O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 40: Vida de Gaúcho

Na manhã do dia seguinte, terça-feira, Artur caminhava despreocupado pelo campus universitário quando avistou Nicole entrando pelo portão frontal em meio a uma massa de estudantes.

Ele acenou, mas toda a atenção da garota estava voltada à tela do celular em mãos.

O grupo de estudantes dispersou quando chegaram ao centro do pátio. Metade seguiu pela passagem lateral, rumo aos prédios dos cursos de exata; enquanto o resto se dirigiu aos prédios mais próximos, onde eram lecionados os cursos de humanas.

E a garota de 1,62 metros de altura, de cabelo liso e preto, e possuidora de um par de olhos verdes penetrantes fixados na tela do aparelho, seguiu reto, indo de encontro a Artur.

O rapaz de um metro e noventa não se moveu, continuou observando a garota se aproximar até o inevitável acontecer, ela esbarrar nele.

O celular escapou das mãos, ela tateou o ar em desespero para tentar agarrá-lo antes que caísse no chão. E na última hora, após todos os seus esforços falharem, uma mão amiga apanhou o celular, poupando-a de uma tela rachada,

— Toma — ele disse ao devolver o item.

— Artur! — Ela suspirou, aliviada por não ter trombado com um estranho. — Obrigada. E… desculpa, eu estava super distraída.

— Eu percebi, mas o que você estava olhando para se distrair desse jeito?

Ela virou o celular para ele, a tela exibia uma meia dúzia de gráficos.

— Estou calculando quantas armas tenho que forjar para evoluir minha profissão no jogo.

— Quantas? — Artur queria saber.

— Muuuitas — Nicole resmungou e se pôs a caminhar pela calçada.

— Ainda bem que temos algumas toneladas de ferro dando bobeira.

Ele puxou o celular do bolso, abriu o aplicativo de criação de itens e mostrou para Nicole o projeto em que estava trabalhando.

— Olha como está ficando.

Ela arrancou o celular da mão dele e admirou cada detalhe daquela armadura.

— Artur, está incrível! Você tem um talento para esse negócio. — Então ela olhou o painel onde constavam os requisitos para criar o item. — Pena que você precisa ser nível 20 para poder usar.

Em seguida conferiu a lista de materiais necessários para a criar cada peça.

— Ferro, couro e tecido. O primeiro e o segundo a gente já tem, então falta só essas peças de tecido de algodão, mas eu tenho certeza que a gente consegue comprar isso em alguma loja.

— Talvez ainda dê tempo de criar a armadura antes da invasão ao vilarejo.

Nicole usou o celular de espelho para ajeitar o cabelo.

— Também falta pouco para evoluirmos ao nível 20. Já pensou chegar no druida, vestindo uma armadura dessas, e dizer na cara dele que perdeu a aposta? — Nicole sorria só de imaginar.

— Seria um sonho virando realidade — Artur falou olhando para as poucas nuvens no céu de Porto Alegre.

Os dois andaram pela extensa passagem pavimentada com palmeiras nas laterais. Nicole guardou o celular no bolso de trás da calça jeans escura para puxar conversa.

— Ontem foi muito divertido, né?

Artur começou a relembrar da noite anterior.

— Foi muito bom mesmo. Eu mal consigo acreditar que a gente conheceu uma jogadora profissional. Ela parecia tão… tão… profissional.

— Bah, mas quem diria, hein?

— Você ri disso agora, mas ontem estava toda derretidinha pra cima dela.

— É claro, eu admiro muito ela, apesar de preferir a Anika. Mas… que tipo de relação você acha que ela tem com nosso amigo druida?

— Eles se conhecem há um bom tempo, isso deu para notar pelo jeito que se comportaram.

— Será que eles já jogaram juntos em alguma equipe?

— É provável, mas é estranho ele estar usando um avatar nível baixo.

— Na verdade não. Lembra que todos os ex-integrantes da Dark Age perderam seus avatares? A Julie é o avatar novo da Júlia, o antigo dela era a Juliet.

