O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 5: Problema e Solução

— Nasci em uma casa de arenita, ao sul de Alfriz. O último de três irmãos. Meu pai trabalhava nos campos com outros homens, a procura de fazer crescer algo no solo que herdou de meu avô, mas não conseguiu. — Lars levantou a vista, observando o campo de dentes de leão balançando ao vento. - Este não é meu mundo. Soube disso quando vi o Olho brilhando no céu. Solitário. É por isso que as plantas aqui florescem. — Uma expressão melancólica tomou conta de suas feições. — Em Ansei temos dois — apontou para o Sol — Dois enormes Olhos de fogo vigiando o mundo. Evitando que qualquer rio corra, que qualquer planta cresça… Apenas areia onde quer que você olhe. Respirar chegava a ser difícil quando criança. Meu irmão mais velho nunca virou um homem. Queimou por dentro. De ar e de fome.

Aprendi a caçar enquanto consegui segurar uma lança. Saia de noite quando a areia já não estava tão quente e me internava nos penhascos. Devagar, escalava as encostas escarpadas e ficava no aguardo. As vezes a noite toda. Acompanhado somente pelo brilho de uma tocha.

E então, quando as ouvia sibilar sabia que devia ser rápido. Elas eram rápidas. — Lars golpeou a mesa com o punho. — Você atravessa o pescoço antes de ser visto. Torce a lança. E espera. Serpentes de areia podem sobreviver um bom tempo sem cabeça. Por isso você precisa ter certeza. Nunca levante a lança sem antes ter certeza. Se você fizer isso é provável que não veja a luz do dia. Elas se enroscam em teu corpo, quebram teus ossos e tomam a tua vida. Muitos viajantes terminam assim. Por isso, sempre tenha certeza.

Durante muito tempo minha família sobreviveu de sua carne. Apesar de meu irmão e meu pai trabalharem o dia inteiro com a terra era raro termos colheita. A melhor lembrança que tenho dessa época, é a de ir dormir sem fome após caçar uma serpente tão grande quanto nossa casa. Aquilo foi sorte. Eu era pequeno e fraco. Um golpe de cauda teria bastado. Nunca mais veria minha família.

Não precisei morrer para que isso ocorresse. Uma febre levou eles antes. Minha mãe, meu pai, meu irmão… De repente nossa pequena casa de arenita ficou maior do que nunca.

Mesmo assim continuava caçando. Toda noite. Não importava quão quente tinha sido o dia, o sangue noturno sempre estava lá para me refrescar, para me banhar, para acabar com minha sede.

Sangue virou tempo. Cada gota sobre a areia um instante a menos longe de minha família.

Comecei a caçar de dia. Sentindo o olhar ardente do céu em minha nuca eu atravessava escamas com minha lança. As vezes repletas de pó do deserto, as vezes viscosas, as vezes calejadas.

Conhecia todos os ninhos da zona. Do desfiladeiro de Alfriz às rochas próximas de minha casa.

Por isso quando a carruagem apareceu, soube que precisavam de ajuda.

Levava tempo sem dormir e mais tempo ainda sem ouvir outras pessoas. A carruagem estava a procura de um atalho na parede de pedra de um dos penhascos. Não percebeu entrar em um ninho. Os gritos não demoraram. Alguns homens tentaram desesperados escalar a parede de pedra enquanto seu corpo afundava baixo as escamas. O som de ossos se partindo era tudo além dos gritos.

Assisti tudo de cima do penhasco. Aquilo era minha vida. Era aquilo ao que me arriscava todos os dias.

Mas ela não.

A garota de vestido branco que se arrastou baixo a carruagem não pertencia ali, aquela situação. Tremia horrorizada. No lugar de onde ela vinha a morte era apenas um ponto final distante. Escondida atrás do fechar dos Olhos no céu.

Decidi ajudar. Desci aos pulos o penhasco, sentindo as pedras cortando meus pés. Quando cheguei a carruagem a garota ainda estava a salvo, escondida.

Afundei minha lança em mais de uma criatura mas…

— Não tinha tempo de ter certeza — interrompi.

— Não. Por isso decidi esquartejar. Reduzir o tamanho das bestas o máximo possível. Só precisava usar a força. Tive dificuldade com a primeira serpente, mas não com as outras. Cortei carne tão rápido quanto pude. Tanta que terminei coberto de sangue. Salvei a carruagem e alguns dos sobreviventes junto a garota me socorreram quando meu corpo desfaleceu.

Acordei em um palácio rodeado de serventes. Descobri que na verdade a garota se chamava Arya. E que era a princesa de Alfriz. Tinha discutido com seu pai e decidido fugir por conta própria com alguns guardas, mas… Vocês já sabem o resto da história.

Foi no palácio quando me chamaram de Lars Vermelho pela primeira vez. E o nome em pouco tempo já estava nas ruas de Alfriz. O Rei insistiu para que entrasse no exército real. Eu não tinha para onde voltar de todas formas. Aceitei. Fui treinado até estar pronto para ser um guerreiro real.

