O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS


Volume 1

Capítulo 25: Sangue

Era um quarto bem-arrumado. Apesar da porta fechada e de não ter janelas ou dutos de ar, não era abafado. A temperatura era amena e suave, ideal para o corpo humano.

Notei que usava roupas largas. Abraçavam gentilmente minha pele uma camisa de linho preta e uma bermuda cinza larga de algodão que descia até pouco depois dos joelhos. Estava descalço. Não vi chinelo ou sapato algum por perto.

Sentado na cama, avistei um papel avulso em meio aos livros de um dos criados-mudos. Peguei-o e me surpreendi com o quão macio e grosso era ao tato. As laterais estavam bordadas com linhas douradas que lembravam uma estética real ou ao menos nobre. Comecei a ler o conteúdo...

 

~~~

Saudações, professora Hayek.

Seguindo nosso planejamento, gostaria de lhe pedir, primeiramente, que adicione o professor Zonto à equipe de investigação das falhas de segurança da Academia. Especialista no incipiente campo de estudo de Magia Negra, ele será capaz de averiguar traços de maldição, invocações e outras feitiçarias.

Adicionalmente, estarei enviando os seguintes itens ao seu escritório:

- Relógio de bolso de ouro, encontrado perto do corpo de Maria;

- Frascos de vidro vazios, retirados do quarto de Flamel;

- Adaga prateada usada pelo monstro;

- Peitoral usado pelo falecido cavaleiro Erick contra a criatura;

- Um pote de líquido preto encontrado na biblioteca. Supõe-se que seja o corpo do monstro liquefeito pelo fogo de Aithne.  

Faça uma avaliação desses itens e analise a hipótese de haver ocorrido uma invocação. Conte-me os resultados em uma nova carta.

Observação: após o estudo, destrua os objetos, sem deixar quaisquer rastros de mana.

Apreensivamente,

Marquesa Elizabeth Von Dusk

Diretora do departamento de Alquimia

Academia Real de Magia de Bauchir

~~~

 

A carta me trouxe certo espanto. Não sabia que a professora Hayek estava investigando o ocorrido, e muito menos que haviam pego os fracos de vidro da mesa do meu quarto. Então realmente andaram mexendo nele...

Apesar disso, o conteúdo da pesquisa seria interessante para mim. Talvez me desse alguma pista de como vim parar neste mundo. Valia a pena me manter de olho nisso.

O que mais me chamou a atenção, porém, foi o fato de o relógio de Maria estar incluso na lista, e que se pede para destruir todo o material após a investigação. Isso...

Dei um longo suspiro. Vi naquele lampejo na biblioteca o quão especial era o objeto para ela. Provavelmente ela conversava com ele todas as noites, reforçando a promessa que fizera com os pais... Não sabia o que o tornava tão especial para ela, se havia um significado mais profundo no material. Mas o mínimo de respeito seria encaminhá-lo de volta à família.

Além de tudo, com a carta eu conseguia deduzir melhor onde estava. Esse lugar talvez pertencesse à Hayek, como um quarto subterrâneo bem-protegido. No entanto, a depender da minha sorte — a qual tem se mostrado negativa —, esse poderia ser o quarto da tal de Elizabeth Von Dusk. Ou, ainda, a carta podia ter sido roubada. Se fosse esse o caso, então o lugar em que estava era...

Meu coração disparou ao perceber a gravidade da situação. Não podia perder tempo aqui. Pouco sei sobre onde estou. Preciso fugir, ou ao menos adquirir mais informações. Encarei a porta fechada do cômodo, imaginando o que me esperava do outro lado...

Levantei-me e caminhei até lá. Segurei a maçaneta e a fitei, hesitando. O medo sobre o que poderia estar do outro lado não era diferente do armário que vibrava no sonho. Porém não tinha tempo a perder. Determinei meu coração e abri a porta de uma vez.

