho que ficar de guarda à noite. Pensei se vocês não topariam proteger a fazenda do senhor Cullen por mim. Minha mãe é tudo pra mim...
— É claro! Uma missão nobre! — respondeu Alonso, quase sem pensar. — Eu...
— NÃO DE GRAÇA!— interrompeu Sancho, se aproximando com cara fechada. — Nossa mãe também é tudo pra gente, mas a gente precisa de dinheiro pra cuidar dela.
Alonso ficou em silêncio, envergonhado por ter esquecido esse detalhe tão importante.
— Claro, claro. Eu entendo perfeitamente. Por isso mesmo vou pagar vocês — disse Finrand, sacando um saco pesado de moedas. — Pode pegar, gordinho.
Ele arremessou o saco para Jeff, que ficou de olhos arregalados, maravilhado com o brilho das moedas.
— Muito bem... Mas é perigoso? — perguntou Jeff, desconfiado.
— Que nada. À noite não acontece nada por aqui — respondeu o homem, em tom despreocupado, quase rindo.
Alonso começou a se gabar, dizendo como ia proteger a fazenda com bravura. Jeff ainda sentia algo estranho, mas com as moedas na mão... resolveu ignorar a intuição.
Mais tarde, naquela noite...
Os irmãos chegaram sorrateiramente à fazenda. Haviam saído escondidos de casa para não preocupar a mãe. Faziam aquilo por ela — para comprar os remédios que ela precisava.
A diferença do dia para a noite era enorme. A fazenda parecia maior sob o véu da escuridão. Mais fria. Mais sinistra.
Jeff sentia isso no olhar, nos passos hesitantes.
— D-Dom... Será que isso vai dar certo?
— Claro que sim! — respondeu Dom, tentando parecer corajoso. — Não tenha medo! Vamos dar uma olhada por aí!
Eles começaram a patrulha, iluminando o caminho com uma tocha improvisada. Os animais estavam calmos. Um silêncio denso cobria o campo de plantações, quebrado apenas pelo farfalhar das folhas e o brilho prateado da lua.
— Como tá calmo... — murmurou Jeff, ainda receoso.
— É... é diferente. Sem a barulheira dos funcionários, agora eu consigo treinar!
Dom desceu o pequeno morro que levava ao campo, sacou sua espada de madeira e começou a golpear o ar com entusiasmo. Jeff ria da empolgação desajeitada do irmão, os golpes todos tortos, mas cheios de paixão.
Passaram um tempo se divertindo, mas logo Alonso percebeu algo estranho. Um brilho surgiu na floresta que cercava a fazenda, chamando sua atenção. Ele apontou para a direção da luz, tentando mostrar a seus irmãos.
— Sancho! Olhe ali! — exclamou, com os olhos fixos na luz crescente.
O garoto gordinho virou a cabeça, observando o brilho que parecia se intensificar, sinal de que estava se aproximando. Sem pensar, Dom agarrou o braço de Jeff e o puxou, decidido a investigar.
Os três se esconderam atrás de algumas caixas de madeira empilhadas. O silêncio se fez por alguns segundos, até que algo se movia entre as árvores. Um grupo de pelo menos cinco homens saiu da mata, e Alonso congelou ao ver um deles. Seu coração disparou.
— Finrand?!— indagou, surpreso e desconfiado.
— O quê? — Jeff espiou por cima da caixa, também notando a figura familiar. — O que ele tá fazendo aqui?
Os garotos se entreolharam, perplexos, sem entender o que estava acontecendo. Se questionavam do motivo que Finrand estava fazendo ali, àquela hora, com aqueles homens?
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