O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 16: Parceira

Longos segundos se passaram antes que eu conseguisse sair de meu estupor. Essa situação é nova e inesperadamente estranha, mas deve haver um motivo para outro ser humano dormir no meu quarto em outro continente. O uniforme que ela veste não me parece ser novo, então ela não é uma recém chegada.

‘Agora que eu pensei melhor, eles me falaram que eu não era o único humano nesse lugar. Eu nunca pensei que a encontraria nessa situação, entretanto.’

No momento em que minha mente se esforçava para relembrar conversas anteriores, a garota na minha frente parecia ter notado a minha presença, uma vez que seus olhos tremeram levemente antes de se abrir de forma gradual. Eram olhos do mais profundo violeta, algo que eu nunca tinha visto antes. A princípio ela parecia ignorar a minha presença, mas a partir do momento em que percebeu estar acordada, seu semblante mudou de sonolenta para surpresa em um instante. Em um grande salto, ela se jogou para trás da pilha de palha que eu chamo de cama e tentou se proteger.

—  C- como você chegou aqui?!

— Essa fala é minha.

Pensei ter visto seu corpo tremer ligeiramente ao ouvir o som da minha voz, mas não sei ao certo. Agora que notei, eu ainda estou com a máscara de ferro em meu rosto, o que contribui para uma apresentação nada agradável. 

— Por favor, não me machuque. — Sua voz era trêmula e baixa, quase que um sussurro. Minhas dúvidas internas ferveram minha mente em busca de respostas, e eu quase que instintivamente me aproximei um pouco na direção da cama. 

Nesse momento, aquela pequena garota tremeluziu e desapareceu da minha vista, como um truque de mágica. O espaço em que ela estava a menos de um segundo atrás foi coberto por uma fina barreira translúcida, algo que mal consegui observar se não estivesse atento. No entanto, focar a atenção na barreira se provou um erro no momento em que eu senti algo afiado encostar levemente no meu pescoço. Com o canto do olho, notei que o objeto se parecia com uma fina adaga de aço negro afiada o bastante para ceifar a minha vida, segurada por uma garota de olhos violeta que me observava com um olhar gélido.

— Um movimento em falso e o seu sangue vai enfeitar a parede. — Aquela voz assustada desapareceu, se é que em algum momento ela foi real. 

Levantei minhas mãos para cima lentamente, aparentemente sem qualquer intenção de resistência. Meu corpo, entretanto, se ajustava levemente para um contra-ataque.

— Vamos nos acalmar por um momento, ok?

— Ou o quê? Você vai me mostrar as presas? Que cãozinho fofo. — Com um leve sorriso, a garota pressionou a adaga um pouco mais forte, e eu senti uma leve ardência em meu pescoço. Sem deixar que essa situação se prolongue por muito mais tempo, uma onda de mana irradiou do meu corpo para afastar a garota, algo parecido com o que eu vi Helen fazer com os orcs antes de invocar [Marte]. Não foi ruim para uma primeira tentativa uma vez que consegui afastá-la com sucesso, mas não consegui evitar a tentativa dela de cortar a minha pele, mesmo que seu ataque tenha atingido minha clavícula ao invés do pescoço. Ela desabou no chão com o impacto que a jogou um metro para trás, mas parece ter se recuperado rápido do baque. Desta vez, no entanto, eu não a deixaria me enganar de novo.

— Já se acalmou? Detesto mulheres dramáticas.

— Tenho certeza de que são elas que te detestam. — Uma nova barreira se formou entre nós, e eu não demorei a desembainhar a espada de mithril e me preparar para um ataque. Ele nunca veio, no entanto.

Quando eu me dei conta, percebi que a porta atrás de mim estava aberta, e parada ali estava uma pessoa que conheço muito bem. Minha caolha favorita me observava com a espada na mão com uma expressão cômica, no mínimo.  Seus braços estavam levemente cruzados com as mangas da túnica dobradas até a linha do cotovelo, e seu sorriso de escárnio eram plenamente inconfundíveis. Helen adentrou no quarto lentamente, sem que qualquer um de nós dissesse uma palavra.

— Por que não sai daí? Sabe que eu posso te ver. — Ela disse, seu olhar fixado no canto do quarto próximo a porta, coberto de poeira e teias de aranha. E ali, naquele espaço aparentemente vazio, uma barreira translúcida se desfez quase que instantâneamente, e uma pequena garota nos observava com uma expressão incrédula.

— O que você está fazendo aqui?

— Ele está com o uniforme da Zero, Evelyn. O que vai conseguir com esse seu showzinho?