Revelou-se para mim um corredor arredondado e irregular de uma caverna. Algumas tochas fracas e bruxuleantes nas paredes iluminavam-no, mas não o suficiente para retirar o espectro sombrio e vazio. As paredes rochosas só eram interrompidas por portas idênticas à minha, embora não soubesse se também eram quartos.  

Aquele lugar era muito diferente de tudo que já vi, quase como que retirado de um livro de fantasia. No entanto, são nos livros de fantasias que escondem os piores monstros e os perigos mais inesperados...

Timidamente, pus-me adiante, sentindo a poeira envolvendo a sola do pé descalço, e me esgueirei para fora do quarto, fechando a porta atrás de fininho. O corredor era frio, com uma temperatura quase agressiva. Estava perdido nele, com portas que pouco me mostravam o que escondiam.

Infelizmente, ficar parado só adiantaria para deixar que algum ser me encontrasse. Sem muita escolha, caminhei até a porta oposta à minha e rodei a maçaneta. Empurrei-a, mas não se moveu. Estava trancada.

Ao perceber que teria de me virar e encarar a caverna outra vez, meu corpo se congelou. Tudo estava muito quieto. Anormalmente silencioso. Algo poderia me espreitar sorrateiramente pelas costas.

Engoli o medo e me virei. Meus olhos navegaram por cada parte da caverna à procura de alguma coisa de errado, de algum monstro, mas nada havia. Suspirei com gratidão e me dirigi à porta ao lado. Estava igualmente trancada. O que será que são essas-

Ouvi um barulho vindo de uma das portas mais adiante, como se algo pesado se arrastasse pelo chão. Merda. Não bastasse a situação, agora deveria decidir se investigaria ou não o som — e essa escolha poderia ceifar minha vida.

As possibilidades do que haveria atrás daquela porta eram assustadoramente infinitas. Se fosse o quarto de Hayek, então algum professor ou diretor como Dung ou Tokewater poderiam estar lá. Contudo, se a carta tiver sido roubada...

Poderia me esconder de volta no quarto e esperar o tempo passar, mas nada me garantiria que isso só me colocaria ainda mais em apuros. Decidi que investigaria o som; qualquer informação extra era essencial à minha sobrevivência.

Meus pés me levaram até a porta. Quando agarrei a maçaneta e ia a abrir, minha mente disse severamente:

Não abra a porta.

Um calafrio contaminou cada fibra do meu corpo com tal aviso. Por um instante, minha mão ficou na porta, vacilante, sem reação. Eu quase abri. Quase me pus em perigo. Se o aviso tivesse vindo um segundo depois, eu...

Dei um passo para trás e encarei a porta. O que diabos se escondia lá trás? O que-

Crash. Alguma coisa de vidro se quebrou lá dentro. Ouvi um suspiro furioso que chegou a fazer a porta vibrar de tamanha potência.

Merda, merda, merda. Tinha que sair de lá. Agora. Olhei para os lados, mas o corredor parecia interminável nas duas direções. Escolhi a minha esquerda e corri para lá nas pontas dos pés, dando meu máximo para não emitir barulho. 

Segui pela caverna por longos minutos. Não importava o quanto me distanciasse, nada parecia seguro. Só então passou pela minha cabeça que poderia ter me refugiado no quarto, mas já era tarde. Não voltaria para lá perto nem ferrando.

O fluxo da corrida desesperada me levou até uma bifurcação. Os dois caminhos eram igualmente escuros e com menos portas; nada havia de diferente entre eles, não importava o quanto observasse. Segui pela direita. A esquerda costuma a ser a pior escolha nos jogos de terror, e não queria testar essa hipótese com minha vida.

O novo corredor em que adentrei era ainda mais frio e opaco. Com as panturrilhas cansadas, voltei a pisar com o pé inteiro, redobrando o cuidado para que os passos não fossem audíveis. As paredes se estreitavam e me comprimiam quanto mais andava.