— Ah, minha cabeça, três nomes iguais. Como eu vou saber qual avatar é novo e qual é o velho?

— Decorando. Artur, não é tão difícil assim. Então… quem você acha que ele é?

— Não faço ideia. Eu ainda não entendo muito desse jogo. E daquela equipe eu só conheço o Dante. E só sei disso porque assisti uns mil vídeos dele em ação, e mais de quinhentas vídeo-análises de suas jogadas famosas.

Eles saíram da passagem delimitada por palmeiras e adentraram no pátio à esquerda que precedia o prédio onde ficavam as salas de aula de seus cursos.

Para não atrapalhar o fluxo de estudantes que entravam e saiam, a dupla se aproximou do prédio universitário, mas viraram à direita e seguiram rente à parede até pararem em um canto próximo à janela de uma sala.

Artur se recostou na parede e aguardou a amiga falar, pois aquele olhar não o enganava, ela tinha alguma revelação bombástica para fazer.

Ela chegou mais perto, se encostou na parede, olhou no olho dele, e disse:

— Artur, você sabia que ele namorava a Júlia?

No início, permaneceu incrédulo, mas aos poucos as peças começaram a se encaixar em sua mente.

— É verdade. Como eu sou burro, é tão óbvio agora que você falou. Um em cada quatro vídeos que eu assisti tinha alguma menção ao casal da Dark Age. Eu fui burro demaispara ligar os pontos… então isso quer dizer que…

Artur sentiu um frio percorrer sua espinha.

— É… é ele… — disse baixinho.

Fora essa revelação, o dia passou sem grandes surpresas para aqueles dois gaúchos. As aulas foram burocráticas como de costume. Eles se encontraram outra vez na saída e combinaram de se encontrarem mais tarde dentro do jogo.

Após se despedir, Artur pegou o ônibus de linha que iria até perto da sua casa. Quando desembarcou já passava de meio dia e meio. Antes de seguir a pé, seus olhos percorreram as casas simples da rua onde morava, tão destoantes das belas construções bem-cuidadas que vira durante a viagem.

Uma sensação angustiante cresceu dentro de si conforme se aproximava do portão de ferro de sua casa. Após um momento de hesitação, ele entrou, caminhou pela passagem de concreto e ignorou a porta da frente, indo reto pela lateral da casa. As paredes de madeira pintadas de amarelo estavam repletas de arranhões e riscos escuros das dezenas de raspões feitos por guidões de bicicletas.

Ele abriu a porta de trás e deparou-se com sua mãe lavando um prato. Ela era uma mulher de 50 anos, de pele enrugada e possuidora de um cabelo castanho claro ondulado até o pescoço.

— Voltei — anunciou pondo os pés no piso de madeira.

E ela reagiu, sem rodeios.

— Eu já comi, você que se vire.

— Tudo bem.

Cabisbaixo, Artur agarrou com força a alça da mochila e caminhou em direção ao seu quarto.

— Vai ficar lá o dia inteiro de novo? — Havia desprezo na voz dela.

— Eu trabalho durante a semana, você sabe.

— E quando voltar? Vai ficar naquele negócio até tarde da madrugada?

Aquela era a milésima vez que o provocava, Artur a ignorou e continuou indo ao seu quarto. Quando passou do batente da porta que ligava a sala e o corredor, ouviu um resmungo carregado de ressentimento vindo da cozinha:

— Aquela tranqueira foi o pior presente que seu pai já te deu!

Chegando no quarto, a primeira coisa que fez foi se trocar e arrumar a bagunça. Durante o processo olhou para a cápsula de imersão instalada ao lado da cama, o último presente de seu pai antes de falecer.

O velho se chamava Rodrigo Barbosa, trabalhou a vida inteira como eletricista. Foi o responsável pela instalação de metade da fiação elétrica daquele bairro e de parte da capital rio-grandense.

Apesar de nascer e morrer na humildade, longe do luxo, sempre foi um entusiasta de tecnologia e dos E-Sports, principalmente das grandes competições que lhe enchiam os olhos, mas que sempre estavam tão longe de seu alcance.