— Não importa! Ele é como todos vocês! Monstros frívolos… só me deixem em paz! — As mãos de Evelyn seguraram o punhal com mais força, ao ponto de tremerem levemente. Ela claramente está num estado mental preocupante, mas eu sinceramente não sei dizer o que foi que a deixou nesse estado atual. Helen parece não se importar, no entanto, já que seu olhar se concentrou exclusivamente no punhal negro que as mãos da garota seguravam veementemente. 

— Você está enganada. — Eu disse antes das duas fazerem algo de que eu me arrependa. Desembainhei minha espada rapidamente para tentar apaziguar a tensão do ambiente, mas sem sucesso. Meu objetivo, no entanto, era pressionar as amarras da minha nuca uma de cada vez. Assim que a última amarra se soltou, a máscara de ferro no meu rosto se soltou instantâneamente, e meu corpo soltou um longo suspiro de forma involuntária. — Se o que diz fosse verdade, o que isso te torna?

Um silêncio absoluto se seguiu após isso, onde nem mesmo o sibilar dos ventos podia ser ouvido. Pela primeira vez, Evelyn estava realmente surpresa, seu rosto empalideceu e sua boca estava ligeiramente aberta. Helen não disse nada, mas havia algo em seu olhar que demonstrava certa satisfação com o desenrolar de tudo. Depois de longos segundos estáticos, Evelyn se aproximou lentamente de mim, talvez com medo de que o que quer que esteja diante de seus olhos desaparecesse se ela chegasse perto demais. Assim que seu corpo chegou a uma distância de meio metro, sua surpresa cresceu ainda mais. 

— Isso… não é possível. — Tenho a impressão de que Evelyn achou a minha presença neste lugar algo como uma magia de ilusão, talvez pelo agravamento de seu estado entorpecido. Sua mão trêmula se aproximou na direção do meu rosto, incapaz de enxergar essa situação como verídica. Assim que a ponta de seus dedos pálidos tocou levemente a minha bochecha, tudo mudou. Ela percebeu, naquele segundo, que não era uma ilusão ou sonho. Assim como eu, o choque de se encontrar com outro humano a atingiu de uma vez, e seus olhos pareciam cada vez mais húmidos. 

— Finalmente tive a chance de te encontrar, parceira. — Com o sorriso mais confiante que consegui performar, me apresentei para a talvez única pessoa que realmente compartilha dos meus sentimentos em relação a esse continente.

Horas após o encontro fatídico, decidi passar um pouco no refeitório com Evelyn para esclarecer um pouco uma curiosidade que ambos tínhamos um com o outro. O resto do grupo ainda não havia retornado da missão nas linhas de frente, então além de aranhas e os ratos do calabouço, estávamos sozinhos. O refeitório é composto por longas e estreitas mesas de madeira envelhecida e deformada, mas os bancos, igualmente de madeira, estavam em boas condições. O único sinal de iluminação eram as velas espalhadas pelas paredes e até mesmo acima das mesas, mas isso não era o bastante para afastar o clima mórbido e obscuro que esse lugar transmite. Me sentei em um dos bancos, prontamente com uma caneca de cerveja quente e um pequeno prato com sopa de ervilha.

A cerveja tinha um cheiro de trigo fermentado extremo, mas ainda é melhor do que a água que eles servem na prisão. Por outro lado, a sopa de ervilha tinha uma textura espessa e gelatinosa, mas estava quente e com um cheiro agradável, pelo menos. Não era a minha ideia de refeição decente que imaginei, mas é um passo adiante se comparar com a carne seca e pão mofado. O surpreendente, no entanto, era a jovem sentada à minha frente com o dobro de canecas da mesma cerveja, e a maior tigela de sopa que eu já vira. 

— Você tem o suficiente para alimentar três pessoas. — Comentei de uma forma descontraída, mas realmente surpreso por dentro. Evelyn é, até agora, o membro mais baixo da Zero, e ao mesmo tempo o de maior apetite. 

Ela não me respondeu, mas eu pude sentir uma certa vergonha surgir em seu rosto pálido. Por um breve momento, tudo o que fizemos foi saborear — na medida do possível — a refeição. Mesmo que minhas críticas aos alimentos sejam, de certa forma, justos e imparciais, minha fome  fez com que a sopa de ervilhas tivesse o melhor sabor possível.

— Como chegou aqui? — Ela finalmente falou, após devorar a tigela em uma velocidade notável. Seus olhos violetas me encaravam com um brilho estranho, algo que beirava a uma alegria incontrolável, mas acompanhada de uma certa incerteza.

