O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 14: Memórias de uma vida não vivida

Abri os olhos e contemplei uma amigável chama laranja ao teto. Ao meu redor estava um quarto com a mesma estrutura que o meu, mas radicalmente por... Espera, quê?

Esfreguei meus olhos e olhei para aquilo de novo. Não vi errado. Havia um arsenal inteiro de armas fixadas na parede. Katanas, arcos, aljavas lotadas de flechas, espadas curtas, adagas, machados de uma mão e um... revolver escuro? Existe esse tipo de coisa aqui?

Minha visão percorreu o cômodo. Em outra parede, prateleiras de madeiras suspensas seguravam frascos de diversas cores. Abaixo deles, havia uma mesa e cadeira iguais às minhas, mas essas ocupadas por uma jovem de cabelos ruivos que lia com certa concentração. Ou melhor, que estava lendo, pois seus olhos violetas agora me fitavam com um pequeno sorriso.

— Você acordou, Flamel.

Ela se levantou e veio até o lado da cama em que eu repousava. Tentei mover meu braço, mas estava dolorido e... Encarei a atadura ensanguentada no outro braço, que havia sido mordido. O pedaço que arrancaram dele vai voltar, né?... Engoli em seco.

— Está tudo bem. — Ela tocou minha pele próxima à atadura do braço com leveza. — Seu braço e sua perna vão se recuperar bem. Seu pescoço também. Tratei você com as melhores poções que tinha.

Fitei os olhos dela, que miravam nas ataduras. Mas minha pergunta era ainda além disso...

Por que diabos estou aqui?!

— É... Oi, Violette. — Sorri, meio constrangido. — Por que eu não estou tipo na... enfermaria?

— Sobre isso... — Ela se sentou de costas na beirada da cama ao meu lado, de forma que não conseguia ver seu rosto. — ...Você não tem achado a Academia muito estranha?

— Estranha?

— Sim. Primeiro, um monstro te perseguiu, matou um cavaleiro de nível médio e ainda ameaçou você e a Aithne. Nada foi feito. Embora digam que estão investigando, não vi ninguém nas áreas do incidente. Depois, hoje, te encontrei todo ferido na floresta...

O monstro que me perseguiu anteontem matou um cavaleiro? A Aithne também estava em perigo? Agora entendo melhor por que a Guinevere queria chamar a Aithne para conversar comigo, mas... se tudo isso for verdade, é de fato estranho.

— Não deveriam os grandes magos proteger a Academia? — disse eu.

Ela riu, a mão escondendo a boca mesmo que não estivesse vendo o rosto dela.

— Mais do que isso. O território inteiro da Academia é protegido por runas do mais alto nível que deveriam impedir a entrada ou surgimento de qualquer monstro. Também é impossível acontecer algo aqui sem que saibam, com exceção dos quartos, que colocaram runas de privacidade. Porém, aconteceram dois ataques seguidos... Também ouvi dizer que o ataque começou no seu quarto, o qual só pode ser aberto com a sua mana ou com a chave-mestra. Se quiser, posso te levar para enfermaria, só queria estar mantendo distância das instituições da Academia...

— Sem problemas, Violette... Não me lembro do que aconteceu nesse incidente que começou no meu quarto, mas vou confiar em você. Me parece suspeito também.

— Você não se lembra?!

— Não?

Ela me encarou em silêncio e seus olhos brilharam com magia, antes de se virar de costas de novo.

— Isso é... Entendo. Vou investigar isso. E... Flamel, o que te atacou na floresta?

— Ah...

Fiquei com vergonha de dizer que simples lobos quase me mataram. Para magos, mesmo os estudantes como Violette, cuidar de um lobo deve ser algo fácil. Entretanto, se a Academia for um lugar suspeito, não havia mais com quem contar...

— Se importa se contar tudo desde quando saí da enfermaria? Tem algumas coisas estranhas sobre meu quarto que queria pedir sua opinião também...