Após certo tempo caminhando, encontrei uma porta à direita. Poderia ser outro perigo iminente, porém permanecer no corredor não parecia nem um pouco mais seguro.

Abri a porta e fui recebido por uma salinha, pequena o bastante para conter apenas três armários estreitos de porta única. Eram feitos de metal, tão enferrujado e antigo que sentia meu nariz coçou só de observá-los.  

Fechei a porta atrás de mim e os encarei. Explorá-los era perigoso, mas qualquer arma ou objeto que lá tivesse já me ajudaria a sobreviver. Puxei a primeira porta com dificuldade de tão emperrada que estava. O som horrível do metal rangeu agudamente, talvez para muito longe daquele minúsculo cômodo.

Cacete — praguejei em voz baixa e me desesperei.

O interior do armário estava repleto de prateleiras vazias. Todo esforço foi recompensado com nada. Agora que já havia feito barulho...

Agarrei o vão na superfície do outro armário e o puxei sem piedade. A rapidez do movimento fez o som ser menos estridente, mas igualmente agonizante. Dentro dele vi uma adaga enferrujada, cuja lâmina estava inundada por sangue seco, ou alguma substância parecida. Segurei-a. Não tinha o luxo de me importar com higiene, e nem de imaginar para que diabos a usaram.

Então encarei o último armário. Uma adaga já repousava na minha mão. Era o suficiente. E alguma coisa nele me dava arrepios. Podia só sair da sala e explorar mais o local até encontrar um lugar seguro, mas...

Já estava na merda, o que poderia piorar?

Abri a porta com ímpeto. O que tinha no interior era...

Uma aranha tão grande quanto uma cabeça humana, cor de madeira, peluda e maciça, com incontáveis olhos foscos mais negros que a escuridão. Ela imediatamente pulou e se agarrou ao meu rosto, as patas apertando as têmporas e as extremidades da mandíbula da minha face.

Gritei assustado e a agarrei com força entre as duas mãos, sentindo a textura grotesca de seus pelos. Envolvi-me com o feitiço de “fortificação corporal" e tentei arremessá-la para longe antes que picasse minha face. Porém, as garras estavam tão presas na minha pele que, quanto mais a empurrava, mais meu rosto sangrava e rasgava, até conseguir jogá-la de volta ao armário.

Fechei a porta e a tranquei. Tateei toda minha face, e, apesar dos cortes relativamente profundos e do suor que me encharcava, não senti nenhum buraco ou inchaço. Não fui picado. Meu coração ainda estava a mil. Escorei-me contra o armário com o braço tremendo e respirei fundo, recuperando o ar que perdi. Que merda foi-

Bum.

De repente, ela bateu contra a superfície metálica, criando uma protuberância na porra do armário. Aquela peste não era normal, iria derrubar o armário. Corri para fora da sala, apenas para ver a aranha arrombando-o como se fosse um exército derrubando um portão com um aríete. Instintivamente bati a porta de madeira com força para trancá-la dentro, o mais longe possível de mim.

O impacto produziu um estrondo que era impossível não ser ouvido. A tensão preenchia cada tecido do meu corpo e o fez frio e pálido, como se preparasse para perder pouco sangue se tivesse um membro cortado.

Corri pelo corredor que se tornava cada vez mais escuro e denso. A combinação da corrida intensa com a respiração ofegante que tentava prender era um martírio. A última coisa que tinha era ar suficiente para respirar.

Enquanto andava desesperado, deparei-me com outras bifurcações e até trifucarções. Embora corresse pela minha vida, tomei cuidado em memorizar o caminho, para posteriormente retornar ao quarto quando tudo se acalmasse.

Segui atravessando a caverna até sentir as coxas queimando com o esforço. Estava em um local mais distante, pensava. Então me permiti respirar profundamente e inalar grandes porções de oxigênio.

Ahhhhhh... — Mantive a voz baixa, mas impossível não suspirar com tudo.

