O Auto do Despertar Brasileira

Autor(a): Leonardo Carneiro


Volume 1

Capítulo 28: FÚRIA E DESESPERO

Milan removeu Espectro da cavidade onde estava o olho esquerdo da criatura, urrando de dor. 

Ele encarou sua mão que segurava fielmente a espada, lutando para manter o aperto firme, e tudo o que viu foi sangue e carne queimando sob o toque viscoso e traiçoeiro da besta maldita. 

Argh!’

Ele já constatara que a criatura irradiava quentura, mas no embate ele não sentiu tanto calor. No entanto, o contato com o sangue da criatura era outra coisa. 

E ela não estava muito feliz.

Soltando um rosnado baixo, encarou com o olho restante a jovem e pequena ratazana que se esgueirou para lhe trazer dor. Mas a dor não era maior que o ódio. 

O olho vermelho e mordaz da criatura se intensificou. Abrindo a boca e revelando os caninos afiados, rosnou enquanto o lugar mudava lentamente. 

Lutando contra a dor e a falta de ar abrupto que assolava seu peito, Milan notou que a dificuldade e busca por ar aumentaram, e seus pulmões falharam brevemente. 

Um frio assassino inundou sua espinha, e seus pelos se eriçaram, arrepiados. Algo estava tremendamente errado. 

Desviando o olhar de sua mão queimada, Milan ergueu o rosto para observar a fera, que irradiava uma aura maligna e assassina. 

Agora que ele tinha mais facilidade em observar essas coisas, ficou fácil para saber o significado explícito disso. 

De repente o mundo ficou sombrio e silencioso, o peito de Milan subindo e descendo, seu coração batendo rapidamente e faltando sair por sua boca. Ele olhou para baixo e caiu sobre um joelho, soltando um gemido murcho. Suas pernas tremiam assim como suas mãos, mascarando superficialmente a dor infligida segundos atrás. 

Milan olhou para cima e encarou a fera, sua respiração tremendo. 

‘O-o que? Quando ele ficou tão grande…?’

Um sorriso louco surgiu no rosto pálido do garoto, e ele xingou mentalmente. 

‘Se recomponha, maldito! Você já enfrentou terrores piores…’

Mas isso não foi o bastante para afugentar o medo crescente vindo de seu âmago. E ele poderia se culpar? A única coisa que Milan tinha era uma espada, um leve conhecimento sobre aura… e um desejo incólume por vingança. 

Hah… um sonho não era nada mal. 

Dispensando esses pensamentos bobos, Milan se concentrou. Mas isso o ajudou a ter mais ambição e voracidade, também afastando por pouco o medo esmagador. 

Não era muito, mas deu a Milan segundos de pensamento. Houve certa clareza e percepção que haviam sido obscurecidas por este sentimento tão primitivo e irracional. 

Na realidade, Milan percebeu brevemente como ser afetado pelo medo obscurece a mente, tornando as pessoas ansiosas, incapazes de notar as sutilezas do ambiente. 

Milan não sabia como fez isso, mas mesmo que por poucos segundos, ele conseguiu afastar o medo e perceber o ambiente. E notar uma única coisa. 

Sim, a criatura estava com raiva. Mas certo receio também pairava ali. Ela estava… hesitante? 

A mente de Milan estava nebulosa demais para entender a razão, seu coração palpitou mais forte e sua vontade se curvou diante da bruta inclinação da criatura, que expelia sua força através de um instinto abrupto. Pura e primitiva fúria. 

Tremendo, Milan apertou o cabo de Espectro, observando bem que nem mesmo o sangue corrosivo da criatura era capaz de destruir o formato da arma. O cabo se manteve inalterado, pois se algo que mudou foi o aspecto de carne sobre carne da mão do garoto. Mas ele engoliu isso muito bem, e se forçou a focar num só objetivo. 

Era impossível que vencesse aquela criatura, e se conseguiu feri-la foi puramente sorte após golpear a esmo em todas as direções possíveis. 

Mas mesmo isso veio sob agradecimento, pois se ele sangrou, quer dizer que pode ser ferido, e se pode ser ferido, quer dizer que pode ser morto. Se pode ser morto, não significa que é invencível. 

Isso queria dizer que Mil tinha chances ferrenhas de vencer, mesmo que isso significasse perder uma ou duas coisas. Mas ele estava bem com isso, desde que pudesse sair vivo, o resto rearranjar-se-ia. 

As chances eram poucas, mas não impossíveis. 

Contudo, seu estado calamitoso era algo a se considerar. Ele sangrava por mais de um lugar, e sua aura era fraca, já que ele era alguém novo no manuseamento da energia. Era realmente muito surpreendente que Milan estivesse se mantendo até agora contra tal criatura. Isso foi para provar a ele que podia aguentar uma quantidade exorbitante de dor e… de medo. Que não vinha em pequenas doses, claro. 

Avaliando mais uma vez sua situação, Milan bufou desgostoso. O pior de tudo era sua pouca energia para lidar contra algo tão poderoso. 

