Volume 2: Correntes invisíveis.

Prólogo: Aetherium



Sinnomun era velha. Velha como as pedras que sustentavam seus palácios. Como os cânticos das sacerdotisas esquecidas. Como as histórias sussurradas nas tavernas ao pé da muralha, mas era viva, e isso  em um mundo como o deles  era tudo o que importava.

Em Nerio, tradição não era só memória, era muralha, era escudo, era o elo invisível que mantinha um povo de pé em meio a um mundo cada vez mais voraz. Por séculos, magos raros e líderes lendários sustentaram o reino contra tudo — e todos.

O Império? Um continente distante. Grande demais para se importar com os "reinos livres" do outro lado do mar.

Glaëndir? Potência tecnológica, mergulhada em sua arrogância acadêmica.

Outros reinos? Comerciantes, clãs, mercenários — esperando o momento certo para conquistar, colonizar ou destruir.

Nerio não era grande, era forte, não por quantidade, mas por qualidade, não por riqueza, mas por orgulho, não por tecnologia... mas por sabedoria. Entretanto até as muralhas mais antigas sentem o peso do tempo, o mundo avançava, as ruas de Sinnomun mostravam esse contraste.

Templos ancestrais ao lado de estações de transporte alimentadas por mana cristalizada. Praças de pedra ladeadas por outdoors mágicos. Tradição e modernidade costuradas à força — mas vivas.

Porque o povo de Nerio aprendeu a lição que muitos esqueceram:

Sobreviver é se adaptar. Ou morrer, e poucos entenderam isso tão bem quanto a rainha que reinava acima deles, Morgana Sinnon Abrasax. A Bruxa Vermelha, Senhora do Recomeço, a mulher que manteve Nerio livre — não do Império, não de um reino vizinho, e sim do mundo inteiro.

 

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Durmalak Nyhara — Palácio do Recomeço

 

O trono de Durmalak Nyhara era frio como a pedra que o sustentava.

Ali, cada palavra tinha peso.

Cada silêncio, um recado.

Os nobres de Nerio não eram tolos.

Eram velhos, orgulhosos, tradicionais — guardiões de uma nação que sobrevivia há séculos cercada por titãs.

O mundo lá fora crescia.

O Império — no continente distante — devorou tudo o que podia com seus magos.

Glaëndir — a cidade de metal e vapor — negociava tecnologia como quem vendia armas em tempos de paz.

E Nerio... resistia.

Além da força bruta. Além dos números.

Apenas pela identidade.

Ainda assim, o avanço batia nas tradições. Era inevitável.

Na sala de pedra negra, o Conselho discutia.

Talbor — velho, tradicional, cuidadoso — quebrou o protocolo:

— Vossa Alteza... com todo respeito... os contratos com Glaëndir estão cada vez mais seletivos. Eles respeitam Nerio, sim. Mas nos enxergam como um parceiro passageiro. Para eles, somos curiosidade histórica.

Murmúrios contidos.

Outro nobre, mais jovem, rebateu com certa ironia:

— Os anões são pragmáticos, acreditam que tudo é uma peça antiga esperando ser desmontada e estudada.

Mais sussurros.

Talbor insistiu:

— O avanço tecnológico é inevitável, Vossa Graça. Mas pergunto... quem guiará Nerio por esse caminho? O príncipe? Harkin sem dúvidas é capaz... Mas suas invenções? Essas ideias que ignoram nossas tradições?

O nome dele pairou na sala como um presságio.

Morgana não mudou o olhar.

Não moveu um músculo.

Apenas ergueu a mão — e o Sentinela de armadura rúnica bateu a lança no chão.

O som reverberou pelo salão — pesado como o destino.

Ela falou:

— Harkin não criou uma mudança, Talbor. O mundo já a criava há muito tempo.

Fez uma pausa.

— Meu filho apenas fez o que muitos aqui não tiveram coragem de fazer: olhar para o futuro sem medo de desafiar o passado.

Mais silêncio.

Ela se ergueu — e o ar da sala ficou pesado.

— Nerio existe há séculos porque aprendemos a sobreviver. Magia é rara entre nós. Guerreiros são poucos. Mas nosso solo... nosso lar... nos dá aquilo que mais importa.

