Volume 2: Correntes invisíveis.

Capítulo 1: Fantoche.

O ar estava leve. Quase sereno.

Um contraste absurdo com o peso do que acabara de acontecer.

Nos fundos do restaurante Dragão Dourado, o quintal parecia um refúgio esquecido pelo caos — um jardim harmonioso com pedras lisas e um pequeno lago de águas cristalinas. Um banco de madeira repousava sob a sombra de um salgueiro oriental, e um velho cinzeiro no canto já acumulava bitucas como cicatrizes de conversas e silêncios.

Ali estavam Harkin e Eiden.

Um garoto que desafiava o destino.

E um homem que carregava o império nos ombros.

Harkin tragava seu cigarro em silêncio. Os cabelos vermelhos, cor de cobre queimado, caíam sobre os olhos — olhos púrpura, vivos como brasas. A fumaça subia devagar, espiralando no ar calmo, como se o tempo estivesse suspenso.

Seu corpo ainda doía. As marcas da batalha estavam gravadas na carne...

Mas eram as lembranças antigas que ardiam mais fundo.

 

Ao seu lado, calado no mesmo banco, estava o Imperador.

Eiden. O homem cuja presença definia o continente.

Agora, apenas um pai em silêncio, com o olhar distante.

As memórias que acessara de Harkin ainda ecoavam em sua mente:

As correntes.

O sangue.

O sacrifício.

A fúria.

— Eu definitivamente... falhei com você, garoto — murmurou Eiden, a voz pesada como pedra encharcada.

Harkin soltou a fumaça lentamente, sem olhar para ele, e respondeu com um meio sorriso irônico:

— Agora não é hora de bancar o papai do ano, majestade.

O silêncio se estendeu.

O som suave da água não bastava para dissolver a tensão.

— Você me deixou ver tudo aquilo... por quê?

Harkin deu de ombros, como se a resposta fosse óbvia.

— Você tinha o direito de sabe,só isso. Sem falar que, assim, evito um interrogatório imperial.

Eiden assentiu lentamente.

O peso em seu olhar não era físico.

Era ancestral.

Uma culpa que escapava à lógica — e ao poder.

— Então é assim... Harkin.

Disse o nome como quem o aceita pela primeira vez, não como imperador, nem como estranho, mas como um pai, um que perdeu toda a infância do filho e não pode estar lá no momento em que ele mais precisou.

Harkin esmagou o cigarro no cinzeiro e se levantou, esticando os braços com preguiça teatral.

— Bom... agora que já brincamos de pai e filho, vai me deixar em paz?

Eiden não respondeu de imediato. Apenas o observou, com um olhar onde orgulho e pesar se misturavam em silêncio.

— Você tem noção do que causou, certo? Sua chegada ao Império... foi épica. Caótica, destrutiva... Ainda assim épica.

Harkin soltou uma risada curta.

— Perfeito. Voltei ao inferno.

Caminhou devagar até a beira da água. Ali, de pé, encarou o próprio reflexo. Olhos púrpura ardiam na superfície calma. O mundo estava de cabeça para baixo.

Naquele espelho líquido, por um instante, viu quem realmente era, e aceitava que agora existiam novas correntes em seu pescoço.

Puxou o maço de cigarros novamente.

Acendeu mais um, como se fosse o último que teria paz para fumar.

 

As memórias ainda pesavam em Eiden, no eram apenas imagens. Eram ecos. Sensações. Dor cravadas na alma de seu filho... E ele vivenciou tudo aquilo

Ler memórias sempre fora um risco — mesmo para seres além do limite como o imperador. O leitor se conecta. Sente, e, às vezes, se perde. Era fácil esquecer onde terminava o outro... e onde começava você.

Para Eiden, esse “efeito rebote” nunca passara de um incômodo, sua força e fortitude mental permitiam que ele "visse" em terceira pessoa tudo.

Mas aquilo... a mente de Harkin era diferente, sombria e fragmentada perigosamente vívida, ele viveu como Harkin sentiu com ele e sofreu como ele.

O peso de tamanha conexão cobra um preço caro até para ele. O passado começou a bater em sua mente, memórias dele se misturavam as de Harkin, tudo se tornou um caos.

Milênios de vida se misturando a décadas, se concentrando o Imperador fechou os olhos, tentando se reconectar ao presente.

Inspirou fundo — o peito subindo e descendo como um fole descompassado.

A linha entre suas lembranças e as de Harkin parecia cada vez mais tênue.

— Isso não é real... Não é meu... — murmurou, como se as palavras pudessem ancorá-lo.

O som distante dos pássaros ainda preenchia o jardim, acompanhando o silêncio de Harkin, que fumava ao lado.

Mas o ar... começou a mudar.

