Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 2

Capítulo 7: Primavera Antiga

Bati a porta da entrada com mais força do que desejara e desci as escadas de madeira, com as mãos socadas nos bolsos deixei o deck frontal da casa para trás.
A brisa dos primeiros dias da primavera soprou, fresca, e trazendo consigo o suave e delicado aroma das flores — detalhes que por pouco não passaram desapercebidos frente a meus murmúrios aborrecidos. 

Judy ainda estava do lado de dentro da casa, tentando mediar a situação entre mim e seu pai, enquanto eu, remoía as palavras do velho em minha mente. — “...Vocês estão casados há anos e ainda nem tem filhos...” 
A raiva tomava meu corpo só em recordar de tantas vezes que tivemos a mesma discussão, de como avisei Judy que as coisas com ele nunca mudariam, e de saber que ela continuaria insistindo em fazer com que nos dessemos bem.

Eu nunca me importei com a vontade dela de manter uma boa relação com pai, porém, a maneira como o velho vivia criando joguetes para controlá-la, isso sim me enojava.
Pensando melhor agora, me sentia grato por nunca ter aceitado qualquer proposta de ajuda de sua parte, nem na época do casamento e tampouco depois.
Claro, o crescimento da forja ajudou consideravelmente... Os contratos maiores que consegui me asseguraram uma condição financeira estável e, com sorte, o escritório de contabilidade de Judy também se manteria em boa forma por mais tempo.  

Este era o motivo, o fato de não precisarmos da ajuda dele e, ainda assim, ele interferir tanto em nossas vidas. — Inferno! — Exclamei, sentindo como se minha cota anual de estresse houvesse sido consumida e ultrapassada em um único dia. Decidi ir para casa antes de tomar qualquer decisão, foi quando me dei conta de ter deixado as chaves do carro com Judy...

— Pois bem... — Murmurei. — não é um problema. Caminhar até em casa deve me ajudar a me acalmar. 

Felizmente não consegui ir além de dois passos. Alguém me parou com modestos puxões no fundo de minha camisa. Eu me virei sem entender a situação e fiquei ainda mais confuso com a visão que tive — uma garotinha com braços pequenos e rechonchudos interrompera meus passos com seu vestido amarelo-claro, um chapéu de palha de aba grande para o verão e, finos e longos cachinhos pretos.  

— Ei, quem é você? — Perguntei, pouco antes de um suspiro confuso. — Não importa. Escute, garotinha, você não pode ficar andando por aí e entrando no quintal das pessoas dessa forma, entende? Esse tipo de coisa é perigoso, então é melhor que você volte para casa agora. — A criança de olhos brilhantes parecia não me escutar. — Ei, você se lembra onde fica sua casa? Por um acaso, você se perdeu?  

Minhas palavras cessaram com o movimento de sua mão, ela ergueu uma pequena flor amarela em minha direção — sendo que a flor possuía um tom mais forte e vivido que o de seu vestido — e com uma voz decidida e nada tímida iniciou o diálogo.  

— Toma. É pra você. — Ela disse.  

Ainda estava decidindo se aceitaria o presente quando a porta de madeira branca se abriu na casa ao lado.  

— Oh, Lisa, por favor, não incomode o homem... — Disse a figura saindo pela porta. Sua voz apresentando certa repreensão descontraída.  

O homem de meia-idade trazia consigo uma churrasqueira Pit smoker, caminhava com certa dificuldade, embora não me pareceu que o peso da carga fosse o problema. Ao chegar no meio do quintal ao lado, de maneira desconcertada, ele deixou o objeto no chão e veio em minha direção.  

— Eu realmente não posso ficar sem eles... — Ele disse com um leve sorriso, pouco antes de tirar do bolso frontal de sua camisa um óculos de hastes remendadas. — Oh, é um prazer. Eu sou Jhon. — Ele estendeu sua mão por cima da pequena cerca que nos separava, entretanto, recolheu o cumprimento para si no momento em que notara suas mãos sujas de óleo.  

— Marvin. — Respondi, lançando-lhe o mesmo cumprimento, sem me importar se minhas mãos sujariam ou não.  

Jhon, — que agora apertava minha mão — era pouca coisa menor que eu e gostava de acreditar que também seria pouca coisa mais novo. O homem era um tanto quanto desastrado e atrapalhado, embora, em suas palavras, existisse uma calmaria inconfundível e em seu rosto, um sorriso tão honesto e natural que fazia qualquer outro ao redor parecer falso.    

— Perdoe a minha pequena Lisa, ela tem o dom de se enfiar nos assuntos que não lhe pertencem, mas ainda é uma boa garota.

— Eu sou Elizabeth e tenho seis anos. — A garota afirmou quase que interrompendo o pai. — Aquela é minha nova casa. O papai tinha prometido que nos mudaríamos assim que eu melhorasse e eu melhorei, então viemos para cá.

