Mundo de Formamus Brasileira

Autor(a): Sr.V


Volume 1

Capítulo II: “Conhecidos”

“Tempestade, que terrores tu escondes com seu véu negro, que sussurros tu abafas com seus trovões e de que horrores tu nos guardas?”

***

No antigo rádio de um carro em movimento, a música “Run, Rabbit, Run” tocava. Aquele som que ecoava de dentro do automóvel parecia querer silenciar a tempestade que gritava do lado de fora. 

O Chevrolet Parckwood 1959 rugia como um leão naquela estrada; o lindo veículo azul-marinho seguia imponente em meio à acidentada estrada de terra. Estrada essa cercada por árvores e uma neblina misteriosa, se manter nela se tornava uma missão quase impossível agora.

— Charles, o que viemos fazer nesse fim de mundo? — disse uma voz feminina.

— Caçar... Estamos aqui para caçar um coelho! — Sorriu.

As peças começavam a se mover em meio ao tabuleiro. Peças essas que não notaram o início deste jogo infame, não notaram o movimento do inimigo em meio a escuridão, protegido pelo som da chuva do lado de fora.

— Essa cidade é bem movimentada! Fiquei sabendo de alguns casos estranhos que aconteceram por aqui.

— Que casos?

— Uma igreja pegou fogo, e as pessoas desapareceram sem deixar rastros. Sem contar os casos recentes de abalos sísmicos na cidade!

— E como elas desapareceram? Isso… é mesmo possível?

— Não sei bem os detalhes, mas… Todos, incluindo o padre, desapareceram sem deixar rastros naquela noite. Isso em 1666, mas houveram alguns casos em 1736, 1763 e 1812. O último foi recente, um garotinho desapareceu! Embora, só vamos saber se esses incidentes estão interligados quando investigarmos mais a fundo.

— Será se o garoto ainda está bem? — disse alguém no banco traseiro.

— Espero que sim! Não gosto quando crianças se envolvem.

— Charles, Charles. Ninguém aqui gosta, meu amigo! Mas, se for o caso...

Disse ele, puxando um revólver. Seu sorriso era nítido em seu rosto juvenil: cabelos escuros com fios bagunçados, olhos azuis, olheiras expressivas, olhar profundo e sedutor em meio ao rosto corado.

— Concordo com Clint! Não gosto quando crianças se envolvem, mas… Se for o caso, também estou mais que preparada. 

Puxou ela um punhal da cintura. A garota de cabelos cacheados marrons lambeu a lâmina enquanto seus olhos castanhos encaravam o homem que conduzia o veículo. De repente, mais uma pessoa entrou na conversa, parecia jovem:

— O Charles é um chorão, deixando o trabalho sujo para a gente. Fazer o que, é a idade, ela chega para todos! — disse, colocando a mão no ombro do motorista.

— Charles, você é muito obcecado, sabia? Essa sua obsessão por limpeza não é deste mundo. 

— Isso mesmo, Verônica está certa — disse Clint. — Você e suas manias de limpeza. Tem que sair dessa vida difícil de “caçador”, isso não é mais para você, coroa.

— Hehe. Não posso, já que nasci para caçar esses coelhos! Faço isso há 30 anos, não tem como parar agora. Além do mais, quem cuidaria de vocês? Vocês são meus netinhos queridos — disse, com tom de sarcasmo.

— De vovô já temos o Bobby! Se bem que ele é mais como um pai… — disse Verônica, rindo.

— Foi ele que ligou pro Charles sobre esse trabalho. Eles são amigos antigos, eu acho… — disse Clint, encarando-o.

Pele morena e marcada pelo sol, cabelo grisalho e bagunçado com alguns fios cobrindo seus olhos. Conduzia ele o automóvel e disse, rindo enquanto desligava o rádio:

— Amigos antigos?! Hahaha! Aquele cretino disse isso, foi? — Encarou os demais. — Bem, amigos? É, amigos! Vamos tirar o fato de ele ter sido casado com minha prima! 

— O que?! Bobby e sua prima? Queee?! — Verônica parecia surpresa.

— Não se impressione muito, hahaha — respondeu, rindo.

— Ei, Charles, você disse que já fazem 30 anos caçando coelhos, certo? Mas se eles são coelhos, você é o que? — Perguntou outro garoto no banco traseiro.

