O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 14: Conclusão

O corpo sem vida do orc se juntou a poeira e o sangue que permeava o solo com um grande baque, sem qualquer chance de realizar seu objetivo. Apesar de achar um tanto decepcionante, não pude deixar de suspirar aliviado ao saber que a batalha havia terminado.

— Meus parabéns, foi uma luta notável. 

Meu olhar se moveu em direção a Helen, que esperou pacientemente por todo o desenrolar da situação. Não posso dizer que continuo surpreso com seus métodos irresponsáveis de treinamento, mas meu estômago embrulha sempre que preciso dizer aos outros que essa mulher é minha treinadora.

— Por que não me contar o que planejou? Tudo poderia dar errado se eu não estivesse pronto.

A apatia nunca deixou o seu rosto, mesmo agora. Seu olho dourado observava os arredores manchados com sangue e morte com uma frieza assombrosa, até mesmo sobrenatural.

— Por mais que eu suspeite que a sua inteligência e a dos javalis sejam a mesma nulidade, um pequeno detalhe me fez ter certeza de que você conseguiria.

— E qual seria? — Minha voz soou estranha nesse momento, parecida com uma risada. Conviver com Helen todo esse tempo me fez entender melhor sua personalidade, o suficiente para saber exatamente a resposta para a minha pergunta.

— Fui eu quem te treinei, o que você esperava? 

A brisa noturna e gélida que se seguiu foi um indício do que estava por vir, e eu não me sinto preparado para isso. Combater monstros é um fator à parte, sempre se pode imaginar seus movimentos ou personalidade.

Mas as pessoas são imprevisíveis, especialmente aquelas que só precisam de um motivo para explodir.

Enquanto Orghul ouvia silenciosamente o relatório de Helen, o ar ao redor da sala de descanso ficava cada vez mais rarefeito. A mesma sensação ocorreu nesta manhã, quando as provocações entre os dois resultaram em uma casa quase completamente destruída.

Alguns resquícios do confronto, como rachaduras nas paredes e pedaços de madeira espalhados pelo cômodo ainda permaneciam, mas é surpreendente que o resto tenha sido restaurado em tão pouco tempo.

 Uma veia parecia dilatar à medida que a conversa continuava, mas nada além disso. Quando o relatório terminou, apenas um suspiro pesado saiu de seus lábios secos e ressecados.

— Orcs não aparecem nesse lado da floresta, é senso comum entre todos por gerações. Não temos condições de lutar contra a fome que rasteja em nossos corpos, muito menos o frio que adentra por entre as frestas de nossas casas todas as noites. E agora, além de todos os problemas, teremos que nos preocupar com invasões e animais enlouquecidos. — Uma sombra cobriu o entorno de seus olhos enquanto seus pensamentos divagam, o que tornou seu semblante ainda mais melancólico e cansado. Orghul estava com raiva, mas de um jeito diferente da última vez.

Ele parece abatido com a própria fraqueza, assim como Helen o disse.

— Sinto muito que a situação seja resolvida dessa forma, mas podemos organizar uma audiência com vossa alteza e solicitar uma nova remessa de suprimentos para o vilarejo. Não vai livrá-los da dificuldade, mas pode ser uma garantia de sobrevivência. — Minha voz soou rouca por conta do cansaço adquirido com as lutas de horas atrás, e minha máscara também contribuiu para tal resultado.

O mestre da vila apenas acenou negativamente com a cabeça e se levantou de seu assento, ao mesmo tempo que um arrepio percorreu minha espinha de forma instintiva.

Orghul, entretanto, apenas procurou por um pergaminho em sua escrivania, pronto para começar sua solicitação por conta própria. A pena tinteiro se movia de forma rápida e agressiva, em uma letra irreconhecível para um idioma que não domino. A ação prosseguiu por mais alguns minutos, até o mestre da vila decidir que a carta apresentava conteúdo o bastante.

— Sou eu quem deve fazer isso. O pedido sair da boca de vocês seria recebido como nada menos que descaso, e eu não estou mais em posição de preservar o orgulho. — Diferente de sua postura anterior, Orghul parece magoado e abatido. Uma sombra paira sobre seus olhos, algo como um estresse ou desespero. 

Mas, como mestre da vila, Orghul não estava em posição de demonstrar tal sentimento.