Recuperando por tempo suficiente para uma dezena de respirações pesadas, prestei atenção em onde parei. Era um corredor semelhante ao inicial, porém muito mais irregular. Estalactites se formavam ao teto, tão finas e numerosas que ameaçavam ruírem-se em um temporal de pedra. O chão e as paredes eram pouco trabalhados e polidos.

Havia um baixo número de portas, cuja textura da madeira deixava exposta incontáveis farpas na superfície desgastada. Não queria ter o azar de tocar algo assim.

Andei adiante lentamente. Queria um lugar para me esconder por algumas horas, antes de retornar todo caminho. No entanto...

Um choro agudo se misturou ao silêncio de maneira quase imperceptível. Pausas curtas seguiam com rugidos penosos, como se buscasse forças para exteriorizar todo tormento que a pobre alma sofria. Era horripilante escutá-lo no meio da escuridão e do desconhecido.

O sofrimento estava escancarado no choro que se tornava mais cortante. A dor expressa era tamanha que não restava pena ou piedade, apenas horror, imaginando que inferno poderia levar alguém a se mergulhar num desespero tão intenso.

Algo no timbre das lamentações cortantes não me era estranho...

Sabia que não deveria procurar a origem. Podia ser uma armadilha. Não me assustaria se um monstro tipo o Pálido fosse capaz de atrair vítimas assim. Entretanto... Meus pés desobedeceram a precaução da mente. Era um movimento quase involuntário, como se meu corpo fosse possuído e feito agir contra minha vontade.

Meu coração protestava contra os passos que me aproximavam de uma das portas antigas e deterioradas, quase apodrecendo. Um chute bastaria para desmanchá-la. Perto dela, o choro se fazia ainda mais alto e intenso. Transmitia uma dor profunda, uma emoção tão forte e agonizante que nenhum ser humano jamais deveria sentir.

Apanhei a maçaneta cor de latão e a empurrei. O longo rangido se apossou do corredor como se lhe fosse dono. Dentro da sala, aguardava-me um breu denso e sufocante, como se adentrasse nas profundezas do oceano onde luz não penetrava. Não conseguia mergulhar naquela escuridão assim.

Andei pelas proximidades da caverna, roubei uma tocha da parede e retornei ao cômodo. Suspirei fundo e adentrei passos à frente. O brilho fosco alaranjado do fogo pouco a pouco revelava móveis quebrados e destroçados na sala. Quanto mais me aproximava do choro, mais destroços de madeira circundavam meus passos.

Cheguei ao final da sala, onde havia uma outra porta de ferro sujo. O choro estava logo atrás. Avancei para a abrir, quando senti meus pés pisando em algo molhado. Aproximei a tocha e... Era sangue. Fresco. Vivo. O cheiro era indistinguível. Uma vontade de vomitar dobrou meu estômago.

Atrás daquela porta repousava algo. Sangrando. Morrendo. Chorando. Gritando O que me esperava...

Em meio à poça de sangue, notei um papel submergido. Peguei-o, sujando os dedos de sangue, na esperança de me dar alguma pista. Estava muito borrado, algumas frases impossíveis de ler. Era uma carta que se seguia assim:

 

~~~

27 de Julho de 726.

Experimento com sangue de demô... N° 72.

Reação à dor: normal.

Mana: inexistente. Problema. Possíveis caus...

...Afinid... Element... A... 0... F... 0... A... 0... Ter... Inuman... Lu... 0... Tre... 0.

Órgãos funcio... co... humano.

... ... .... ... ... ... ... ... ... ... ...

Continua pensando e falando.

Crescimento está estag... 18 an... ... ... ... ... cor-po 12 a...

Testes de hoj...: teste de regeneração de...

Resultados pretendid:..........

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Academia Real de Magia de Bauchir

Zonto Nümberg

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O conteúdo...

Encarei o papel com expressão vazia. Não conseguia processar o que estava acontecendo. Aquele esperneio que estava ouvindo era de...

Socorro... — Ouvindo assim de perto, o tom parecia de uma criança. — Pur favor... Alguém...

O mundo ao meu redor havia se congelado. Aquilo era real. Um experimento. Humano. Com sangue de demônio. Atrás da porta. Na Academia Real de Magia de Bauchir. Reagia normal à dor. Passou por um teste de regeneração. Foi torturado. O sangue que manchava minha mão era dele. Isso era real. Era real...

A vitalidade do meu corpo havia ido embora como o vento. Restava apenas a carcaça fria que lia e relia a nota, ouvindo o choro do menino sem acreditar no que ocorria. Tinha que ser um sonho. Sim, não acordara. Permanecia dormindo. Tudo iria se acabar em breve. Fechei os olhos. Volte, Michael. Volte. Apenas volte ao mundo real e acorde. Acorde...

Por favorrr... — A voz do outro lado da porta suplicava com desespero.

Não era um sonho. Era real. Segurei a maçaneta da porta, mas...

Se arrependerá de entrar na sala. Nada poderá fazer, falou a minha mente. Ainda assim, não podia ignorar...

Pela primeira vez, fui contra minha mente e abri a porta, determinado que não poderia deixar de lado a pessoa que sofria tão perto de mim.

A sala atrás estava iluminada pelo fogo das tochas. No centro havia um garoto amarrado em uma cadeira de metal pelos braços e pernas. A barriga estava aberta, o intestino caído sobre as coxas. O sangue escorria até a porta que abri, até a carta, até a minha mão...

Não hesitei, e nem poderia. Fechei a porta, corri até o garoto e me joelhei diante dele. Ele olhou para mim. Implorou-me; agradeceu; chorou; e implorou. Nada especificamente implorava, só implorava, numa torrente incontrolável de lágrimas. Conseguia apenas imaginar o tormento de ter os órgãos expostos daquele jeito...

Trouxe a adaga enferrujada à corda da perna e a cortei. O cheiro podre das vísceras fez uma corrente de vômito queimar pela minha garganta, embora a engoli de volta. Que merda que fizeram aqui...

Cortei as amarras da outra perna. Levantei-me e o encarei mais perto. Era o garoto que salvei na floresta dos lobos. O que ele fazia aqui?... Ou melhor, o que ele fazia lá, naquele dia? Que-

Um barulho penetrou pela sala. Veio de onde entrei. Passos ecoaram pelo local. Um homem falou:

— Você fala muito. Cala a boca — pronunciou a voz de longe. A porta fechada não me deixava vê-lo.

Uma aura escura e sufocante contaminou a sala e ardeu meus pulmões ao ser inalada. Apesar da parede nos separando, a aura dele era insuportavelmente pesada. Meus instintos gritaram com desespero, como se pressentisse algo que chamar de monstro seria um elogio angélico.  

Se ele me encontrasse aqui, eu morreria ou poderia ter o mesmo destino do garoto. Olhei para o menino e ele me encarou. Nada falou, mas os olhos dele me diziam que ele já morreu, para eu fugir e me salvar. Lágrimas penderam dos meus olhos. Nada pude fazer. O homem vinha, me encontraria e me degolaria.

Corri até a lateral do cômodo, procurando me esconder, e achei um armário aberto. Contudo, a tocha permanecia na minha mão. Merda.

Sem saber o que fazer com ela, joguei-a do outro lado do cômodo. Caiu sobre uma poça de sangue, queimando-a por alguns instantes antes de se apagar. Não perdi tempo; entrei no armário e o fechei. Pude continuar vendo o menino por frestas na superfície metálica.

