Volume 1

Capítulo 11: O Culpado

A viagem de volta foi tranquila. Estava relativamente tarde, e chegaram na casa de Valentim por volta de meia-noite. Juliette ficou com birra por não ter sido carregada pelo ruivo até o quarto e, por isso, ignorou-o até chegar na sala de estar, onde sentou-se numa poltrona e adormeceu em instantes.

Valentim foi direto para o banho, só percebeu que a garota tinha caído do sono quando saiu. Ficou observando-a. Tinha certeza que se Juliette percebesse que ele estava ali, iria chamá-lo de estranho. Desenhando um símbolo, Valentim fez a poltrona reclinar lentamente, até ficar parecendo uma cama. Passou no andar superior por um instante e voltou ao térreo para cobrir a garota com um edredom. Depois, subiu aos seus aposentos para deitar.

*

Na manhã do dia seguinte, os dois sentaram-se à mesa para o café da manhã. Por praticamente nunca comer em casa, havia apenas pão murcho e uma geleia gosmenta. Juliette fazia uma cara feia a cada mordida.

— Você — Valentim apontou para a criança com a faca de manteiga — disse que vai acompanhar-nos. Como vai fazer se o seu pai é tão protetivo?

— Vou deixar uma das minhas partes aqui.

— Não — respondeu ele bruscamente. — Tenho que trabalhar, até parece que vou deixar você aqui sozinha.

— Eu não tenho dez anos, sabe?

— Tem.

— Só fisicamente! Mentalmente é capaz de eu ser mais velha do que você.

— Duvido seriamente disso. — Valentim apontou para os pés dela, que estavam em cima da mesa.

A garota aborrecidamente grunhiu sons indefinidos, olhou para o alto e cruzou os braços.

— Você não tem escolha. É até melhor pro seu plano. Com uma parte minha do lado do papai, posso contar a vocês o que ele está pensando e coisas do tipo.

Por algum tempo, isso não foi suficiente para convencer o ruivo. Ele ainda achava terrível a ideia de deixar uma criança sozinha em uma mansão inacabável. Mas, depois dela espernear e ele pensar muito, decidiu permitir, limitando as áreas em que ela poderia transitar.

— Não ir na cozinha?! — gritou Juliette, e endireitou-se na cadeira. — Vou morrer de fome!

— Talvez morra mesmo.

Dessa vez, ela apoiou o queixo na mesa e fez um bico com os lábios.

— Tá bem... 

Trinta minutos depois, Valentim e a outra parte de Juliette estavam a caminho da prefeitura da cidade, onde seu pai disse que os encontrariam. A criança estava no banco do passageiro, ao lado do ruivo, que cedeu o lugar a ela depois de choramingar um pouco. Enquanto tinha as mãos no volante, Valentim notou que ela fazia movimentos de desenho pelo ar, sem de fato estar utilizando do poder. Depois de observar os movimentos por alguns instantes, ele percebeu do que se tratava.

— Não irei me responsabilizar caso você faça um símbolo de portal sem querer.

— Olhos na estrada, xerife.

“Xerife”?

— Você é um detetive. São quase a mesma coisa.

Não são, não.

— Sei que meu corpo é frágil pra esse tipo de coisa — continuou Juliette. — Se o símbolo não for perfeito, serei destroçada. Estou praticando sabe por quê?

Valentim ficou quieto.

— Se caso der ruim no plano de vocês, eu saía de lá sem deixar rastros.

O ruivo sorriu em forma de desdém.

— Símbolos de portal são extremamente perigosos e falhos — disse ele. — Um desequilíbrio emocional pode custar sua mão ou seu pé. Nos piores casos, um órgão interno ou a sua cabeça. Mesmo em circunstâncias normais, não tenho dúvidas de que você pagaria uma taxa.

Juliette o encarou de canto de olho, emburrada.

— Não duvide de mim.

Valentim fez a curva e entrou no estacionamento da prefeitura. Lá, manobrou seu veículo até ficar frente a frente com um muro de tijolos, e o atravessou como se estivesse intangível. O carro agora estava no estacionamento dos detetives e funcionários do Departamento. Era um local coberto e escuro. Estacionando na vaga de sempre, o carro de Symon estava ao seu lado, com o acinzentado de pé. Ele ficou visivelmente alegre com a chegada de sua filha.

Tirando os pés de cima do porta-luvas, Juliette desfez a expressão de deboche no rosto. Ficou em silêncio, de olhos fechados, e em um instante a feição de princesa magnífica apareceu no rosto. Seu pai abriu a porta.

— No banco da frente?! — Symon surpreendeu-se. — Ah, filha! Que bom que está segura.

A criança pulou nos ombros do pai para um abraço quente e apertado. Symon agradeceu o ruivo, e esperou Juliette entrar no carro para mencionar que encontrou Clinton quando entrava no estacionamento.

— Ele me disse alguma coisa, mas não entendi absolutamente nada!  Ele estava com o capacete de moto dele, a voz ficou toda abafada. Fingi que tinha entendido só pra chegar aqui mais rápido. Depois você procura ele e me repassa a mensagem. Tenho que correr pra prestar queixa, novamente, obrigado, amigo!

Symon partiu para o volante. A dúplice apareceu na janela de trás, puxou o olho e deu a língua a Valentim. Ele respondeu com um gesto de adeus.

Chegando na sala de xérox, o ruivo desfez o símbolo de invisibilidade. Sempre achou extremamente chato fazer isso em todos os dias de trabalho, achava que deviam ter um local próprio, como o governo, e não se esconderem dentro de um prédio público.