— Eu devo agradecer a vocês, afinal. Precisaríamos de um grupo de extermínio para lidar com tantos orcs, mas apenas vocês conseguiram acabar com eles. — Sua fala não estava errada. Não havia como saber que foi Helen quem acabou com quase tudo sozinha, e é melhor assim. — Mesmo assim, ainda restou algo para se celebrar.

E ali, sendo resguardado por um dos guardas da vila, um pequeno bezerro se aconchega com o novo e desconhecido ambiente. O animal tremia de forma incontrolável em volta de tantas pessoas desconhecidas, mas sua aparência era menos danosa agora do que a de momentos atrás, na cabana dos orcs.

— Este pequeno é um recomeço para todos nós, eu acho. — Orghul observou o bezerro com um olhar inédito de ternura. E ele está certo, pelo menos no que diz respeito a recomeços. A vila, apesar da dificuldade, tem uma chance real de recomeçar e sobreviver.

E o mesmo se aplica a mim. Tenho uma chance única de viver de modo diferente de agora em diante. Fazer o que faço não apenas por mim mesmo, mas para ajudar quem eu quero. Usar tudo o que eu aprendi em algo que seja, de alguma forma, realmente útil para alguém.

Acho que minha vida até aqui tem sido mais solitária do que pensei.

— Você entende rápido. — Ao meu lado, Helen ergueu levemente as sobrancelhas e respondeu com um tom ácido de escárnio. Acho que, quando minha colega de equipe decide irritar alguém, não há o que fazer.

Eu meio que gosto desse lado dela, mas não sei exatamente o motivo para isso.

O grande e inestimável céu noturno cobriu tudo ao nosso redor com seu encanto. Pequenos pontos brilhantes enfeitavam o ambiente como jóias em um tecido negro de ceda, com o grande astro lunar à mostra no céu em sua forma perfeitamente circular, tão brilhante e primorosa quanto as estrelas que o acompanham.

Em comparação a esta manhã, as ruas estavam quase que completamente vazias, com apenas algumas pessoas transitando aqui e ali em suas formas lupinas. Ainda não me acostumei às diferenças entre as culturas de nossas raças, mas não consigo deixar de achar o modo de vida lycan algo muito interessante.

— Acha que Amélia ficará feliz com o relatório? — Virei meu rosto para encarar minha parceira de equipe, que encarava o grande astro com curiosidade.

A atmosfera noturna realçava a beleza de Helen de uma forma diferente da usual. Seu cabelo negro refletia, mesmo que pouco, o belo brilho lunar primorosamente. Sob aquela atmosfera, seu corpo se mostrava ser algo quase que esculpido, cada detalhe feito com tamanho cuidado que não parecia real.

Uma leve brisa tremulava seu cabelo levemente, e seu olhar demonstrava uma leve curiosidade com o mundo à sua volta, acompanhada de uma espécie de solidão inesperada. Eu reconheço esse olhar, a sensação melancólica de não pertencer ou se encaixar em nenhuma esfera da sociedade.

Eu o reconheço por também me sentir assim, de certa forma. Viver apenas por si mesmo, sem nunca se conectar verdadeiramente com outra pessoa, nos desconectar do resto do mundo.

— Não se preocupe tanto. Nosso principal objetivo era investigar e eliminar uma horda de orcs na região, e foi o que aconteceu. Esta vila não é a única com dificuldades,mas é essencial que problemas internos como este não se alastrem quando se pensa em vencer uma guerra.

Ela está certa, pelo menos racionalmente. Não sei se um ladrão de antiguidades como eu poderia se manifestar sobre o que é certo, mas eu sei de uma coisa: A fome pode te corroer lentamente a loucura, te transformar em outra pessoa.

— Aquelas pessoas ainda podem morrer. — Minha voz saiu naturalmente mais baixa neste momento, como se esperasse que alguém pudesse ouvir a nossa conversa.

— Assim como nós. O que acha que aquelas pessoas fariam se soubessem que há um humano por baixo dessa máscara?

Senti uma carranca se formar em meu rosto com a resposta, mesmo que a máscara não torne isso visível aos outros. Eu odeio admitir, mas não há como contestar que o ódio aos humanos em Daavil ultrapassou qualquer limite de tolerância. O império humano alastra sua campanha de guerra violentamente com fogo e morte, e apenas os deuses podem prever as consequências que isso causará aos anais da história. 

