O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 47: Cartas do Abismo

— Kayn, você fará lances para este também? — perguntou Rio. Acenei com a cabeça, concordando. — Nossa! Soube que você recebeu alguns pontos quando brincou com o Leifr, mas isto está além das minhas expectativas.

— Concordo — começou Una. — Levando em conta as roupas que você usava antes... — Deu uma pausa e coçou a cabeça, antes de concluir: — Sei que não é correto julgar pela aparência, mas era bem estranho lembrar que você usava trapos enquanto tinha tantas moedas.

Amigavelmente abri um sorriso de disfarce. Minhas mentiras estavam começando a se acumular e a atrapalhar minha vida, logo isso se tornaria difícil de administrar. O mais engraçado? Eu não demorei nem um segundo para pensar numa nova narrativa de ficção.

Eu provavelmente seria um péssimo escritor, já que essa não era muito diferente das mentiras anteriores. 

— Meu mestre me deixou um tesouro com a sua morte, mas, como vocês devem lembrar, estou perdido no meio do nada. Tinha dinheiro, mas não podia gastá-lo, assim como um pirata preso numa ilha deserta com um baú do tesouro. Não comprei nada inicialmente, pois não sabia quanto valia.

Os dois escutaram quietos. Rio me pareceu aceitar bem; Una por outro lado me lançou uma expressão estranha de desconfiança, como se tivesse engolido algo difícil. Por isso eu preferia pessoas como o Rio. 

Gentis e burros, do jeito que eu gosto.

Rapidamente deixei de prestar atenção nela. Se eu tivesse sorte, ela apenas esqueceria desse assunto. Ainda assim guardei bem o ocorrido. Logo esse negócio de meu “criador” pararia de funcionar.

Os dois primeiros Anões foram vendidos rapidinho. Um foi comprado pela bagatela de 65.000 moedas e o outro por 70.000. O terceiro era o que eu queria e também minha provável última compra da noite.

Decidi partir o mais rápido possível desse evento. Voltaria para minha masmorra no próximo dia e vou tentar passar o resto dos meus dias enrustido dentro daquela floresta. Completamente escondido do mundo. 

Ser bucha de canhão numa guerra que não é minha não é um dos meus maiores desejos afinal.

Conseguia quase prever o futuro quando me imaginava dormir e ter pesadelos com o rosto do Ashura, Azaias. As palavras dele ainda ressoariam na minha mente: Rei dos Mestres! O Mestre entre os Mestres... Conversa para boi dormir.

Retirei esses pensamentos da mente e virei minha atenção para o leilão. O emissário do abismo anunciou o começo dos lances para o terceiro anão.

— 60.000 moedas! — exclamei.

— 60.000 moedas para o mestre Renascido! Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe...

— 61.000 moedas!

Fiquei surpreso. Uma voz irreconhecível surgiu de um lugar distante. Tentei descobrir de onde, ou de quem era, mas me pareceu impossível.

Tentei por mais um tempo, mas uma vertigem muito similar àquela que surgiu no bar da medusa voltou a me abater. Então era dessa forma que protegiam as identidades dos participantes, né?

— 61.000 moedas para o mestre das Sombras! Dou-lhe uma...

— 62.000 moedas! — lancei a braba. 

Porém, antes mesmo de poder voltar a relaxar, escutei outro soar:

— 80.000...! 80 mil moedas!

Estava começando a me irritar. Quem era esse cara? E como ele sabia que esse era de longe o melhor dos anões? 

Aquele pequeno homenzinho possuía suas habilidades de Manufatura e Ferraria próximas do nível máximo, além de ter magia para localizar minerais e uma habilidade de nível Especial para a criação de armas: Mestre Forjador.

Seu valor era pelo menos 10 vezes maior do que o anunciado. Um goblin que pudesse carregar uma arma lendária poderia matar monstros classes acima e sair sem nenhum ferimento.

