O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 3: Zero

Meu corpo está entorpecido, mas ainda sinto a dor que cada fibra dele vivenciou, com metade do meu rosto dormente e um galo que surgiu na parte de trás da cabeça. Meus olhos estão abertos, mas tudo o que consigo ver nesse momento é a escuridão. Algo que penso serem correntes parecem prender minhas pernas e braços em uma cadeira que me impede de sair, não importando a força que exerço.

“Fui capturado? Onde é esse lugar?”

Na medida em que minha mente volta a funcionar corretamente, percebo o quão ruim é a minha situação. Não tenho direito nem ao menos a um julgamento, casos como o meu resultam em enforcamento imediato. Só em pensar no que os elfos planejam em fazer com a minha alma fico assustado, não tendo alternativa senão imaginar as possibilidades. Assim que senti que minha mente me levava a outro lugar, ouvi o som de uma pesada porta se abrindo e a luz invadir este lugar desconhecido.

Fui cegado momentaneamente pela claridade repentina, mas meus olhos ainda conseguem reconhecer que quem se aproxima é uma mulher, seguida por dois homens que julgo vestirem armaduras pela movimentação pesada e o barulho de metal.

Os homens carregam grandes tochas, o que me permitiu observar tudo com um pouco mais de clareza. Não há muito o que dizer sobre eles, além das armaduras de placas que carregam um símbolo que não consigo reconhecer imediatamente. No entanto, com a mulher é diferente. Cabelo loiro ondulado, uma pele limpa e clara que deixava óbvio sua descendência na nobreza e um par de olhos dourados frios o suficiente para congelar a alma.

Uma lycan da alta classe.

— Bem, vejamos o que temos aqui. O que está achando da sua hospedagem?

— Até aqui, tudo ótimo. Pelo visto, tem até serviço de quarto. — Eu já vou morrer mesmo, não importa o que falo ou deixo de falar de agora em diante. Surpresos com a minha resposta, a mulher ergueu as sobrancelhas levemente antes de soltar uma risada leve e espontânea, o que impediu os soldados de avançarem em minha direção. Sua voz era doce, carregada até mesmo por uma inesperada gentileza natural.

— Haha! Bom, acho que mereci essa. É um prazer te conhecer, me chamo Amélia.

E ao dizer isso, Amélia ergueu levemente a mão para um comprimento, ignorando o fato das minhas mãos estarem presas na cadeira. Suspirei levemente antes de responder com um breve aceno de mão.

— Eu sou Erith, e o prazer é meu. Me diga uma coisa milady, o que alguém como você faz visitando um vagabundo como eu?

— Não está vendo meu uniforme? Meu objetivo é analisar as causas do incidente de ontem. — Amélia se aproximou rapidamente, e só assim consegui observar sua figura por inteiro. Seu sobretudo militar era da cor negra, provavelmente de lã. Devidamente abotoado e ajustado para um evento importante, os reluzentes botões fechavam seu contorno perfeitamente para exibir sua figura esguia e encantadora. Em seu peito havia o mesmo símbolo dourado das armaduras dos guardas, uma cabeça de lobo bordada em tons dourados com uma coroa acima de sua cabeça, exibindo as presas em tom de ameaça.

— O exército lycan, que ótimo. Seu cachorrinho rubro não te contou o que aconteceu?

— É claro que contou, mas algumas coisas ficaram de fora. Por exemplo, como você conseguiu descobrir a localização de uma ruína élfica e quebrar a barreira? 

Responder honestamente é praticamente uma confissão, não que isso faça diferença a essa altura. Olhei diretamente em seus olhos, que já não pareciam mais tão frios.

— Ficaria surpresa com a quantidade de pergaminhos humanos que podem desfazer feitiços de runa hoje em dia, ainda mais as barreiras arcaicas. Os elfos se preocupam tanto com a própria história que não querem mudar os métodos antigos, e isso é o que vai fazer com que vocês percam a guerra.

— Bem, encontramos estes pergaminhos na sua bolsa de viagem, então eu preciso te agradecer por trazê-los. Como achou o lugar?

— Muitos relatos, por assim dizer. É uma ruína bem próxima da fronteira, o que esperava?