— Sem problemas, Flamel. — Ela olhou para mim e deu um sorrisinho.

Explicava-lhe tudo que aconteceu. Quando cheguei na parte do rio, porém, ouvi na minha mente:

Não conte sobre o garoto com quem conversou no rio, mas fale do que encontrou na floresta.

Segui a intuição, sem tempo para ficar refletindo sobre isso no meio da fala. Prossegui sobre a floresta e o menino que era ameaçado pelos lobos.

— Espera... Então você se pôs em um perigo tão grande para tentar ajudar o menino, mesmo que estivesse aquém das suas capacidades? — Sua voz tornou-se fria e séria pela primeira vez na conversa. Será que disse algo errado?...

— É... Agi muito por impulso. Desculpa. — Sorri com constrangimento.

— ... — Ela me encarou e seus olhos cintilaram com aquele brilho misterioso, antes de ela se virar de costas. Permaneceu em silêncio por um tempo.

— Por quê? — falou ela, finalmente.

— Por quê?

— Sim. Por que ajudou o menino?

Essa pergunta me pegou desprevenido, considerando o quão inteligente a Violette aparenta ser. Não era óbvia a resposta?

— Porque ninguém mais iria salvá-lo?

— ...

Silenciou-se a garota novamente. Estávamos tão perto um do outro, mas nossas mentes tão distantes. Não conseguia ter nem ideia do que se passava em sua cabeça, se fui eu que disse algo errado, se ela está juntando as peças do mistério que vivo, ou se ela não é confiável...

— E se você morresse? — falou-me ela.

— Eu... — Olhei para o teto. Meus olhos encheram-se de lágrimas. Não tinha uma resposta.

Ela fitou meu rosto, e seus olhos brilharam mais uma vez. Sua expressão se fez triste e... confusa? Angústia parecia exibir naqueles olhos que sugavam minha atenção. Tocou meu peito e o acariciou levemente com o dedão.

— ...O que você quer ser? — sussurrou com evidente hesitação.

— ...Não sei? Na verdade, me pergunto isso todos os dias. — Sorri em face da minha miséria.

— Não te interessa títulos, poder ou fama? — Seu dedão parou, embora a mão continuasse a transmitir seu calor ao meu peito.

— ...Não me interesso. Sempre quis ser reconhecido em algo, mas não uma fama vazia, “fama por fama”. Porém... — Minhas memórias da Terra retornavam com tamanha intensidade que tinha que me esforçar para meus olhos não desatarem em choro.

— Porém...?

— O mais importante é poder deixar algo de bom no mundo... Não precisa ser uma invenção ou grandes feitos, embora certamente não os rejeitaria. Mas... saber que toquei os corações que conheci, e que a minha existência pôde trazer algo de bom?

— Algo de bom?

— Sim. Abraços, consolos... Ou simplesmente ter ajudado em uma só decisão que pode ter mudado a vida de alguém?

— Então você é do tipo que se preocupa mais com as pessoas do que com a carreira?

— De certo. Mas também me preocupo com minha carreira...

A imagem do meu falecido irmão me persegue. Quero ser alguém grande, quero cumprir nossa promessa. Mas, também sendo sincero comigo mesmo...

Segurei a mão da Violette no meu peito e a acariciei suavemente. A face dela se abriu em surpresa.

— O que fiz pelas pessoas talvez sirva como meu advogado nas horas mais sombrias, quando me sinto culpado e frustrado comigo mesmo? — continuei e sorri. Uma lágrima desceu pelo meu rosto, o qual estava em chamas. Tentava muito, muito mesmo não chorar. Na verdade, eu mesmo não sabia disso. Sempre me culpei tanto, mas talvez... Não haja tantas razões para me sentir assim? Não cumpri nossa promessa, mas ainda fui uma boa pessoa...

Ela virou sua face para baixo, tornando-se penumbre contra a sutil luz alaranjada do teto.