Fui e voltei de muitas guerras sob ordens do Rei. Devolvi cidades a areia do deserto. Banhei de sangue minha espada muitas vezes. Nunca duvidei. Minha fama fez o Rei me prometer sua filha. Nos casamos após alguns anos de serviço na força real. Tivemos dois filhos.

Já não estava sozinho nem passava fome, mas faltava alguma coisa. Algo que me impedia abandonar o campo de batalha. Mesmo assumindo o lugar de governante após a morte do pai de Arya, alguma coisa não parecia certa.

Ansei sempre foi uma terra erma, seca. Plantações não sobreviviam e água era um luxo para muitos. Alfriz tinha a sorte de ter um grande poço de água baixo a cidade. Mesmo escassa, chegava a maioria dos habitantes. A fome levava a muitos, mas a sede não. Nunca me preocupei com isso. Tudo o que tinha que fazer era ir à guerra, encontrar comida e dá-la ao meu povo. Não esperava que o poço secasse.

Nunca pensei no assunto. A guerra sempre sussurrou em meus ouvidos. Tentamos extrair água de oásis próximos. Não foi suficiente. Muitas famílias começaram a abandonar Alfriz em direção ao norte. Fugindo da seca. As ruas começaram a ficar vazias. O deserto repleto de corpos. A sede chegou ao palácio. Arya e as crianças passaram a não abandonar mais seus aposentos.

Precisava de uma solução. Por isso montei no melhor medário da região e comecei a explorar o deserto. Todo dia me internando um pouco mais entre as dunas. Não tínhamos água em Alfriz, mas talvez outros tivessem em seus reinos. Desde criança só tive minha lança para oferecer ao mundo. O que mais podia fazer?

Então encontrei um povoado ao leste. Telhados de arenita estendendo-se até o horizonte. E um vasto poço de água sob o manto de areia da cidade. Os moradores que me receberam se sentiram orgulhosos ao me falar sobre a bênção que os Olhos tinham lhes dado. Dispunham de água o suficiente para irrigar plantações tanto quanto precisassem. Podiam perder diversas colheitas, pois teriam água para iniciar outras logo após. Tinham tudo do que precisávamos em Alfriz. — O homem permaneceu em silêncio por alguns instantes. — São eles ou nós.

— Participou em várias guerras. Por quê duvida agora? — suspirou Po.

— Não consegui responder essa pergunta — disse Lars — Faz dias desde que visitei a aldeia, mas…

— Ameaçou cortar a cabeça do meu ajudante por nada, mas duvidou na hora de lutar por seu povo — bufou a criança.

— Eu lutei por meu povo. Sempre lutei. É só que…

— Que? — inquiriu o menino.

— Não importa quanto sangue eu derrame. Por mais que mate nunca consigo salvar quem amo da morte. Não importa quanto me suje de vermelho, meu povo estará sempre deitado na areia. — Olhando em minha direção. — Estou cansado.

Senti um nó crescer em minha garganta. Mesmo não tendo entendido boa parte da história de Lars, podia entender como se sentia. Fui tomado por uma estranha sensação de cansaço, como se o peso do mundo se alastrasse em meus membros. O quê eu faria no seu lugar? Seria capaz de viver sabendo que minha morte arrastaria consigo muitas outras?

A responsabilidade tinha esculpido seus músculos, não a violência.

— Vocês poderiam negociar — arrisquei.

— O recurso mais valioso deles em troca de que? Alfriz já não tem tanto a oferecer como no passado. Ou iniciamos mais uma guerra ou perecemos...

— Para sua sorte sua Majestade, o jardim sim tem algo a oferecer — interrompeu Po. Em nenhum momento seus lábios tinham abandonado o sorriso perante a história de Lars. Um calafrio recorreu meu corpo. — E ele está disposto a aceitar o que tiver para dar.

— Não vou cair em nenhum truque criança — declarou o homem se levantando.

— Nenhuma árvore cresce sem semente. Não é nenhum truque, é a vida. Mas pode sair de meu jardim e voltar a empunhar a espada até perder os dedos se o desejar.

As palavras de Po me surpreenderam. A primeira vista poderiam parecer maldosas, incitadoras, mas…

Lars cerrou os punhos frustrado.

— Está aqui porque precisa. Então pegue o que lhe for necessário. — O menino apoiava o queixo sobre uma mão, tranquilo. Era como se nada do que dissesse tivesse importância para ele.

O homem olhou para a arma ainda no chão. Engoliu saliva.

— Preciso tomar uma decisão…

— Sim. Já ouvimos sua história. — Po colocou os olhos em branco.

— Você vai me ajudar a decidir?

— Não, ele vai — disse a criança empurrando o vaso sobre a mesa com o dedo. 



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