— Eu? Bem, boa pergunta, Rigor… — Sorriu. — Eu sou um… caçador qualquer! Apenas seguindo o rastro daquele que se tornará em breve minha presa. Coelhos não podem fugir de mim, mesmo que se escondam bem fundo em suas tocas!                       

Falou com um olhar sério e certo do que disse. Todos pareciam se conhecer há bastante tempo, era notória a amizade e respeito de ambos. Verônica, por vez, encarou Charles, que tentava manter seu foco na estrada.

— Charles… Quando vamos che–

Foi tudo muito rápido, Charles pôde ver apenas o vulto em meio a névoa; com isso, o impacto. Perdendo o controle, jogou o carro para o acostamento, descendo assim um barranco de terra. E por muita sorte, pisando fundo no freio, o carro parou ali.

— Que merda foi essa?! — Gritou Clint.

— Droga, estão todos bem?!

— O que foi aquilo, Charles?! — Perguntou Verônica.

— Fiquem no carro, vou dar uma olhada!

Charles pegou seu revólver no porta-luvas e saiu do carro. Olhando ao redor, não podia ver muito bem; a névoa parecia querer esconder algo dele. Segurou firme o revólver em suas mãos, subiu o barranco com cuidado e continuou em direção a estrada. 

— Oi, tem alguém aí? 

Ele podia escutar uma respiração baixa, quase imperceptível por conta da chuva forte que seguia. Continuou seguindo em frente, passos lentos, mantendo seu foco se esforçando para ver através da névoa. 

Com a lua que se retirou de meio às nuvens, trouxe consigo um pouco de luz. Charles então pode ver as marcas ainda quentes de pneu queimado na estrada, as poças de água da chuva e o sangue. Lá estava um pobre coelho branco, ainda vivo, mesmo que seu corpo estivesse esmagado.

— Merda, atropelei um coelho… 

Clint e os demais estavam apreensivos dentro do carro. Foi quando escutaram o som do disparo. Com o susto, sacaram suas armas, se preparando para o pior. A porta do carro se abriu em seguida, e Charles entrou novamente sentando em seu assento, estava encharcado.

— O que aconteceu?! Escutei um disparo.

— Calma, foi apenas um infeliz coelho que estava no lugar errado e na hora errada. Agora vamos, ainda temos um longo caminho pela frente!

Ligou ele o veículo, pisando fundo no acelerador. Voltando mais uma vez à estrada, enquanto a chuva começava a se acalmar. 

***

O automóvel chamava a atenção das crianças que brincavam na velha rua da cidade. O céu azul dava um pouco mais de contraste à paisagem mórbida e simples de Centralia, na Pensilvânia, lugar calmo até então.

Charles avistou uma garotinha que acenou para ele. Ele a encarou por um momento, enquanto um sentimento ruim percorria sua mente. Por sua vez, tentou dar um sorriso gentil, acenando de volta para a garotinha, que sorriu.

“Milena… Lembrei-me agora!” 

Verônica o interrompeu de seus pensamentos, ligando o rádio. Uma das emissoras começou a tocar um dos sucessos da banda “The Beatles”. Ela começou assim uma coreografia animada enquanto cantarolava um pouco desafinada.

— Que banda é essa, Verônica? — perguntou Charles.

— O que, velhote? Você não conhece os Beatles?

— Não… Mas o som é bom!

— Às vezes me esqueço, que o senhor é da época passada — encarou-o. — Essa é uma banda que está fazendo sucesso agora! 

— E como nunca ouvi falar neles?

— São novos até. Começaram há dois anos, mas o sucesso está chegando. Fazer o que? Eles são bons!

Charles sorriu e aumentou o volume. Continuaram em frente, embora não tenha demorado para Charles diminuir a velocidade ao avistar um posto de gasolina. E não demorou muito para conduzir o carro até as bombas de combustível.

— Saiam um pouco do carro. Vão dar uma volta por aí enquanto encho o tanque!

Verônica foi a primeira a sair. Correu às pressas rumo ao banheiro; os demais riram dela, mas ela não parecia se importar com eles. 

— Segurei até onde dava! — falou, abrindo a porta do banheiro feminino.

Clint também saiu. Acendeu um cigarro e se encostou no carro, enquanto encarava algumas moças na lanchonete à frente.

— Olha lá, que gatinho — disse uma delas, acenando.

— Ele está olhando pra gente! — sorriu outra.