Ela se virou para o vitral que dava vista à cidade.

— Raízes profundas.

Um brilho discreto iluminava a muralha externa — onde os novos geradores de energia mineral, alimentados por ligaduras rúnicas, funcionavam dia e noite.

O futuro não era escolha.

Era inevitável.

Morgana finalizou:

— Nerio mudará. Porque Nerio vive.

Nossas tradições nos trouxeram até aqui, e elas nos ensinaram que o mundo e o tempo esmagam aqueles que se recusam a enxergar o caminho à frente.

Olhou para Talbor, firme:

— O mundo tenta nos ignorar, mas sabemos quem somos. E por isso, temos que decidir: evoluir e aceitar a mudança…Ou nos apegar ao passado e ser engolidos pelo mar lá fora.

 

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Subsolos de Glaëndir — Núcleo de Observação Arcano-Técnico

 

As luzes nas galerias subterrâneas de Glaëndir não tremulavam.

Aqui, nada falhava.

Os grandes anéis de transmissão energética giravam em silêncio absoluto, alimentando forjas, bibliotecas digitais, laboratórios e torres de análise.

Na Sala de Observação, figuras de altura imponente — pele marcada por traços metálicos, olhos claros adaptados ao brilho das pedras-energia — assistiam aos registros recentes vindos de Nerio.

No centro da sala, um mapa tridimensional mostrava as regiões mineradoras do reino.

Linhas de extração de Atherium brilhavam lentamente — indicando a atividade crescente nas profundezas de Sinnomun.

Um ancião de vestes funcionais murmurou:

— Finalmente encontraram um fluxo viável.

Outro, de postura mais jovem — mas com olhos de vidro cristalizado — completou:

— Estavam próximos há décadas. Mas demoraram mais do que o estimado.

Silêncio respeitoso.

Então, um terceiro membro da casta técnica questionou:

— E quanto ao jovem... Harkin Abrasax?

O primeiro ancião curvou levemente a cabeça.

— Incomum.

Girou um painel lateral. Registros de invenções, runas de integração, projetos de Sentinelas — tudo armazenado em fragmentos observados de longe.

— Não é a técnica dele que impressiona. Ainda é crua. Artesanal.

Pausa.

— Mas é a abordagem. A intuição. A capacidade de encontrar caminhos que escapam das equações convencionais.

O mais jovem comentou, com leve respeito:

— Uma mente assim... merece ser observada.

Mais um registro do Atherium piscou no painel.

Mais um dado a ser arquivado porque em Glaëndir — nada se perde, tudo se estuda, tudo se compreende e com o tempo nada é incompreendido.

 

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O salão do trono estava vazio agora, restava apenas o eco dos passos de Morgana. Ela atravessava Durmalak Nyhara em silêncio — seu manto vermelho arrastando-se sobre o piso frio, como sangue antigo que o tempo não conseguiu apagar. Parou diante do grande vitral que se abria sobre Sinnomun — lá embaixo, o coração de Nerio pulsava. As ruas misturavam tradição e modernidade. A cidade resistia, como sempre.

Mas o que seus olhos buscavam estava além.

Muito além.

Do outro lado do mar que banhava Nerio — solitário, indomável — estava ele.

Harkin.

Aquele que partira não por rebeldia... mas por instinto.

Porque certos lobos nascem para vagar onde muralhas não os contêm.

Morgana permaneceu ali por longos minutos.

Nenhuma palavra era necessária.

Até que, com um leve sorriso — mais sombra do que luz — murmurou para si mesma:

— Eles não te entendem, filho… Mas eu sim.

Seus olhos vermelhos brilharam — não só por orgulho... mas pelo cálculo frio de quem conhece o jogo, de quem aceita o preço, de quem já preparou o tabuleiro.

— O mundo ainda não sabe o que fazer com alguém como você… E isso é bom.

Pausa. Silêncio absoluto.

— Porque até as estrelas precisam ser ensinadas... a temer o que não compreendem.

Ela se virou. Os corredores vazios de Durmalak Nyhara a aguardavam como a rainha que caminha não apenas para o futuro de seu reino, mas para moldá-lo com as próprias mãos.

 

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