— Sou um ladrão de tesouros antigos, ou pelo menos era um. Quando atravessei a ponte das lágrimas para encontrar algo interessante, nosso querido companheiro Geralt fez questão de que eu o acompanhasse até esta cela. — Respondi antes de beber mais um gole de cerveja. O gosto não era necessariamente ruim, mas um tanto forte demais para apenas uma caneca.

— Atravessou um continente em guerra para roubar? Que tipo de idéia é essa?

‘O tipo idiota, eu acho. Minha fome por reconhecimento ofuscou parte do raciocínio, mas isso não deixa a minha decisão menos imprudente.’

— Eu sei disso, ok? O que mais quer ouvir, que nunca mais irei praticar travessuras? 

— Sabe em que situação você está agora? Tudo o que esses idiotas querem é te empalar e estender a sua cabeça no topo dos muros. — As mãos de Evelyn tremeram levemente enquanto ela falava, e eu pude sentir uma leve manifestação de mana no ambiente.

— Eles não vão fazer isso enquanto formos úteis.

Seus olhos se ergueram para me encarar fixamente por um segundo antes dela soltar uma risada sinistra. Era leve, mas carregada por um pesar e raiva difíceis de descrever.

— Nós não somos realmente úteis, idiota. Somos cobaias, nada além disso. Somos ratos presos em gaiolas controladas por uma alquimista fria.

Todo esse tempo que convivi com Amélia, nunca a imaginei como alguém frio e sem coração. É claro, em nosso primeiro encontro ela mencionou a possibilidade de me enforcar como uma alternativa divertida, mas eu sinto que no fundo tal opção nunca me esteve disponível. Nem mesmo Helen pode se encaixar nessa descrição agora, já que seu comportamento é complexo e conflitante demais para ser catalogado como “frio”.

‘Espera, por que eu pensei na Helen agora?’

— Não acho que ela seja assim.

— E por que não? Seria porque ela te prometeu a liberdade? Ou você se interessou por ela?

— Pelos deuses, o que há de errado com você? Eu não me interesso por ela, mas ela realmente me ajudou nestes últimos meses.

Um silêncio se seguiu após a minha resposta, mas Evelyn ainda parecia enfurecida. A maneira que ela aceitou a situação é completamente oposta à minha, de maneira a preferir se esconder ao encarar o destino que se assolou sobre nós.

— Seja como for, é estúpido o bastante para estar aqui. — Após longos segundos, ela voltou a falar, mas desta vez com menos intensidade.

— Isso faz de você estúpida também, não é?

—  Diferente de você, fui obrigada a estar nestas condições. Depois que o imperador começou a expansão pelo continente humano, meu irmão tentou impedir que nosso reino fosse conquistado e se juntou ao exército. Não demorou muito para sermos completamente derrotados, mas eu consegui fugir antes que o exército imperial chegasse em nossas portas. — Seus olhos se fecharam enquanto ela me explicava, talvez por se tratar de um assunto quase recente. 

Inicialmente, o continente humano era dividido por diversos reinos independentes. Guerras eram frequentes, mas alguns reinos conseguiam manter certas relações diplomáticas. Entretanto, quando a bandeira do império surgiu, todos os reis foram forçados a dobrar o joelho e se submeterem ao imperador. Essa campanha levou a anos de guerra e a morte de milhares, mas no fim, o continente foi completamente anexado.

— É por isso que fugiu para cá?

— E para onde mais seria? O continente inteiro abraçou o império agora, e não vai demorar para que esse aqui siga o mesmo caminho. Inicialmente, meu plano era ficar sozinha nas florestas, mas é impossível escapar dos lobos e elfos num terreno desconhecido. 

Odeio admitir, mas ela tem razão. Depois da conquista do continente, a influência do imperador era soberana em todos os aspectos. Era impossível fugir para sempre, e não havia formas de suprimir a presença de tal figura nos corações humanos. A única forma de ficar livre é abandonar tudo e recomeçar em outras terras longe de seu reinado.

Mas quanto tempo até não haver mais nenhum lugar assim?

— E o seu irmão?

Senti o olhar de Evelyn ficar mais frio na medida em que seu rosto endureceu. Falar do irmão trouxe lembranças negativas para ela, mas pode ser um primeiro passo para ela entender que se esconder para sempre não vai ajudá-la. Na verdade, se eu jogar direito, posso fazer com que ela me ajude.

— … O imperador o matou, pessoalmente.

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