Elas começaram a cochichar entre si, encarando-o com sorrisos e olhares sedutores, dando até mesmo tchauzinhos com a mão. Ele, em resposta, deu a sua mais longa tragada, soprando em seguida a fumaça em forma de coração. 

As moças aplaudiram, impressionadas. Ele, por sua vez, tomava coragem, já dava seu primeiro passo quando:

— Sai da frente!

A porta logo atrás dele se abriu de uma vez só, jogando-o no chão. Um garoto mal encarado saiu; tinha cicatriz em um de seus olhos, cabelo loiro e pele clara. Ao encarar Clint no chão, começou a rir:

— Se deu mal! Hahaha  — disse, apontando o dedo.

Clint levantou-se, limpou um pouco a sujeira da calça. Olhando para trás, avistou as moças que agora riam dele, algumas até mesmo zombavam. Ele suspirou fundo e jogou o cigarro no chão, pisando nele.

— Porra, Rigor! Me fez passar vergonha, seu merda!

— Eu disse para sair da frente. 

— Ei, maninho, já chegamos? — disse um garoto saindo do carro.

Ele era igual a Rigor: mesmo cabelo loiro, olhos azuis, porém não possuía uma cicatriz. Essa era a única coisa que os diferenciava, pois até mesmo suas roupas eram idênticas.

— Não, Igor. Só paramos para abastecer! 

— Pensei que ia dormir a viagem toda, moleque — disse Clint.

— Vou ter que comprar mais goma. Essa daqui babou…! — disse Igor, cuspindo o chiclete no chão.

Rigor colocou o braço ao redor do pescoço de seu irmão, saindo os dois em seguida rumo à lojinha no posto. Enquanto isso, Clint encarou um homem que ainda dormia no banco traseiro, roncando feito um porco.

— Esse daí já tá morto! — disse, acendendo outro cigarro e fechando a porta com força.

Charles já começava a encher o tanque quando percebeu um senhor que o encarava. O idoso sorria e cochichava enquanto observava o carro.

— Gostou, meu senhor?

— Gostar? Kikiki. Esse carro é lindo demais para eu apenas gostar! Ouso dizer que é como minha antiga esposa… Bonita, mas quente. Isso faz um estrago… Hehehe.

— Hahaha. Ok, né… se o senhor está falando.

— Pena que você o usa para isso — disse, apontando para o porta-malas.

Lá estava um caixão de madeira envernizado, cor preta. Também possuía alguns símbolos estranhos e uma grande cruz vermelha.

— Também não gosto de carregar os mortos! Mas é o trabalho, fazer o que? — sorriu.

— Nunca vi um carro desses por essas bandas. São uma funerária fora da cidade?

— Isso mesmo. Os familiares não são daqui, querem enterrá-lo no lugar de origem!

— Entendo… No fim, não há nenhum lugar melhor que o lar, certo?

— Isso pode ter certeza. Mesmo assim, este é realmente um bom lugar para morrer também.

— Bem, aqui em Centralia é bem calmo. Vocês vão gostar, tem muitos lugares para visitar até! Hehehe… Sem contar que os trabalhos na mina surgem a todo o momento.

— Entendo. Realmente parece um lugar bem calmo para se viver! Pessoas bem amigáveis, mas… não é para mim.

— Por que diz isso? 

— Gosto da aventura. Não me daria bem em um lugar como este. Meu caminho é na estrada, até onde ela me levar, até onde eu conseguir ir com minhas próprias pernas e até onde esse carango aguentar me carregar!  

— Espero que um dia chegue a algum lugar que deseje ficar. Todos merecem descansar em um bom lugar um dia. Todos!

— Bem… Tem alguns que não merecem o descanso… — sussurrou Charles consigo.

— Ei, e qual o nome da funerária? 

— Oi?

— O nome da funerária de que trabalha.

— Ah, sim, bem. Somos a… a… Funerária “Última despedida”! Nos encarregamos que nossos clientes tenham o descanso eterno, queiram eles… ou não.

— Hahahaha, você é engraçado.

O senhor saiu dali no mesmo instante em que Charles terminou de encher o tanque. Olhando novamente para as crianças que corriam na rua, ainda com poças de água devido a chuva da noite passada, elas rima enquanto pulavam nas poças. Charles, embora as encarasse, possuía um olhar distante, distante dali.