— Se você morresse hoje, se arrependeria de algo? — Falou ela com dificuldade, como se algo bloqueasse a garganta.

— Certamente tenho muito do que me arrependeria. — A falta dos estudos para medicina, a lentidão e inquietação que deixei que me assolasse nesse mundo... O descuidado naquele dia com o Lucas... — Mas acho que morreria em paz. — Era um sentimento estranho. Uma resignação, uma aceitação que começava a cobrir meu peito.

Era uma verdade de que sempre fugi e que nunca percebi isso. Talvez gostasse de sofrer com a morte do Lucas. Talvez isso me confortasse de alguma forma, talvez me fizesse acreditar que assim o honro melhor, talvez fosse uma forma de vingá-lo ao me punir diariamente pelo meu descuido, mas... a verdade é que nada dessa culpa é verdadeira. Ele se sentiria orgulhoso de mim por tantos outros porquês diferentes. Essa culpa, esse "Lucas julgador" não existe.

Fechei os olhos. Conseguia imaginar Lucas aqui, do meu lado, segurando meu braço com carinho, e dizendo que me, mesmo não cumprindo nossa promessa e sendo muito pior do que poderia ser, ainda fui uma boa pessoa...

No fundo, sabia que também não era culpado pela morte dele, mas ainda me sentia assim. Talvez seja hora de seguir em frente. 

— Flamel. — Ela me chamou. Voltei minha atenção a ela.

— Oi?

— ...Obrigada. E... preciso de um tempo. Perdão.

Levantou-se, escondendo o rosto, suspirou e saiu do quarto. Após um minuto, meu corpo finalmente relaxou e me senti afundando mais na cama.

— O que aconteceu?... — sussurrei, refletindo sobre nossa conversa, sobre mim, sobre ela. Tinha tanto para se pensar...

Postergando um pouco as reflexões mais íntimas, me distraí encarando as armas na parede. Surpreendeu-me Violette ser assim, mas não me sentia ameaçado aqui. Faz sentido suspeitar de algo em relação à Academia... Se os magos supremos são tão poderosos, então deveriam saber sobre aquele menino e o incidente...

Contemplei a mesa em que Violette estava lendo quando acordei. Nela, papéis estavam emaranhados abaixo de um grosso livro de capa preta. Ao lado dele, porém, um brilho metálico escuro reluziu sob a luz da chama. Era uma adaga negra, cujo final do punhal se estendiam duas grandes fitas vermelhas. Era a minha adaga.

Ela deve ter vasculhado minha mochila. Deve ter visto o livro introdutório de feitiçaria... Será que suspeita sobre minha identidade, por ser um livro muito básico? E, afinal, o que são aqueles olhos dela? Magia?

Suspirei fundo. Muitas perguntas sem respostas... Olhei para minhas roupas e me vi vestindo algo largo mas chique. Camisa preta com gola vermelha que se abria em V com cadarços. Calça vermelha de um tecido tão macio e quente que deve custar meu rim...

Para ter me vestido, então ela me viu...

Suspirei de novo, meio envergonhado. Mas ela cuidou de mim, não tenho nada a reclamar...

Minha visão perscrutou as armas mais uma vez, até meus olhos pararem nas adagas pretas com fitas vermelhas. Olhei para a da mesa e para essas. Isso...

Meu coração acelerou. Eram idênticas. Isso significa que a carta...

Engoli em seco. Não... Podem ser outras coisas. Pode ser um ferreiro que fez esses equipamentos. Sim, ela pode ter comprado de alguma loja. Pode ser uma coincidência...

Relaxei na cama, cansado. Até quando ficaria aqui? As poções da Violette demorariam para fazer efeito?

Ahhhhhhhh. — Tantas coisas para se pensar sobre...

Apenas afundei a cabeça no travesseiro, puxei a coberta até o queixo e tentei dormir. Estava exausto. Meu corpo precisava...

Quando estava já cochilando, a porta do quarto se abriu. Acordei e vi Violette entrando com uma caneca. Ela sorriu de leve para mim e sentou-se na cadeira.

