Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 1

Capítulo 4: Terreno Inimigo

Uma vez mais voltei do sedutor e embriagante mar de memórias daquele mundo que se foI. Me questionei de quando seriam aquelas lembranças...  

A época em que eu era mais jovem, não havia calos em minhas mãos e meu rosto não possuía a metade dos pelos que o compõe agora, meus olhos brilhavam mais e meu corpo não dispunha de tantos remendos quanto uma colcha de retalhos.  

Por um momento lembrei das histórias de meu pai, que em seus últimos dias na forja costumava expor seus desejos alucinantes de regressar ao tempo em que seu corpo era jovem, em seus olhos existia um vazio nostálgico que hoje conheço bem, porém, diferente de meu pai, nunca desejei o meu antigo corpo, não poderia, não em tal situação.  

Hoje, eu reunia em mim mais que o dobro da força que já tive quando mais moço e, meus olhos, mesmo que opacos, enxergavam com demasiada eficácia o caminho a seguir para me manter vivo. — Habilidades de um sobrevivente que já houvera derrubado muitos pinos de carne podre.  

Pouco a pouco me esgueirei pelas ruas com a silenciosa paciência de um felino — outra das competências adquiridas em resposta aos novos predadores da cadeia alimentar — um velho truque que poderia te manter vivo por mais um dia, e esses, eram os mais importantes.  

Embora paciente em meus passos, tratei de mantê-los sempre constantes, afinal, o destino se encontrava tão distante quanto o esperado.  

Devido à grande histeria da população e a desinformação sobre o que quer que fosse o causador da doença, as farmácias se tornaram os primeiros lugares a serem vítimas de furtos massivos e em poucas semanas já não existia um único comprimido que não houvesse dono. 

 Por certo tempo pudemos nos manter conseguindo remédios aqui e acola, uma ou duas casas abandonadas que passaram desapercebidas pelos saqueadores e que seus donos em corpos putrefatos não reclamariam. 

Entretanto, outra dura lição que aprendi fora a de que nada é para sempre, e, com isso em mente, determinei meu objetivo, o único lugar no qual seria possível encontrar algo além de fracos vazios.   

O maior dos três grandes hospitais da cidade — cujo nome agora é irrelevante, visto que essa já não existe mais. Propriedade privada do grupo Poe, uma organização de saúde criada pelo Dr. Benedict Poe poucos anos após a cidade ser fundada.  

Definitivamente, adentrar o lugar seria de uma insanidade incompreensível, quase como andar vendado por entre “eles”, com o acréscimo de estar aos berros durante todo o trajeto. De fato, um suicídio.  

Com esses e, muitos outros pensamentos em mente, eu me aproximava cada vez mais do grande edifício. 

 Já o tinha em vista quando decidi ser a hora de me aprontar, logo meu nariz e boca já não teriam mais contato direto com o ar natural e meus olhos ganhariam uma nova camada de proteção.  

Rapidamente equipei minha máscara semifacial que possuía dois pequenos filtros laterais, um em cada lado; e então, estiquei o elástico que se conectava com as hastes removíveis, colocando assim o desgastado óculos de proteção com lentes de policarbonato.  

O melhor equipamento que consegui para evitar o desagradável fim que viria sobre mim em caso de contato pessoal com o sangue de um “deles”. 

Infelizmente, não havia tantas armas por aí como nos filmes, e o pé de cabra enferrujado e preso na horizontal da lombar era minha única arma de ataque e defesa contra os cadáveres ambulantes, tornando um embate a distância impossível.  

Estando pronto, joguei a mochila nas costas novamente e dei os últimos passos em direção ao inferno.  

Vi a luz do sol se estender e tocar cada pedacinho da construção que outrora fora um lugar de recuperação para os feridos e cura para os doentes.  

Ainda havia muitos doentes por lá, porém, estes seriam incuráveis; agora já não existe qualquer diferença entre a doença e seus corpos, se tornaram em uma única coisa, do tipo difícil de se entender, mas facilmente reconhecível aos olhos. 

E com está mesma facilidade os reconheci enquanto olhava pelo binóculo. Estava abaixado entre os destroços do que teria sido uma barricada, uma das muitas que os policiais montaram esperando mitigar o contato dos infectados residentes nos hospitais com a população, fruto de outra das ideias do prefeito ao se deparar com o começo do fim do mundo.  

Se alguma de suas ideias obtivera êxito eu a desconhecia; só o que me importava agora eram as minhas ideias, porque estás sim não poderiam dar errado, caso contrário, eu seria o mais novo membro do time de mortos-vivos que circulavam pela entrada do hospital.  

Contei sete deles na entrada principal, todos perto demais da porta, e, além disso, tive a impressão de ter visto algum movimento no interior.  

Não poder usar a porta da frente me geraria certo transtorno, afinal, de acordo com meu mapa mental da estrutura — se é que poderia confiar nele — bastaria virar à esquerda após entrar, atravessaria a sala de espera da ala pediátrica indo até o extenso corredor lateral e, em poucos passos estaria de frente com a farmácia que fica ao lado do laboratório. Não acredito que existam lugares melhores para se conseguir medicamentos.  

Após alguns segundos de reflexão, olhei novamente para a entrada do prédio. As resoluções se apresentavam em minha mente, se a porta estivesse emperrada, se nela houvesse qualquer tipo de trava colocada pelo lado de dentro, ou pior, se um único cadáver a mais se levantasse e se pusesse em meu caminho naquela entrada, em qualquer um desses cenários, os outros sete me cercariam e logo eu me uniria a eles.  

Conviver com eles tornava nítido sua lentidão, contudo, sua vantagem estava nos números...   

Descartei a possibilidade e forcei minha mente a trabalhar em busca de alternativas válidas e sólidas, não seria a primeira vez que obstáculos alteraram meus planos e tampouco seria a última.  

— Tenho mais dois caminhos... — Sussurrei para mim, com toda a calma que adquiri durante os quarenta e cinco anos de vida. — Dou a volta pela esquerda, sigo até o final do prédio e encontro a entrada da enfermaria, ou, desço pelo lado direito, passo pelo estacionamento lateral que se conecta com o traseiro e entro pelo portão dos fundos...  

"Droga! Não me lembro de nada da parte de trás do prédio. Vou pela enfermaria então? Talvez ajam remédios lá, só que, aquela área tem o maior potencial de risco... Não faço nem ideia de quantos “doentes” foram levados para lá."

Sendo assim, tracei uma linha imaginaria até meu destino, respirei fundo, e então parti.  

Descendo a avenida principal até encontrar a esquina com a rua que me daria acesso ao estacionamento lateral do hospital, porém, como uma piada sem graça do destino, todos os acessos ao pátio se encontravam obstruídos. Sem tempo para murmúrios, desci a rua em largos passos, me repreendendo por não pensar nisso. 

"É claro que eles fechariam os acessos, manter o menor número de entradas possíveis é a melhor maneira de evitar invasores, só é necessária uma rota alternativa para não ser encurralado... Você sabe disso, foi a mesma estratégia que usou no abrigo, então por que não pensou nisso? Cometa mais erros assim e não vai gostar de como as coisas irão terminar."  

Meus pulmões ainda funcionavam quando alcancei a parte de trás da construção. Estava livre, sem qualquer criatura rastejante, o lugar quase pareceu normal, não fosse pelos rastros de sangue que pareciam levar até a porta.  

Empunhei meu pé de cabra e respirei o ar externo uma última vez, ciente de que ao adentrar o ambiente, estaria em terreno inimigo.  

Caminhei calmo, porém, sem hesitação, e atravessei a porta.



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