Somente por estar vestindo uma boa armadura, conseguia imaginar um goblin dando um joinha e ainda coçando a bunda depois de tomar uma porrada de um ogro.

— 100 mil moedas! — Eu não perdi meu tempo.

— 110 mil moedas!

— 120 mil moedas!

— 130 mil moedas!

Nossa disputa continuou. Eu não poderia passar muito desse valor sem que os dois do meu lado desconfiassem ainda mais de onde tirei minhas moedas, então declarei:

— 150 mil moedas! 

Após meu último anúncio, a voz se calou. Soltei um suspiro de alívio e me joguei na cadeira, enquanto comentava de mentira:

— Minhas moedas acabaram. Se ele faz mais um lance, eu perco.

—Boa disputa, mestre Kayn — disse Rio.

— 150.000 moedas para o mestre renascido! Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe...

— Duzentas mil moedas! — exclamou a voz desconhecida.

Pisquei três vezes e balancei a cabeça inconformado. 200 mil!?

— Há! Há! Há! — riu o troll da montanha. — Parece que você perdeu.

Fiquei uns segundos um pouco pasmo, mas larguei de mão.

— É, eu perdi.

— Na próxima você consegue. — Una me confortou.

Sem mais nenhum lance, o anão foi vendido para o misterioso mestre das Sombras. Bati o pé irritado. Quem era esse cara? Como ele sabia que o anão era uma galinha dos ovos de ouro ambulante? Quem era ele? 

Suspirei. Comprei o quarto anão que era o segundo melhor deles e me contentei.

Passou-se certo tempo e nada mais de muito interessante surgiu. Comparado aos itens, monstros e criaturas que valiam milhões e bilhões, nada mais me interessou.

Meus olhos começaram a pesar enquanto Wilbur anunciava outro item qualquer.

❂❂❂

O ambiente era obscuro, como o próprio breu. Paredes escuras de pedra por onde escorria infiltrações e a  iluminação que havia advinha de uma pequena fogueira de galhos secos disposta no chão.

Eu estava sentado sobre um tronco enquanto mastigava algo ruim.

Conseguia ouvir o bater dos ossos, o ranger dos dentes, grunhidos horríveis; uma umidade ainda permeava o ar, abafando o ambiente e tornando-o difícil de se respirar.

Minha respiração era pesada e deixava escapulir um vapor esbranquiçado que fugia da minha boca. O calor da fogueira também escapava do meu corpo. Contudo, mesmo nesta circunstâncias, naquela situação precária, sentia-me quente por dentro.

Havia além de mim naquele ambiente inóspito mais duas sombras ocultas no breu. Riam e conversavam entre elas.

Kayn, chamava uma voz confortável, Kayn...

Kayn, clamava uma voz amigável, Kayn...

❂❂❂

Kayn, mestre Kayn, o evento terminou. 

Abri meus olhos devagar. Deparei logo com o rosto da sereia e do troll. Ambos me esperavam.

— Ah, certo. Eu acabei caindo no sono.

Levantei da cadeira e segui a multidão para fora da sala. Lembrava que havia tido um sonho, o primeiro em muito tempo, porém não lembrava do seu conteúdo. Era um buraco completo.

Pelo menos não foi um pesadelo.

Chegando do lado de fora do leilão, paramos um lugar mais afastado.

— E então, mestre Kayn, nos veremos amanhã? — perguntou Una.

Expliquei para eles que sim, mas seria uma despedida, pois não permaneceria para os eventos subsequentes. Muita coisa estranha havia acontecido desde que cheguei até aqui. Se eu realmente quisesse seguir com a minha vida sem mais problemas, era melhor passar despercebido.

Eu já me mostrei demais, apesar disso. 

Troquei mais algumas palavras com os dois e os dei um boa-noite. Eles partiram para seus assuntos e eu segui para o quarto com Cristal e Natália.