O pai de Artur testemunhou ao longo da vida a ascensão dos E-Sports. E quando os grandes jogos online de realidade virtual começaram a aparecer, nunca teve dinheiro para comprar uma cápsula de imersão, pois viveu a maior parte da vida durante a maior crise econômica dos últimos cinquenta anos.

Artur o amva mais do que tudo, por isso sentia-se ofendido a mãe menosprezava o legado de seu pai, consequentemente, também de sua grande ambição.

A vontade de entrar naquela cápsula, iniciar Nova Avalon, e se perder naquele mundo fantástico, era grande, mas ele precisava ir ao trabalho de meio período para ter o que comer durante a semana.

***

À quilômetros da casa de Artur, em um pequeno prédio no centro de Porto Alegre, Nicole destrancou a porta do apartamento 103 e foi recebida pelo silêncio de morar sozinha.

Então trancou a porta suspirou olhando para o cômodo que se resumia à quatro paredes brancas, um piso, um teto e o quadro de um barco preso ao lado da porta de entrada.

Como estava próxima de se formar no curso de arquitetura, os últimos semestres eram puxados por causa do trabalho de conclusão de curso, que graças ao seus esforços e dedicação, faltava apenas os ajustes finais antes de apresenta-lo à bancada julgadora.

Entretanto, sempre que lembrava de estar perto de se formar, pensava no amigo alto, magro e de cabelos cacheados, e como ele reclamava vez ou outra do quão desmotivado se sentia em terminar o curso de administração.

Eu vou à faculdade para a minha mãe parar de reclamar, Artur dizia com frequência.

E ela conhecia a mãe do garoto pelas vezes que fora até a casa dele para ajudá-lo nas disciplinas de cálculo. Érica sempre se mostrou amigável e gentil em sua presença, mas já a flagrou brigando com o Artur uma vez, xingando-o das piores coisas possíveis.

Nicole lembrou de como sentiu-se impotente aquela vez, parada na porta de frente, esperando os minutos passarem antes de bater na porta para dizer que havia chegado, tudo isso para evitar que a mãe dele suspeitasse de que havia escutado seus abusos.

Nesses momentos sentia-se privilegiada, podia não ser rica, podia não ter uma mãe, mas tinha um pai que pagava o aluguel do apartamento enquanto estudava para passar na melhor faculdade do estado, ainda se lembrava do quão orgulhoso ele tinha ficado ao saber que a filha tinha passado no vestibular.

O mínimo que poderia fazer era se formar com notas boas e arranjar um bom estágio em uma empresa respeitada.

Nicole jogou a mochila na cama e olhou os pôsteres na parede. Era engraçado como sempre se motivava ao ver os avatares da guerreira e da lutadora. Ana Cardoso e Júlia Bernardi eram suas inspirações por estarem em meio aos gigantes do esporte.

Ela sentou na cama. Pensativa, estava ansiosa para entrar no jogo, mas a fome roncava em sua barriga, havia trabalhos de faculdade para fazer e provas para se preparar.

Primeiro ela preparou um almoço rápido, arroz integral com filé de frango e uma salada básica de alface e tomate. Quando terminou, limpou a cozinha e foi até o quarto para estudar até anoitecer, mas fazendo algumas pausas para bebericar xícaras de café.

Da janela virada ao oeste, seus olhos encontraram o sol poente projetando raios avermelhados pela silhueta dos prédios da capital gaúcha.

Não tardaria para Artur chegar do trabalhado e enviar uma mensagem dizendo que logo iria conectar, mas as horas passaram e nenhuma mensagem chegou.

Estava ficando tarde, perto da meia noite, Nicole enviou mais de vinte mensagens e tentou ligar cinco vezes para o amigo, mas não houve resposta. Decepcionada e, um tanto frustrada com o dito cujo, decidiu ir dormir já pensando em tirar satisfação com o rapaz no dia seguinte.

Mas antes ela tomou banho, trajou seu pijama rosado e deitou-se na cama, e quando se acomodou, o celular emitiu o barulho de uma mensagem.

Ele que vá se catar, eu vou dormir.


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