Clint o percebeu e, aproximando-se dele, o surpreendeu com um tapinha nas costas. O que foi suficiente para o tira-lo de seus pensamentos.

— Já fazem quantos anos, Charles?

— Treze anos…

— Ela teria quantos anos agora?

— Bem, daqui três dias… Daqui a três dias é o aniversário de treze anos dela.

— Lamento por sua perda, meu amigo. 

— Tudo bem. Não foi culpa sua, acidentes acontecem… Infelizmente acontecem — disse, tentando se convencer disso.

— Olha, não é querendo ser chato nem nada, mas… Você tem que superar um dia, sabe? E… conversar sobre pode te ajudar. Meio que você não conta nada da sua vida para a gente. E já passamos por muita coisa juntos! Só… só pensa nisso, tá bem?

Clint deu um tapinha em suas costas e saiu. Charles, por sua vez, perdia-se novamente em seus pensamentos: uma bela garotinha correndo pela casa e chamando por seu pai, lembranças felizes que se desmanchavam com gritos de raiva.

— A culpa é sua, Charles!!

Com o susto, voltou a si, respirando fundo, tentou se acalmar. Podia escutar as batidas fortes de seu coração, que parecia querer sair de seu peito. Já voltava ao normal quando:

— Ei, velhote, vamos nessa? — disse Verônica, entrando no carro.

Charles respirou fundo e entrou em seguida. Os demais também o fizeram. Era hora de voltar à estrada, hora de encontrar o que vieram buscar.

***

Minutos se passaram, entraram em algumas ruas, mas nada. Os gêmeos sorriam no banco de trás enquanto riscavam com um pincel o rosto do que ainda dormia. Já Clint limpava sua arma com muito cuidado; Charles, olhando pelo retrovisor, sorriu.

— Você cuida dela como uma filha. Não… está mais para uma amante!

— Humpf. Diferente das pessoas… ela cuida mesmo de mim. Só estou retribuindo o favor, apenas isso.

— Nossa, isso foi tão romântico — disse Verônica, virando-se para ele. — Até me fez chorar… não pelos olhos, claro.

Disse ela, piscando para ele. Clint virou o rosto um pouco desconfortável e envergonhado. Verônica se virou para frente novamente, deixando-o continuar com sua limpeza em paz.

— Relaxa, Clint — disse Charles. — Vai ser mais um trabalho normal… Entramos, investigamos e, se tiver algo a mais… Nos livramos do problema.

— Assim espero, Charles. Assim espero…

***

De minutos se tornaram horas, mas nada de chegar ao destino. Foi quando, por coincidência, encontraram a casa logo atrás do cemitério da cidade. Casa de madeira antiga, parecia bem aconchegante; da chaminé saia fumaça, prova que havia pessoas em casa. 

Também avistaram dois carros estacionados por ali perto: um “Ford Mercury 1950 Coup” vermelho e um “Cadillac Seville 1959” magenta.

— Rapaz, o amigo aí tem estilo! — disse Clint, apontando para o Cadillac.

— Droga. Diz que é mentira… O que esse bosta está fazendo aqui? — sussurrou Charles consigo mesmo.

Ele então estacionou o carro debaixo de uma árvore; todos saíram em seguida. Alguns se alongavam, os dois irmãos, por sua vez, foram dar uma olhada nos arredores. Os demais foram em direção à casa, enquanto um homem permanecia dormindo no banco de trás.

Ao se aproximarem da casa, notaram três pessoas as quais filmavam por ali: uma mulher e dois homens, um deles com roupa indigna.

— Quem são essas figuras? Conhece eles, Charles… Charles? — perguntou Clint.

Charles parecia um pouco aéreo, foi quando avistou algo que não queria ter visto:

— Merda.

Disse ao avistar um homem que conversava com os moradores da casa na porta. Ele também os notou e se despediu das pessoas, pegando um papel. Não demorou a vir até onde Charles e os demais estavam:

— Charles, meu bom. Há quanto tempo! Como tem passado? — disse ele, preparando-se para um abraço.

Charles o respondeu com um soco no estômago, que o fez cair de joelhos abraçando seu estômago em meio a dor, enquanto tossia engasgado com sua saliva:

— Cof, cof… Boa… Boa… Eu… eu mereci. — sussurrou, tentava recuperar o fôlego.

— O que está fazendo aqui, Jack?!

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