— Então vamos para a masmorra do mestre amanhã? Estou ansiosa... — comentou a vampira sorrindo.

— Não crie grandes expectativas. Ainda sou um novato — respondi e prossegui, dando um passo atrás quando uma figura brotou do chão.

Era outro monstro sombra. A sua aparição me deixou alerta.

— Mestre Kayn, poderia me acompanhar? — perguntou a sombras sem imagem. — O senhor Wilbur gostaria de vê-lo.

Quase soltei uma gargalhada. E eu por acaso poderia negar ir de encontro com o emissário do abismo?

— Claro. Pode me guiar? 

A sombra então arqueou uma das mãos numa direção e seguimos ele. Era um local já conhecido, o mesmo salão onde conversei com o emissário pela primeira vez, mas desta vez estava diferente.

Era mais parecido com uma exposição. A parede estava completamente rodeada por escritos, cartas que foram emolduradas e colocadas como decoração do ambiente. Muito estranho para dizer o mínimo.

Um pouco curioso, eu me aproximei para ler uma das cartas

Excelentíssimo Imperador das Chamas.

Descobrimos há certo tempo que o senhor estacionou espiões dentro de nossas fronteiras. Entregamos de volta junto dessa carta os corações destes traidores. Espero sinceramente que o senhor não a receba durante uma refeição. Aviso-o que o estado de podridão dos corpos se deve ao fato de termos descoberto muitos meses atrás, o que nos deu tempo para os preparativos. Pode ser este um inconveniente para o senhor, porém nossas tropas já estão na sua fronteira neste exato momento. Caso essa carta esteja atrasada, ou nunca chegue até o senhor, deve-se ao fato de sermos rápidos em nosso ataque. Sem mais delongas, está carta é uma declaração óbvia de nossas intenções.

Atenciosamente.

Emissário da Escuridão, Wilbur.

Eu dei um passo para trás imediatamente. Era uma declaração de guerra. Conforme olhava para as paredes completamente cobertas por mais e mais e mais cartas, começava a sentir uma faca tocar minha garganta. Eram centenas delas.

— E essas são apenas as que os soldados conseguiram recuperar — Wilbur surgiu bem atrás de mim sem que sequer eu pudesse notar. — Na maioria das vezes, os inimigos transformam em pó minhas cartas.

Eu me virei devagar, enquanto segurava firme a respiração. A aura dele estava oculta, então a Mente Serena estava ainda sobre o meu controle.

— Ah. Eu entendo — respondi, sem ter muito o que falar.

— Relaxe, Kayn. Eu só queria mostrar minha coleção. — Ele se moveu para o centro da sala e levantou os braços, como se estivesse no palco de novo.  — Eu sou um artista. Assim como para vocês mestres os monstros são uma arte, para mim são essas cartas as minhas criações; essas declarações de guerra que assombram os pesadelos dos governantes. Essa última que leu, curiosamente, foi anterior a última que escrevi antes de evoluir, quando ainda era um emissário da escuridão. 

— Realmente ela é assustadora. Espero nunca receber uma.

Ele pareceu rir, não que eu pudesse descobrir com seu rosto sendo o crânio de um antílope.

— Mudando de assunto. — Ele chegou mais perto de mim. Inconsciente, dei um passo para trás. — Soube que é um lanceiro. 

— Sim, eu tento. — Eu nem precisava pensar muito em como ele sabia disso. Eu havia feito um certo showzinho na arena no dia anterior.

— Então, veja, eu vi potencial em você e gostaria de presenteá-lo.

Wilbur levantou a mão e estalou um dedo. O chão tremeu um pouco quando um buraco negro que parecia levar para outra dimensão surgiu. 

Cristal se escondeu atrás de mim num reflexo e a vampira caiu no chão.

Lentamente começaram a surgir mãos horripilantes e deformes que se agarravam ao cabo de algum objeto. 