— Sr. Schulze, bom dia — disse o sr. Meros, o velhinho porteiro, quando percebeu que havia alguém ali. Ele estava enchendo uma xícara de café com a máquina que tinha em cima de uma mesa.

— Deve ser cansativo — disse Valentim — ter que cuidar da máquina de café para todo o Departamento.

O velhinho gargalhou.

— Nem tanto! Diria que até é divertido. Desde que racionaram o café, sinto-me o Deus dos grãos.

Cerca de um mês atrás, o Departamento teve grandes problemas com o consumo de café. Todos estavam toda hora com um copo ou uma xícara, e quando acabava os grãos, gerava uma intriga. Alguns começaram a levar as próprias máquinas, e toda a confusão enfureceu os supervisores. No fim, cada pessoa que trabalha no Departamento teria direito a três xícaras de café durante o seu expediente. Confiaram a única máquina de café permitida ao sr. Meros, pessoa que está a mais tempo trabalhando ali.

— Você é o único que nunca vem pedir um café. Parando pra pensar, nunca o vi segurando um copo ou xícara… — disse o sr. Meros.

Detesto café.

O velho gargalhou novamente e, quando foi se sentar, a risada tornou-se grunhidos de dor enquanto ele colocava a mão livre nas costas.

— Envelhecer é uma dádiva — disse o sr. Meros — Você se torna mais bonito e mais calmo, mas às vezes não tem tanta sorte.

Valentim sentiu certa pena do homem, mas o sentimento desapareceu em instantes. Ele seguiu até a parede e desenhou o símbolo para ativar a entrada do Departamento.

— Ah, última coisa, sr. Schulze — disse o bigodudo. — O recruta estava procurando você, tinha algo para lhe dizer.

O ruivo quase o respondeu com um “já estou ciente”, mas sentiu que seria uma enorme grosseria.

— Agradeço, sr. Meros. — Atravessou a porta.

*

No momento em que Valentim fechou a porta de seu escritório, bateram nela logo em seguida. Batidas rápidas e precisas. O ruivo abriu a porta e deu as costas, indo para sua mesa. Clinton erguia-se de pé do lado de fora, como se estivesse esperando ser convidado para entrar.

— Quais as notícias, Clinton? — disse, e sentou-se na sua poltrona preta. Levou os olhos ao recruta, e notou que o mesmo segurava uma garrafa térmica de café, e Valentim sofreu um baque mental instantâneo.

Clinton começou a discursar algo, mas nada chegou aos ouvidos de Valentim. O ruivo começou a assimilar inúmeras informações ao mesmo tempo, e uma vez que isso acontecia, não havia som alto o suficiente para chamar sua atenção. Uma forte dor de cabeça infestou a parte da frente do seu cérebro, e encarava Clinton com um olhar vazio.

Como não pôde perceber? Inadmissível. Era um detetive sênior há anos, mas mesmo assim os fatos deslizaram e escaparam. Mas agora estava tudo bem, ele percebeu tudo.

Diplos Periorismos — ordenou Valentim, enquanto desenhava um símbolo complicado no ar. Clinton não entendeu, e ficou imóvel. Ao ser finalizado, o símbolo atingiu o peito do recruta com tanta força que o fez cair no chão,  a garrafa de café rolou sobre o chão de madeira. As mãos de Clinton estavam nas costas, atadas por uma linha vermelha-vinho que luzia levemente. Uma outra linha restringia os seus pés e pernas, e uma terceira linha atravessava seus lábios, como se estivessem costurados.

Clinton começou a se debater fortemente, se não fosse pelo símbolo, estaria fazendo sons abafados de alguém desesperado e confuso.

  — O café — começou Valentim. Fez uma pausa e levantou-se da cadeira. — É claro. O café. O que você colocou nele?

Clinton de repente parou de se debater e olhou para Valentim amedrontado. O ruivo andou até a porta e lançou um segundo símbolo, que atingiu a maçaneta. Ela brilhou levemente, e depois voltou ao normal. O detetive cruzou os braços e desdenhou através de Clinton, que estava pateticamente deitado no chão empoeirado.

O que você colocou no café que Juliette bebeu?

As palavras bateram nas paredes do escritório e ecoaram de volta à sua origem.

— Você estava lá quando o Pombo me chamou para o musical. E claro, o maldito café. — Valentim cerrou o punho. — Não deve ter tido o efeito que você esperava. Teve que colocar doses pequenas, para fazer apenas uma criança sofrer o efeito do coma, já que não podia arriscar caso o Pombo também quisesse um gole do café. Mas colocou pouco demais, e ao invés de Juliette entrar em coma, sofreu de pequenos desmaios. Cacete, estava tudo jogado na minha cara. Ele até comentou sobre uma moto perturbando o sono de Juliette. Aposto que era você aprontando alguma coisa. Bem que estranhei quando ele disse que você veio de capacete.

Clinton voltou a se debater, tentou ficar de pé e se levantar, mas era impossível. As linhas o seguravam firmemente, quanto mais se debatia, mais elas apertavam. Ele comprimiu os olhos com força, sofrendo.

— Desfarei a linha na sua boca. Use o tempo para se explicar, não para fazer comentários patéticos — disse Valentim, desenhando outro símbolo.

Quando finalizado, a linha desapareceu como uma bolha estourando.

 — Eu não sei…

E calou-se novamente. As três palavras foram o suficiente para Valentim perder a paciência e fazer com que a linha costurasse sua boca novamente. A têmpora do ruivo saltou, ele deu a chance ao coitado, mas ele jogou-a no lixo.

— Te manterão preso preventivamente. — Valentim sentiu um gosto amargo na boca ao dizer isso. — Levarei você pessoalmente até o Governo.



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