A atmosfera perdeu sua leveza.

Ficou densa. Elétrica.

Eiden, ainda de olhos fechados, começou a flutuar levemente. Sua aura oscilava — faíscas sutis dançavam sobre sua pele. As nuvens acima se condensaram. O céu escureceu.

O mundo sentia.

— Então é isso que acontece... quando alguém como ele perde o controle? — sussurrou Harkin, observando sem se mover.

As portas do restaurante se abriram com força.

Markus e Pietro foram os primeiros a sair, os rostos carregando preocupação genuína.

Drake veio logo atrás, a expressão vazia — como se tudo aquilo fosse só mais uma interrupção inconveniente.

Okini acompanhava com os olhos atentos, a respiração curta.

Sera hesitava, sem entender o motivo da correria, mas sentia que algo estava errado.

— Harkin, o que aconteceu? — perguntou Markus, aproximando-se.

Sentado, Harkin deu mais uma tragada no cigarro. Lançou um olhar breve a Markus, mas não respondeu. Apenas deu de ombros.

Acima, Eiden ainda flutuava. Seu corpo começava a emanar energia — pequenas faíscas escapavam da pele como fragmentos de trovão contido.

— Seu arrombado — rosnou Pietro — vai deixar ele explodir sem dar uma explicação?

— Calma a xota, Pietro. O velho só tá recalibrando a sanidade — disse Harkin, apagando o cigarro no cinzeiro.

Desviou o olhar para a pilha de bitucas.

“Sera não gosta de cigarro... Melhor eliminar os rastros.”

Ergueu a mão esquerda. Uma chama sutil surgiu em sua palma.

Com um estalo, queimou as bitucas até restarem apenas cinzas. O vento, que já ganhava força, levou os restos para longe — como memórias que não valiam ser guardadas.

— Como assim... recalibrando a sanidade? — insistiu Markus.

— Ele leu minhas memórias. E isso afetou mais do que devia. Estamos falando do imperador — qualquer instabilidade dele pode varrer um país do mapa antes de alguém piscar.

“Meu pai não perde o controle assim... O que ele viu no moleque, pra deixá-lo assim? “

 Pensou Markus.

— Para de falar merda. O vovô é o mais poderoso — disse Drake, com desprezo.

— A mente de um bastardo não teria força pra abalar alguém como ele.

Harkin o encarou.

Por um instante, os olhos púrpura brilharam com sede de sangue.

Mas ele inspirou fundo, e deixou o momento passar.

“Não estou aqui pra educar meu sobrinho idiota. Tenho objetivos. E você não faz parte deles.”

Fez uma pausa.

— Drake, nem todo mundo é um cabeça de vento que vive de status. Eu treino. Corpo, magia... e a mente, acima dos dois, mas relaxa — vamos encerrar esse teatrinho por agora.

“Ele fala como se tivesse o direito. Como se fosse parte disso... Mas ele não é. Nunca será."

Pensou Drake.

Harkin ignorou o olhar dele. Virou-se para Markus e Pietro.

— Se eu não estiver enganado... o Conselho Central deve estar a caminho, certo?

— Considerando o que está acontecendo — respondeu Markus.

— Não vai demorar para que os generais apareçam... e talvez mais do que isso.

“Se eles agem assim por causa do velho... talvez eu ainda possa fazer algo. Aliás, vou precisar da ajuda do playboy, da moralista, e até dos animais se eles aparecerem. Que se foda. Se eu não fizer nada, vai ser pior.”

— Markus... vou precisar da sua ajuda. E da de todo mundo aqui. Antes que o Conselho chegue.

Enquanto os olhares se cruzavam no jardim, acima deles, o mundo estremecia.

Relâmpagos dançavam entre as nuvens negras, atingindo as torres mais altas. O ar vibrava com uma energia densa, pulsante. Mesmo do alto da Acrópole, era impossível ignorar a pressão mágica que se alastrava como uma tempestade prestes a romper a realidade.

E então, no coração de Eldravel, o palácio imperial, as portas do grande salão se abriram com estrondo.

— Onde está meu pai? O que está acontecendo?

A voz veio firme, cortante.

Leona Decius von Empera, entrou no salão como um trovão contido.

Vestia um traje cerimonial de tecido leve e elegante, mas sua presença esmagava mais do que qualquer armadura. Os olhos azul-gelo varreram os presentes como lâminas.

Todos se viraram.

Entre eles, Darma — patriarca da família Veras, pai de Vargas — foi o primeiro a responder:

— Leona... eu esperava que você pudesse nos dizer.

— Papai não deveria estar aqui? A presença dele está reverberando por toda a capital. Vocês realmente não sabem o que está acontecendo?