— Perdão pela demora — disse ela, alongando as costas, o que gerou um estalo bem satisfatório aos meus ouvidos.

— Sem problemas. Aliás, por que você tem tantas armas no quarto?

Quando lhe perguntei, ela quase cuspiu o gole que tomava da caneca. Engasgou e tossiu repetidas vezes antes de se recompor.

— Gosto de treinar com diferentes armas — disse ela enquanto limpava a boca com um sorriso envergonhado. — Nunca se sabe quando vai precisar de uma delas.

Encarei os armamentos de diferentes formatos e utilidades. A maioria parecia ser do tipo ágil ou usado sorrateiramente, como as adagas e o arco. Isso tudo para um mago...

— É possível usar feitiçaria com essas armas?

— Como você nem imagina! — Seus olhos brilharam de ânimo e se levantou. Pegou uma adaga preta e apontou para mim. — Se incomoda se te mostrar algo? Prometo não te machucar.

— Ok...

Ela deu um forte impulso para trás, aterrissou na parede com agilidade e pulou até mim, com tamanha pressão que meus cabelos e roupas se moveram contra a corrente de ar produzida. Em menos de um instante, a ponta da adaga repousava à frente da minha testa. Se ela tivesse se desequilibrado só um pouco, ou se quisesse me matar, eu...

— O que achou? — Violette riu e deu uns tapinhas na minha testa.

— Isso... — Meu coração ainda estava extremamente acelerado, e minha pele coçava com o suor surgindo. Um só instante foi o suficiente para ser muito mais mortal que os três lobos juntos. — Como você fez isso?!

Ela riu mais e se sentou na beirada da cama.

— Feitiçaria de ar. Dá para criar impulso, reduzir sons e visibilidade, até criar ilusões...

Enquanto a tensão reduzia em meu peito, sono começava a contaminar minha mente. Precisava descansar mais...

Senti minha mão sendo segurada.

— Descansa um pouco, Flamel. Vou estar aqui quando acordar.

Antes que pudesse responder, já estava dormindo.

....

Violette se levantou e olhou fixamente para Michael, a face dela séria, distante da Violette risonha de minutos atrás. Seus olhos brilharam com uma chama violeta e encararam o peito do rapaz por alguns minutos, antes de suspirar e entrar no banheiro. Em segredo, olhou para si mesma, mas tudo que via eram os olhos que a lembravam da pessoa que mais queria esquecer.

Suspirou. Com movimentos rígidos e frios, deixou as roupas caírem ao chão, revelando o corpo tonificado, fruto do treino disciplinado, e lascivo, presente da natureza que não se ocultava.

Estendeu as mãos e as fitou, trêmulas. Eram as mesmas mãos que...

Abriu o box e ligou o chuveiro quente, cuja água era produzida por uma runa na parede. O calor ajudou a relaxar os ombros tensos, mas...

Essa angústia jamais poderia tirar.

Sentia vontade de abrir, rasgar o peito e retirar de dentro de si esse tormento. Essa insegurança, esse medo... Essas memórias que sempre as assombrariam por toda eternidade.

Talvez... Talvez... Se tivesse vivido em um mundo melhor...

Se tivesse ela mesma sido melhor...

Mordeu os lábios e se refugiou nas águas que exalavam vapor, com uma mente inquieta que repetia incessantemente as palavras de Michael. Bondade, propósitos nobres, sorrir diante de arrependimentos...

Tudo lhe era estranho e desconfortável. Numa abertura impensada de sua alma, deixara o garoto tocar-lhe as motivações, sonhar com um mundo que ela não tivera, e que nunca terá... E nem que merecia.

No silêncio e na solidão do banheiro, sentiu todo o peso de sua existência caindo em seus ombros. Todos os “se”s que nunca teve, e que suas próprias escolhas sufocaram. Todas as memórias de uma vida que não viveu, mas que poderia ter vivido.

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