Milan não tinha prática numa batalha real usando aura, e isso também era algo a se considerar. Sem contar que, ao comparar os ferimentos, ele estava muito pior do que a besta. 

Mas muita coisa podia ser tirada disso. E Milan percebeu quando teve a chance. 

Apertando bem o cabo de Espectro com ambas as mãos e ignorando a dor lancinante na mão direita, Milan se forçou a levantar, rangendo os dentes com tanta força que poderia se quebrar ali mesmo. 

Ele não considerou, no entanto, uma coisa muito simples que ouviu durante quase todos os cinco meses que esteve com Cildin. Ele era um recém despertado, e um dos poderosos. Tinha um Mar de Consciência poderoso e vasto, e um controle absurdo de aura que ele mesmo descobriu posteriormente. Sem contar que Milan era facilmente adaptável a muitas situações. Mesmo tão pequeno, ele não se quebrava fácil. E o mais importante de tudo, tinha uma boa resistência devido à alta compatibilidade com o gene recém despertado.

Mas isso também pode ter sido seu maior erro. Se elevar demais. Por um minuto ou mais, ele achou realmente que tinha chances contra a criatura. 

Claro, seu defeito era a inocência, e demoraria para perceber isso. Ou mesmo que percebesse, não tinha a maturidade necessária para lidar com isso no momento. 

Naquele instante, no entanto, estava entre a vida e a morte, e mesmo com a esperança renovada, tudo era contra ele. Desde força, mentalidade, até garra.

Era até engraçado dizer isso, já que a besta era desprovida de pelo menos um desses adjetivos. Ainda assim, ele o encarou com um olho apenas, irradiando uma fúria fria e assassina. 

Milan se arrepiou e agitou o corpo com medo e ressentimento. 

A fera rosnou e abriu a boca, rugindo alto. 

Milan de repente fraquejou, suspirando fracamente e perdendo um pouco do ímpeto. Sua respiração tornou a ficar pesada novamente, mas ele estava preparado para isso. A intenção da criatura era tão grande que tentava por meio de sua aura enfraquecer a alma de Mil.

Talvez para ela, a besta, fosse realmente irritante encontrar uma presa tão difícil e cascuda… feito um inseto que se recusa a morrer mesmo após ser pisado diversas e repetidas vezes. 

Apesar disso, ela reconheceu a fortaleza que encontrou pela frente. Milan apesar de tenra idade, era um jovem promissor, e isso era algo inegável. 

Meses atrás ele viu três garotinhos serem fatiados por uma besta de rank B, no mínimo. Hoje ele sequer era mais velho que o maior deles, e mesmo assim estava aqui, enfrentando tamanha dificuldade. 

‘Não a primeira…’ Pensou Mil sombriamente. 

Ele deu um passo após o outro, enquanto a criatura o mantinha bem em vigília. Então eles se aproximaram e se rasgaram numa nova profusão de ataques, a criatura falhando em ceifar a vida do jovem menino, e este falhando em encontrar uma fragilidade na enorme montanha. 

Em certo momento, enquanto os rasgos vinham de todos os lados, Milan acreditou realmente que ter tirado sangue da criatura fora puramente sorte, como se constatou antes. 

Mesmo assim, ele nunca desejou ver tanto sangue quanto agora, mesmo que isso significasse seu próprio fim. 

O monstro era incrivelmente forte demais, duro demais, resiliente demais… capaz ao extremo. No entanto, a criatura parecia irritada por esta batalha estar se arrastando tanto. 

Sua comida desejosamente se recusava a morrer repetidas vezes, uma atrás da outra. Não importava que ela rasgasse, mutilasse e mordesse… o jovem era perspicaz, sempre conseguindo escapar um minuto antes de uma ferida fatal. 

E isso se mostrou um incômodo, já que Milan não deveria nunca ser mais rápido que a criatura vil. E ele não era… era só questão de interceptar bem e no momento certo. 

Milan já tinha descartado causar algum dano na criatura, mesmo que tenha pensado, brevemente, que poderia lidar com tamanho poder.

Não podia. 

Agora, ele só lutava por sua vida, esquivando e defendendo golpes que nunca poderiam ser defendidos.  

A cada ataque da fera, era como se defender de uma montanha escarpada. Como se Mestre Cildin atacasse com toda sua força, e ele fosse obrigado a defender a cada ataque sem misericórdia. Não... provavelmente o elfo melancólico era mais forte.

Milan resistiu, mesmo cansado, rasgado, ferido e mordido. Sangue escorria mais do que antes, e seu corpo era uma confusão de aberturas e um manto vermelho. 

Contudo, Espectro se mantinha, sem rasgo ou deformidade em seus gumes. Aquilo também foi bem recebido por Mil. 

Ele, no entanto, encarou o monstro com a visão turva, caindo mais uma vez numa poça de lama. 

A chuva já tinha amenizado um pouco, mas a escuridão não. 

