O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 8: A Menina e A Fada

— Você quer brincar com Molar? — repetiu a menina.

Ele quer brincar com ela?, duvidei por minha vez.

Po era uma criança assim como a visitante então… Por que era estranho que quisesse brincar? Talvez porque nunca tinha visto esse seu lado antes. O menino nunca brincara de nada na minha frente. Tudo o que tinha visto ele fazer era dar ordens e ter certeza de que outros as seguiam. No caso, eu. Não havia conversa. Somente ordens. E caso tais ordens não fossem obedecidas como deveriam… Cócegas percorreram meu pulso.

Contudo, lá estava ele. Ruborizado, com uma mão dentro do short e os olhos deslizando pelo chão. Um leve nervosismo sacudia seu corpo. Parecia até vulnerável. Se Molar não aceitasse o convite, ele choraria.

— Sim — articulou Po, timidamente. — Você não quer?

A menina duvidou por alguns instantes antes de suspirar. De repente, pulou sobre Po esfregando sua bochecha na do menino.

— Molar aceita! — exclamou ela.

Toda a agressividade havia desaparecido. Sequer se preocupava em resguardar o colar que usava.

Molar tinha um grande chapéu abobadado em sua cabeça, decorado por pedras roxas de diferentes tamanhos. As madeixas escuras de sua franja eram as únicas a sair do chapéu, repousando sobre um par de orelhas pontudas. Um macacão preto decorado por costuras roxas cobria seu corpo, terminando muito antes de alcançar seus joelhos. Em seu lugar, eram meias púrpura as encargadas de cobrir suas pernas até serem engolidas por um pequeno par de sapatos de fivela pretos.

— Do quê quer brincar? — disse a menina.

Po fez uma careta, como se estivesse pensando muito bem o que propor.

— Já sei! — anunciou satisfeito. — Você se esconde e eu te procuro. Se eu te encontrar, eu ganho. Se não, você ganha.

— Sim! Sim! — pulou ela de alegria, soltando o menino. — Mas o que Molar ganha?

— O que você quer ganhar? Se pudesse pedir qualquer coisa quero dizer — atiçou Po.

Uma expressão sombria cruzou o rosto da menina. Acabava de lembrar de alguma coisa.

— Molar precisa ir — declarou. — Têm pressa.

— Que chato — começou a soluçar Po.

Me incorporei sem entender muito bem o que estava acontecendo. Veria Po chorando?

— Por que você tem que ir? — balbuciou o menino.

A visitante levou os dedos à joia em seu pescoço.

— Molar… Molar fez uma promessa.

— E não dá pra cumprir ela daqui? — insistiu ele.

A garota deu de ombros.

— Só se você der a Molar muitos, muitos dentes. Mas você não pode. Nem com os da boca dele você poderia ajudar — explicou ela apontando para mim.

— Você quer dentes? — perguntei, entendendo ainda menos o que estava acontecendo.

— De onde Molar vêm, eles são importantes. De todas formas ela tem que ir…

Molar voltou a observar o bosque de bambu no qual estávamos. Não ficou nada contente com o que tinha descoberto desta vez.

— Deixa Molar ir — pediu para Po.

O menino estava cabisbaixo.

— Mas aí a gente não vai brincar — murmurou.

— Ela…

Um berro ecoou entre os caules. Po tinha começado a chorar. Levou inclusive um braço ao rosto. Como se a dor que se projetava de seus olhos fosse tão grande que precisava pará-la de alguma forma. Contudo pude ver claramente uma de suas pupilas me encararem antes de voltar baixo seu braço.

Entendi a ordem.

— Olha o que você fez — eu disse, me aproximando de Po. — Ele é tão sozinho...Só queria alguém com quem brincar. Ta tudo bem Po. — Com um calafrio recorrendo minha nuca coloquei uma mão sobre o cabelo de Po e o afaguei. — Calma, calma…

Me senti um pouco mal ao ver a culpa desenhada nas feições de Molar. Ela tinha acreditado. Mesmo assim insistiu:

— Molar sente muito. Mas uma promessa é uma promessa…

— E qual promessa foi essa? — perguntei. — Para merecer fazer o coitado chorar.

A criança cerrou o punho ao redor do colar.

— Molar é uma boa fada.

Fada?

— Mas parece que nada do que ela faz é suficiente. As crianças sempre choram. - Angustia envolvia suas palavras.

Quis dizer a ela que estava tudo bem e que Po estava somente fingindo, mas o menino me abraçou. Com mais força da que deveria. Respirar ficou difícil, falar impossível.

— Molar é uma fada do dente. A mais fraca de todas as fadas. Ela voa toda noite ao redor do reino e espera as crianças jogarem os dentes de leite no telhado. Fica sentada nas telhas, sentada, até pegar o último dente. Ai ela abençoa a casa e voa para o próximo telhado. Faz isso toda noite. Recolhendo tantos dentes como consegue, junto as outras fadas. Dentes de leite são a principal fonte de inocência do mundo e não há nada melhor para a magia do que a inocência. Toda inocência perdida é um desperdiço, mas inocência encontrada e moldada é magia. — A continuação cerrando os lábios em um tom grave. — E magia é ver o invisível. Ou isso diz a Fada-Mãe.