Quando terminou de surgir, pude ver sua forma. Era uma haste de material negro, ornada com pequenos símbolos que pareciam os gritos de sofrimento dos mortos. No final da haste, tinha uma peça de metal atravessada por um machado em forma de meia-lua. Sua cor era tão escura quanto o corpo do emissário.

— Essa, mestre Kayn, era a arma que usava nos tempos de guerra em que eu servia como o mensageiro do meu senhor Azaias.

 Ele estendeu a mão, tentando tocar o cabo. As mãos negras se moveram tentando interceptar, mas foram completamente ignoradas pelo emissário do abismo.

Encostou no cabo negro e, de repente, as mãos atacantes pararam o seu ímpeto, congelando pouco antes de tocá-lo, desfazendo-se em pó. 

Com a alabarda na mão, pude ver todo o seu tamanho e resplendor. O tamanho dela era praticamente o dobro do meu. Ele brandiu levemente, mas a onda de choque foi forte o bastante para me fazer deslizar alguns metros para trás.

— Mestre Kayn, este é meu presente para você. A alabarda se chama Noite Obscura. — Num único passo, ele estava na minha frente. Quando soltou a alabarda nos meus braços, pude sentir o seu peso gigantesco. Mal conseguia mantê-la com ambas as mãos.

Sentia uma estranha energia surgir da haste. Um gigantesco clamor por sangue parecia gritar da arma, falando diretamente comigo. 

— Senhor Wilbur, agradeço a consideração, porém acredito não ter a capacidade para portá-la. 

— Deixe disso. — Ele mais uma vez pegou a lâmina e a sensação sumiu. — Um dia você será capaz de domá-la. Ela estava pegando poeira de qualquer forma. Será enviada junto dos itens que o senhor comprou, mestre Kayn.

Abri um sorriso nervoso. Aquele era realmente um presente incrível que poderia valer muito mais do que eu poderia pagar, porém... qual a razão para ele? Por que me dar suas própria arma?

— Desconfiado? — Ele parecia poder ler minha mente. — Se quiser posso jurar em nome do meu mestre Azaias que eu não possuo segundas intenções, Kayn, longe disso. Estou presenteando você, pois quero ver o que fará no futuro. Como disse antes, ela estava pegando poeira de qualquer forma.

Mesmo desconfiado, não tentei negar outra vez. Se ele ficasse ofendido, eu poderia perder minhas cabeça. Digamos que eu não quero uma terceira vida.

— Eu agradeço então, senhor Wilbur. Quando puder, farei bom uso dela.

Assim que voltasse para casa usaria meus olhos mágicos para descobrir mais. Tentar fazer isso agora poderosa resultar na minha morte. Os olhos da ambição ainda eram uma habilidade que usava mana, portanto poderia ser detectado por alguém como o emissário. 

Wilbur então reabriu o portal no chão e colocou a alabarda lá, devolvendo-a ao seu lugar.  Enquanto isso, ajudei a vampira a se levantar. Depois disso, estava para me despedir.

— Até uma próxima vez, mestre Kayn.

A voz calma e amigável dele não combinava com aquela aparência diabólica, o que só deixava tudo mais estranho

—  Até, senhor Wilbur — respondi, com um sorriso nervoso, e deixei a sala. 

❂❂❂

Sozinho outra vez na sala, Wilbur sentou em um elegante sofá que estava disponível.

— Sangue de anjos e demônios, com o coração de um dragão. Acompanhado ainda por cima de uma criatura feita pelo próprio vampiro primordial... 

O emissário do abismo se levantou e caminhou contemplando sua parede de recordações macabras. Dentre os inúmeros registros, parou em frente a um espaço vazio.

— Espero que o senhor tenha razão sobre confiar neste ser, mestre Azaias. Apesar que, se acontecer doutra forma...  — Seu crânio de antílope, iluminado pelas chamas, pareceu sorrir por um instante. —Talvez eu possa aumentar minha coleção.

 

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