E a dor… céus. Cada partícula de seu ser doía. Nada nele funcionava direito. Seus músculos, mal estando formados, gritavam numa escala inimaginável. Apenas levantar um braço era como se mil agulhas perfurassem sua carne. 

Levantar-se sobre seu peso era ainda pior. Como sua aura estava quase esgotada por causa do desastroso treinamento de horas antes, Mil não tinha perspectiva de causar um dano muito poderoso na criatura… não como aquele que ocasionou uma enorme fenda vertical flamejante…

Mas ele tinha de tentar… essa batalha vinha durando mais do que deveria, se arrastando de maneira inquieta. 

Milan sorriu fracamente. Não sabia se agradecia pela sorte de estar vivo… ou pelo azar de encontrar uma criatura tão bestial… 

Suspirando fundo, não era hora de pensamentos bobos. 

A criatura novamente diminuiu espaço e eles entraram num embate visceral e sangrento. Enquanto a criatura rasgava e tentava a todo custo abocanhar Mil, o menino se mantinha perseverante e rugindo de dor, esfaqueando a criatura na cavidade ferida.

Sangue escorria por sua face, vapor subindo. O próprio sangue da criatura a queimava, e isso era bom. 

Mas o estado de Milan era ruim demais, várias escoriações surgiram, e em dado momento o rosto do menino já não era visto, coberto de sangue. Todo o seu corpo sangrava e perfurações ardiam com rancor renovado. 

Mesmo que tivesse um corpo consideravelmente resistente, uma ferida ainda é uma ferida. Apesar de muitos desses rasgos serem superficiais, sangue ainda escorria, e Mil se viu realmente numa sinuca de bico. 

Eles bolaram juntos enquanto Milan tentava desesperadamente rasgar a criatura, mas sua pele se recusava a ceder. Era simplesmente grossa e profunda demais, possuindo camadas e camadas de pêlo e pele. 

O coração de Milan se tornou pesado e sua respiração tornou a se arrastar quanto mais o tempo passava e mais feridas surgiam. 

Ele simplesmente não conseguia encontrar uma saída daquilo, mesmo que alguns momentos antes estivesse pronto para sacrificar algumas coisas. Em sua visão, o futuro parecia incerto e sombrio, sem perspectiva de nada. 

Em dado momento Mil se pegou torcendo para que algo impedisse que ele fosse mastigado ainda vivo, pois a situação piorara num nível extremo. 

Ele já havia abandonado qualquer tática de batalha e pensamentos esperançosos. Sua mente tornou a ficar nebulosa e sombria, e isso o cansou mais e mais. 

A sensação de desamparo era enorme, e mesmo com a mente curva, ele buscava desesperadamente por uma saída. 

Lágrimas rolaram por seu rosto enquanto ele gritava e urrava perante as mordidas e arranhões da criatura. O sangue dela também transformara sua carne em uma confusão à vista. 

Mas Milan persistiu, golpeando novamente a esmo. 

Eles rolaram, se atacando por um longo caminho, destruindo a vegetação e algumas árvores caídas aqui e ali. Na verdade era algo mais unilateral, mas a persistência de Mil era louvável, causando irritação na criatura, que rosnava e tentava abocanhá-lo. 

De repente Mil notou uma pontada na região lombar, e sua visão se curvou. 

Sua respiração vacilou e ele tremeu sob o peso da criatura, que aproveitou esse momento para mordê-lo no pescoço. 

Mil ergueu o braço esquerdo para a garganta da besta, conseguindo impedir seu avanço, mas já não tinha forças. Tudo o que o separava de uma dor profunda e de ser mastigado eram centímetros de distância. 

Com um olhar feroz, a criatura buscava freneticamente morder Mil, conseguindo apenas dar mastigadas no espaço entre si e a jugular do menino.

Baba e bafo quente atingiram o rosto de Mil ao invés de dentes afiados e serrilhados. 

Naqueles poucos segundos de desespero, medo e desamparo, uma fina ideia surgiu na mente de Milan. Não havia tempo para hesitação. Ele tinha de tomar uma decisão e logo.

Seu braço já não aguentava o peso e a dificuldade de respirar se tornou maior. 

Milan urrou e reuniu a pequena quantidade de aura que conseguia controlar… na espada. 

Seu foco diminuiu e também a sagacidade. Um cansaço ainda maior o inundou, e ele só queria deitar para dormir. 

Sua mente ficou turva e nebulosa, cedendo ao desejo sombrio de Espectro. 

Não havia margem para erro. Num movimento rápido e calculado, Milan ergueu a mão no exato momento em que tirou o braço que impedia a criatura de avançar, e enfiou a lâmina na boca da criatura. 

Seu braço sumiu na boca da besta, um dos caninos afundando profundamente no ombro dele. 

Isso me traz recordações… hah’ 

Então a criatura caiu sobre o menino franzino e parou de se mover. 

A chuva se intensificou. 

 

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