A Fada-Mãe também foi uma fada do dente. Todas as fadas foram. Todas começamos assim. Molar leva somente algumas luas procurando dentes. Até acha divertido. Pode conhecer todo o mundo fazendo isso. Brincar com crianças….Molar adora brincar! Uma vez, depois de dois irmãos jogarem seus dentes sobre o telhado, Molar jogou de volta de tão sujos que estavam! Mas os meninos insistiram jogando. Molar decidiu então jogar cada vez mais para longe, para ver se buscariam e tentariam de novo. Jogou até no telhado vizinho! — esboçou um sorriso. — Por pouco esses irmãos não caem, mas foi divertido de assistir. Eles também riam, correndo atrás dos dentes. Molar gostava de fazer isso.

Mas…

Conheceu Emília.

Em uma vila muito fria, rodeada de montanhas e neve. Molar adorava brincar com as crianças de lá. Por isso voava o mais rápido possível para ser a primeira a chegar quando sabia que alguma criança tinha perdido o dente. A casa de Emília era como todas as outras da vila. De madeira, com telhado de pedra. Molar tinha que se segurar na chaminé para não escorregar. Ficou um bom tempo abraçada ao chaminé esperando por Emília aquela noite. A menina demorou muito. Molar quase tinha adormecido quando a porta da casa se abriu. Uma menina loira de camisola saiu, tremendo de frio e andando devagar. Olhava o tempo todo para a casa.

Ela tirou o dente e jogou para o telhado. Caiu na mão de Molar. A fada já estava indo quando ouviu.

— O que você está fazendo ai fora!?

— Nada, papai.

— Já que não se importa com o frio pode ir na taverna pegar mais bebida.

— Mas tá escuro...

— Não me importa! Em cima que te deixo jantar hoje, você sai de casa sem permissão e não quer me obedecer!?

Molar ouviu então um som. O som mais desagradável que qualquer fada pode ouvir. E ela viu tudo. Ele puxou Emília pelo cabelo e bateu no seu rosto. Mais de uma vez.

— O senhor está me machucando!

— Isso é pra você aprender! Sua pirralha!

— Mamãe! Mamãe!

Aquela mesma noite Molar se encontrou com a Fada-Mãe. Contou tudo o que tinha visto. Pediu que fosse enviada uma fada madrinha para a menina, mas… Há muitas crianças assim no mundo. Não há suficientes fadas madrinhas para todas. O melhor que Molar podia fazer era entender e continuar com seu trabalho, para virar fada madrinha o mais rápido possível e ajudar alguma criança. Uma fada do dente que conseguir preencher em menos de uma lua cheia um talismã inteiro, tem o direito a se transformar em fada madrinha. Mas isso é muito difícil. Molar tentou durante um tempo.

Parou de brincar com as crianças a noite. Começou a visitar Emília de dia para saber se estava bem. Seu pai é um adulto horrível. Não deixa ela ir para a escola, brincar ou, as vezes, comer. Molar viu ele bater na menina muitas vezes. E tudo o que podia fazer era olhar.

Tentou intervir uma vez quando ele jogou Emília contra uma estante, mas fadas do dente não tem poder para intervir no mundo humano. Se Molar tenta empurrar ele para longe da filha, a fada atravessa o corpo do homem. Se tenta jogar alguma coisa contra ele, não consegue pegar o objeto. Se grita em seus ouvidos para que pare, ele não a ouve.

Somente uma fada madrinha pode intervir no mundo humano. Por isso Molar tentou de novo durante muito, muito, muito, muito tempo. Deixou até de visitar Emília para colher dentes, mas não serviu de nada. Era impossível recolher dentes suficientes. Não importava quanto tentasse. — Um véu de consternação cobriu o rosto de Molar. O que estava prestes a dizer a incomodava. Ficou em silêncio antes de concluir. — Por isso ela começou a roubar.

As outras fadas não se importavam tanto quanto ela. Não tinham crianças correndo perigo em suas rotas. E as que tinham, não se preocupavam. Molar foi até lugares distantes atrás de dentes, voou até onde o Sol nascia e tirou das mãos de algumas companheiras sua colheita. Mentiu para outras, encerrou mais algumas… Decidiu até não voltar mais com a Fada-Mãe. Procurou o bosque mais estranho onde se esconder e mergulhou nele. Mesmo que não parecesse um bosque. Mesmo que tivesse tanto medo de que encontrassem seu esconderijo que deixasse de voar.

Mesmo que nada disso adiantasse por que a lua cheia estava chegando e ela ainda não tivesse conseguindo preencher nem metade do talismã.

Porque ela prometeu à pequena Emília que a protegeria. A criança podia não ter ouvido nada, mas Molar sussurrou próxima do seu travesseiro colocando a mão sobre a cabeça da menina:

— Molar está aqui. Ela está aqui e não vai deixar ele te machucar mais. Ela promete.

— Você quer mesmo virar uma fada madrinha? — perguntou Po, ainda me abraçando de olhos inchados.

Molar acenou com a cabeça.

— Então, tudo bem a gente não brincar — murmurou a criança me soltando.

— Molar agradece.

— Mas... — interrompeu o menino. — ...agora Po quer ajudar. Porque foi isso que ele prometeu tempo atrás. E agora Po sabe que Molar entende o peso de uma promessa. Vamos brincar de trato. Sua promessa pela minha.

— Ela não está entendendo…

— Se você aceitar minha ajuda, vai conseguir o que deseja — declarou Po, voltando a sua atitude usual. — Por favor…



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