Por também ser um humano, sei disso como ninguém.

— Você é emotivo demais para um criminoso, senhor Dragonir. Eu vou conversar com a princesa assim que a solicitação do esquentadinho entrar em pauta, tudo bem? — O leve suspiro de Helen reverberou pelo ambiente calmamente. 

Mesmo que não queira admitir, Helen pode ser surpreendentemente compassiva, pelo menos um pouco. Se esse sentimento veio instintivamente por perceber o modo de vida das pessoas aqui ou não, seu rosto inexpressivo não me permite saber. Senti o canto dos meus lábios se erguerem em um pequeno sorriso depois disso, e eu agradeço que Helen não consiga vê-los agora. 

‘Olha quem fala, caolha rabugenta.’

Nosso objetivo em começar uma caminhada noturna era nos encontrarmos com nossos cavalos no pequeno estábulo do vilarejo, a última parada antes de começarmos a viagem de volta. Foi uma longa e cansativa jornada até aqui, e eu devo dizer que consegui chegar mais perto do meu objetivo, pelo menos um pouco. O único problema por enquanto é a minha escassez reserva de mana que não me permite usar todo o potencial da minha habilidade, por algum motivo. 

Para ser sincero, isso sempre me incomodou durante a minha vida. Vivi entre as vielas do reino humano, e por isso me encontrei em todo o tipo de situação possível até agora. Roubei na maioria das vezes, ameacei em outras e lutei contra pessoas que ameaçaram a minha vida, e em todos estes momentos minha mana se esgotou surpreendentemente rápido.

‘O meu limite é de dez golpes, mas isso não é o bastante.’

Dez golpes podem ser o suficiente para derrotar um orc ferido e alguns javalis selvagens, mas a situação vai ser diferente na capital do império. Se eu quiser realmente sobreviver, apenas a técnica de combate pode não ser o suficiente.

— Mudando de assunto, eu sempre tive curiosidade em uma coisa: A lua cheia não deveria transformar vocês em lobos completos?

A sobrancelha de Helen se ergueu levemente com a minha pergunta, e eu senti o canto de sua bola se erguer levemente para cima em uma tentativa de sorrir. 

— Anda ouvindo histórias demais, Erith. Também acha que temos medo de prata?

Seu sorriso se aprofundou com o meu inevitável silêncio. Grande parte das minhas informações sobre tudo que não seja arqueológico vem de conversas em tavernas e boatos infundados. É claro, existem guildas de informações e livros em que posso conseguir algo concreto, mas meus interesses em investimentos na época passavam longe dos estudos. Tudo o que eu precisava saber era o local do roubo e a importância do item, e o segundo geralmente se distinguia pelo brilho ou intuição.

Um péssimo ladrão, sem dúvidas, mas eu tinha esperanças de ser reconhecido no futuro se conseguisse um grande roubo. E é claro, foi essa ideia que me colocou na situação atual.

— Nós lycans realmente obtemos vantagem na Lua cheia, mas a nossa transformação permanece exclusivamente sob nosso controle. Você pode não saber ainda, mas é muito comum que o exército realize missões noturnas em Lua cheia. As histórias não são totalmente infundadas, no entanto. Em uma ocasião ou outra, nossa transformação pode ocorrer involuntariamente.

— E quais seriam?

 — Quando um sentimento tão intenso causa descontrole emocional, é possível se transformar sem saber, e na maioria das vezes não é bonito. — A voz monótona de Helen parecia diferente desta vez, em um tom mais baixo que o normal. Não é possível notar algo diferente em sua expressão, no entanto.

— E a segunda?

— “Quando o alfa ordenar, todos na alcateia atenderão o chamado”. É a vontade instintiva dos corpos, algo imposto a nossa espécie desde o nascimento. — Com uma voz fria, minha companheira de grupo recitou o que parecia ser um ditado popular no reino Fenrir.

O som de sua voz era frio como o gelo, e eu comecei a me perguntar quais seriam os sentimentos dos humanos que avistaram centenas de lobos se aproximando do campo de batalha, prontos para oferecerem suas vidas em prol de seu líder.

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