— Ah, sim... Sim, chegamos há três semanas. Nossa pequena Lisa esteve internada por um longo tempo, seu corpo é mais fraco que o das demais crianças de sua idade. Achei que seria melhor crescer em um lugar mais tranquilo, sabe?  

— Ei, Papai, meu corpo não é mais fraco assim agora que melhorei, não é?

— Sim. É verdade, minha querida. — Jhon se curvou tentando limpar um pequeno traço de terra de jardinagem no rosto da menina, parecia não se lembrar do óleo nos dedos e terminou por pintar uma mancha escura no rosto delicado da garota.

— Papai, está me sujando. — A garota respondeu, porém, parecia tão tranquila quanto o homem. 

— Bem, peça a sua mãe que te ajude a se limpar, querida. — Ao terminar se virou para mim. — Como eu disse antes, minha filha recebeu alta a pouco e por isso vamos comemorar. Pode ficar conosco se quiser, tenho cerveja o bastante para mais um. — Suas palavras amigáveis acompanhadas de outro sorriso.

 

Eu aceitei seu convite aquele dia, assim como aceitei a flor que a pequena Lisa trazia em suas mãos. Se toda aquela compaixão tinha um motivo? Possivelmente. Três semanas morando ao lado seria o bastante para escutar nossas discussões.
Entretanto, não possuía qualquer arrependimento quanto a ter aceitado o convite de Jhon naquele dia primaveril. Ainda recordo aqueles dias como se houvessem ocorrido anteontem, lembro-me de como a pureza gentil de uma criança me salvaria tantas vezes nas estações que se seguiriam.
Lembro-me de como me tornei amigo daquela família, da alegria de Lisa e seu irmãozinho Steve que parecia me contagiar, da admiração que tive por Stefany ao ver sua preocupação e cuidado com cada um de seus entes queridos e de como Jhon me fazia querer ser alguém melhor. 

Naquela tarde, quando a brisa da noite se preparava para percorrer toda a cidade e os confortáveis raios de sol da primeva se despediam, pude ver Judy outra vez. Ela parou no deck frontal se debruçando sobre o cercado de madeira, senti seu olhar sobre mim por um longo período, até que por fim me virei.
Eu me apoiava na pequena cerca e segurava uma garrafa de cerveja em uma das mãos, enquanto olhava para aquela que parecia ser a mesma garota desde que a conheci. — vi em seus olhos a exaustão de um dia mais que difícil, vi em seus cabelos suados a força que despendeu para vencer outra batalha e, encontrei em seu sorriso a garota pela qual me apaixonei.  

Sorri em resposta e esperei que ela viesse até mim. — Me desculpa. — Eu disse.  

— Está tudo bem, Marvin. — Senti seu corpo mais próximo, revelando o confortável perfume dela. — Sou eu quem deveria desistir de uma vez.  


Naquela época eu não soube o que responder. Não gostaria de mentir para ela e tudo que eu mais queria era poder me afastar de seu pai. Escolhi o silêncio, esperando ser o melhor, enquanto Judy optou por quebrá-lo como de costume.  

— Pensei que tivesse ido embora, mas as chaves ficaram comigo.  

— Eu ia, mas a garotinha me impediu. — Expliquei, pouco antes da radiante Lisa se aproximar, em suas mãos, trazia uma flor para Judy como se aquela fosse sua maneira de se apresentar. Judy, por sua vez, tratou de aceitar prontamente o convite a amizade da garota, a enchendo de elogios no processo. Notei seus pais lhe chamando para perto deles, decerto, entendiam a situação.  

— Sabe que quando eu olho para você, aqui observando eles, fica claro para mim que você quer isso também, não é?

— Eu sei... Eu sei. Mas você também sabe que o problema não está em você. Nós dois sabemos.  

— Não é um problema, Marvin. — Sua voz calma, e em seguida, seu toque em mim. Sua cabeça reclinando suavemente em meu ombro. — São só mais alguns pinos no caminho... Basta derrubarmos eles.  

— Sabe como seu velho vai reagir. Hora ou outra ela vai saber e você sabe... 

— Eu não ligo para o que ele possa falar e você muito menos. Sei que não é isso que te incomoda, Marvin. Você tem medo, não tem?  

— Sim, Judy, eu tenho. Tenho medo de confirmar o que eu já sei, e tenho medo de que isso mude as coisas entre nós...  

— Não vai, definitivamente não. Já passamos por problemas de verdade, isso não é nada perto deles. Você se lembra, Marvin? Sempre nos apoiamos um no outro, não é agora que isso vai mudar.
Vamos passar por isso juntos, você sabe, é como na época em que nos conhecemos, não?
Você sempre estará aqui para mim e eu sempre vou estar aqui para você.  



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