Amélia suspirou pesadamente, compreendendo o que eu quis dizer. A fronteira entre os continentes não era tão próxima da ruína um ano atrás, o que significa que os elfos estão perdendo terreno gradativamente. 

— Você se lembra do que aconteceu depois da luta com Geralt?

Sinceramente, o que eu vi me fez duvidar da minha própria sanidade. Aquela criatura ou o que quer que seja não parecia real, pelo menos não na minha concepção de realidade. 

— Não, eu não me lembro.

Ela parece insatisfeita agora, franzindo levemente as sobrancelhas. Talvez esteja pensando que é uma mentira, e ela está certa.

— Você foi possuído, mas ainda não sabemos a causa. O espectro que tomou posse do seu corpo ainda está aí dentro, mas parece que você recuperou bem o controle.

Não consigo esconder meu choque ao ouvir isso, novamente visualizando aquela coisa em minha mente. Se tudo o que vi foi real, então realmente existe um monstro que espera pacientemente em meu subconsciente para tomar de volta o controle do corpo.

“Não foi um delírio? Como algo assim pode existir?”

— E como vocês derrotaram ele? Aquele rubro fez isso?

— Por sorte, nosso rei decidiu responder ao pedido de reforço de Geralt em meu lugar, ou então as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Assim que você conseguiu o controle de volta, desmaiou e imediatamente foi trazido para cá. — Amélia agora se encontra a apenas meio metro de distância de mim, seu cheiro me traz a sensação de estar deitado em um campo cheio de flores com o aroma de mel.

— Isso explica as correntes. E o que vai acontecer comigo agora?

Ela não respondeu, apenas continuou olhando em meus olhos como se estivesse esperando por alguma coisa. Assim que a situação parecia se encaminhar para uma direção desconfortável, Amélia colocou uma mão no bolso esquerdo do casaco e retirou um fino bracelete de bronze, ornamentado por faixas compostas por figuras hexagonais em sequência, uma espécie de padrão, e enfeitado por uma pequena pedra avermelhada no topo. Sua outra mão retirou um pequeno e prateado anel que conheço muito bem, o mesmo anel que me ajudou em meus furtos durante toda a minha curta carreira.

— Existem dois caminhos a se seguir de agora em diante, Erith. O primeiro é o caminho em que você é condenado por seus crimes e morto sem cerimônia, mas eu posso garantir que será indolor. Tanto você quanto o espectro seriam extinguidos do mundo e seria uma dor de cabeça a menos para todos nós. Se quiser escolher isso, pode pegar o seu anel de espaço oculto de volta.

E ao dizer isso, ela estendeu a mão que segurava o anel perto o suficiente para que eu conseguisse pegar, mesmo com a interferência das correntes. Talvez esta seja a melhor oferta, isso se ela estiver falando a verdade sobre a morte indolor. No entanto, continuei sem me mover.

Amélia parecia feliz ao perceber isso.

— A segunda é um pouco mais arriscada, mas eu garanto que vale a pena. Como você parece saber, nossa situação está um pouco complicada. Nesse momento, precisamos mais do que nunca de informações sobre o inimigo, e você pode nos ajudar com isso. Se trabalhar para o exército lycan como espião e fornecer informações da capital, o reino se responsabiliza por você e te concede a tão sonhada liberdade. O que acha?

Uma outra mão foi estendida, segurando o bracelete de bronze. Pensei em perguntar o motivo de precisarem de mim para conseguir informações, mas eu já sabia a resposta.

A fronteira do império humano não pode ser atravessada por ninguém que não seja humano, por conta da gigantesca barreira invisível chamada de “domo” barrando a entrada de quem não corresponde ao sangue da raça humana. A única fraqueza da barreira é a existência dos mestiços, mas não existem casos de mestiços humanos registrados em toda a história. 

— E como espera que eu consiga? Caso não saiba, não são todos os humanos que podem conseguir informações confidenciais do exército. Quer que eu apenas peça com jeitinho?

— Não se preocupe tanto, eu cuidarei disso. Vou treinar você, o bastante para se passar perfeitamente como alguém influente da capital. E se aceitar, posso tentar dar um jeito no seu problema com espíritos. — Seu rosto descontraído quase me fez perder o foco novamente para observar sua beleza, mas me esforcei para continuar.