— Considerando os últimos... incidentes — disse Darma, cruzando os braços — achei que você, ou os outros Empera, tivessem mais informações que nós.

Antes que Leona pudesse responder, a sala se abriu novamente.

Solomon Decius Von Empera, adentrou com passos calmos, mas os olhos alertas.

Sua postura era contida. Controlada. Mas havia algo em sua voz que traía a preocupação.

— Nosso pai foi lidar com uma questão... pessoal — disse, aproximando-se do centro do salão.

— Um conflito envolvendo Stein e o filho da Rainha Morgana. Estão no subúrbio. E pela instabilidade da mana dele, é melhor irmos até lá. Agora.

Um dos senadores engasgou com a própria saliva.

— Então é verdade? Seu filho foi atacado pelo emissário de Nerio?

Solomon travou o maxilar. Respirou fundo.

— Atacado não é bem a palavra, mas sim, houve um confronto. E o mais importante agora é que a aura do imperador está em descompasso. Se isso continuar, podemos ter uma catástrofe.

Leona se adiantou, olhando para os lados com severidade.

— O que aconteceu ou deixou de acontecer não importa mais, nossa prioridade é impedir que a situação fuja do controle, estamos todos de acordo?

Os murmúrios começaram a se espalhar. Alguns concordavam. Outros hesitavam.

Cada trovão ecoava sobre seus ombros como um lembrete de que nenhum deles, por mais nobre que fosse, teria forças para parar Eiden se ele perdesse o controle.

E então, um baque cortou o barulho.

Uma bengala rúnica bateu no chão.

A madeira marcada por décadas de batalha reverberou por todo o salão.

Os olhos se voltaram para ele.

General Kaius.

Relíquia viva um fóssil indestrutível. Velho, careca e de barba longa e trançada, peele marcada pelo sol e pelo tempo.

Mesmo com os olhos fechados, sua presença fazia a sala inteira recuar.

— O que faremos, então? — perguntou Ivan, um conselheiro, se aproximando.

— Se isso continuar, nem todos nós reunidos poderíamos impedir o imperador. Ele pode... afundar tudo.

Outros senadores trocavam olhares inquietos.

Alguns suavam.

Um deles murmurou alto demais:

— E se ele perder o controle?

— Não temos como detê-lo...

Darma cerrou os punhos.

“Se vocês têm tempo pra se cagar de medo, melhorem suas famílias... e a si mesmos, vermes.”

Leona estreitou os olhos, observando Kaius.

“O monstro pré-histórico decidiu agir…”

Kaius deu um passo à frente.

E a sala pareceu diminuir.

— Vocês não ouviram? — disse, com a voz rouca e grave.

 — Eiden está em um estado raro. Nossa prioridade não é entender, é apoiá-lo.

— Com todo respeito, General Kaius — rebateu Bahrein, outro senador de cabelos escuros com mechas prateadas

— Acho que o senhor está exagerando. Como Solomon. Como Leona.

Kaius abriu os olhos. Pela primeira vez.

O vermelho profundo que preenchia suas íris era sobrenatural.

Não havia humanidade ali — apenas força. Antiga. Incansável.

— Senador Bahrein... gostando ou não, nossa república tem um imperador, evocês vão vir comigo, não estou perguntando.

Fez uma pausa.

— Se isso te incomoda... registre uma queixa. Quando voltarmos — se voltarmos

— Podemos debater o quanto quiser, depois que vossa graça retornar.

Seus olhos varreram o salão.

Alguns abaixaram a cabeça. Outros o enfrentaram com dificuldade.

Mas ninguém ousou responder.

Leona aproveitou o silêncio.

— Ótimo. Tomarei isso como um “sim”. Vamos.

Ela se virou, e seus passos foram seguidos pelos generais e conselheiros que se moviam com relutância.

Kaius se moveu sem som, até estar ao lado dela.

Rápido como um sussurro.

“Rápida em aproveitar as brechas...”

Pensou ele. 

“Talvez seja a única Empera digna do legado do imperador.”

— Obrigada, mestre. Ninguém ousaria desafiá-lo.

— Besteira — rosnou Kaius.

— Eles me odeiam. Mas temem as consequências.

—E vão temer você também... com o tempo.

Pousou a mão no ombro dela com leveza, o gesto carregava o peso de uma promessa.

— Até lá, não se preocupe. Na ausência do seu pai, eles vão escutar. Por bem... ou por medo.

Leona assentiu.

Atrás deles, Solomon observava em silêncio.

“A palavra do fóssil ainda pesa mais do que a minha... Leona é só uma fedelha, mas os dois juntos... Eles estão minando minha autoridade, preciso fazer algo.”

Um a um, os corpos se ergueram em voo.

Rumo à tempestade.

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