Se eu realmente conseguir algo assim, estarei livre. No entanto, provavelmente serei conhecido como a desgraça da raça humana ao invés de um ladrão galanteador famoso. Realmente valeria a pena arriscar tudo?

Acho que o risco é válido, se ele significa retomar a plena autonomia do meu corpo.

— Como vai me ajudar? — Decidi chegar ao centro de tudo, algo que sinto que vai decidir meu destino de agora em diante. Uma resposta positiva o suficiente é o que vai me fazer atravessar o inferno da guerra do Inverno e voltar para casa vivo, ou morrer tentando.

Amélia procurou algo em seus bolsos novamente, me dando a confirmação de que cada resposta minha era algo que ela já esperava ouvir. O que entrou em minha visão foi um colar prateado e fino, feito com pequenos grilhões que se completavam perfeitamente, além de um medalhão que carregava a forma de uma estrela de quatro pontas em volta de um círculo, tão perfeitamente polida que era possível enxergar meu próprio reflexo.

— Isso é um medalhão espiritual. Serve para aprisionar os espíritos parasitas no seu subconsciente, uma prisão perfeita. Enquanto você usar isso, ele não pode controlar o seu corpo. É um artefato extremamente raro, quase me faz questionar se você vale o esforço.

Aí está, uma resposta positiva. Se tudo ocorrer bem, terei apenas que me acostumar a viver com essa coisa no meu pescoço o dia inteiro. Finalmente encontrando uma luz no fim do túnel, suspirei pesadamente e relaxei os músculos.

— Como posso recusar uma oferta tão tentadora? Eu aceito.

Sorrindo, Amélia se aproximou do meu braço direito e inseriu o bracelete no meu pulso, que imediatamente se fechou em volta da minha pele. Uma crescente sensação de ardência surgiu, me deixando minimamente desconfortável. Assim que a sensação parecia estar diminuindo, Amélia estava retirando as correntes do meu corpo,finalmente me permitindo me movimentar livremente.

— Esse bracelete é uma restrição mágica. Se ele sentir qualquer tentativa de traição ao criador da restrição, a medida de punição é ativada e uma agulha contaminada por uma coisinha chamada “veneno de Basilisco” vai perfurar a sua veia. Esse veneno paralisa seu coração completamente, e o resultado disso é óbvio. — Como se não significasse nada demais, Amélia me explicou os efeitos do bracelete monotonamente enquanto colocava o medalhão em meu pescoço, ignorando meus arrepios repentinos. Assim que terminou, um sorriso satisfeito surgiu em seus lábios.

— Parece ótimo. Agora, vamos conhecer seus colegas de equipe?

— Existem outros como eu? Justo quando pensei ser especial. — Trabalhar em equipe nunca foi meu forte, especialmente uma equipe de outra espécie. Amélia balançou ligeiramente a cabeça antes de começar a caminhar em direção à saída, sinalizando para acompanhá-la.

— Eles são o mesmo que você, o tipo mais baixo que esse mundo oferece. No entanto, quando você os conhece bem, são uma verdadeira família. Cada esquadrão é condecorado de acordo com o nível de valiosidade, então pensei que “Zero” era um nome adequado. — Não havia o menor sinal de sarcasmo em sua voz, nem mesmo superioridade.

Assim que saímos, percebi que o lugar onde estava era uma cela fechada de uma masmorra. Suja e mal iluminada, todo o terreno era feito de pedras de calcário e portas de ferro reforçadas, onde não se é possível sequer determinar se havia amanhecido ou anoitecido.  Não se preocuparam em construir um lugar com anulação de magia, as correntes já fazem isso muito bem. Caminhamos por longos minutos até chegarmos em uma porta diferente das demais, com maçaneta e sem reforçamento. Ouvi várias vozes entusiasmadas se sobressaindo umas às outras, o que julgo serem meus companheiros de trabalho de agora em diante.

— Pronto para as boas-vindas? — Amélia me perguntou, não esperando minha resposta para abrir a porta. 



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