Entrou então na sala um homem de mantos roxos escuros como a noite. Carregava um bisturi ensanguentado e muito mais limpo que qualquer coisa dessa caverna. Olhou com desinteresse para o garoto, como um cirurgião que pouco se desinteressava pelo sofrimento do paciente.

— Pois bem. Vamos continuar.

Ele levou o bisturi para perto do menino e...

Assisti mudo e morto as cenas que se seguiram. Enquanto o sangue inundava o chão, meu rosto nunca esteve mais seco. Era incapaz de chorar, meus olhos fizeram de pedra como a parede.

Não sei quanto tempo passou. Em algum ponto o homem se cansou. Puxou um livreto do bolso e anotou muito. Rasgou a folha do caderno e colocou em cima de uma mesa próxima.

— Certo. Certo. Está na hora da nossa segunda bateria de testes. Você vai ser a nossa maior criação. Está no caminho certo. Muito bem. — Ele acariciou o cabelo da criança, pouco se importando de sujá-lo de sangue. — Apenas aguarde. Vou pegar mais ferramentas.

Largou o bisturi na mesa e andou até o armário em que eu estava. Veio muito perto. Segurei minha respiração, e pouco a pouco tornava-se impossível permanecer segurando-a. O homem abriu outro armário bem ao lado do meu e se demorou a pegar as ferramentas. Analisava uma a uma. Um alicate de cortar grama. Um martelo. Um machado. Um bisturi curvo. Um orbe de cristal... Pensava e refletia.

O oxigênio acabava. Meu corpo gritava por mais ar, mas não podia. Iria ter um destino igual ao do menino. Salvá-lo era impossível nesse ponto.

— Ahhh... Onde está o medidor de mana?

O tempo passava. Precisava respirar. Precisava... Meus olhos ficaram molhados com o sofrimento de sentir meu corpo se agonizando. O mundo que eu enxergava começava a ficar preto, meu coração batia mais fraco.

— Ah! Achei. Haha. Perfeito.

Ele finalmente se levantou e caminhou para fora. Porém, o ímpeto da falta de ar foi tão grande que suspirei fundo um pouco forte involuntariamente, fazendo um pequeno barulho. Ainda assim, os passos do homem imediatamente se cessaram.

— O que foi isso? — disse ele.

Senti meu corpo se congelando. Era o meu fim. Ele vai vir aqui e...

— Eu não aguento mais! — berrou o menino, e então tudo começou a tremer violentamente. O chão, a parede, o armário; tudo.

— Acalme-se, pirralho! Quer passar por tudo outra vez?

— Eu te odeio! Me mata logo!

— Seu!...

O homem se aproximou da criança com raiva.

— Espera... Você conseguiu soltar a corda sozinho? Vou ter que te prender com amarras piores...

Antes de ser torturado, o menino olhou para mim. Um pequeno sorriso se abriu. Ele se colocou em mais problemas para me salvar...

Ouvindo os gritos de agonia do garoto que logo se sucederam, coloquei a mão no armário e me preparei para sair. Foda-se. Não aguento mais. Vou impedir esse homem, eu...

É impossível ganhar dele. Deixará que o sacrifício do garoto por você seja em vão? Vai jogar fora tudo que a Violette, Guinevere, Dolgan e Hayek têm feito por você? É assim que quer jogar fora sua vida? A escolha de entrar na sala foi sua. Agora assista até o final. Esse homem é muito mais forte do que pode imaginar, falou minha mente.  

Queria protestar, gritar, mas não tinha o que ser feito. Cometi um erro ignorando a voz da minha mente, e agora pagava muito caro por isso.

Fechei os olhos e me recusei a assistir o que acontecia a seguir. Queria socorrê-lo. Queria destruir aquele homem. Fazê-lo se arrepender do que fazia. Contudo, a voz estava certa. A aura dele tornava clara a nossa diferença. Jamais conseguiria encostar um dedo nele.

Apesar de ter sido jogado em outro mundo, isso não era uma história de herói. Se o enfrentasse, não haveria uma sorte ou um poder especial que me faria virar a luta ao avesso e derrotá-lo. Se saísse do armário, seria meu fim. Minha morte.

Do outro lado da porta metálica, uma criança era torturada, e pouco eu podia fazer. Era fraco. Inútil. Eu morreria junto ao garoto. Que merda...

Rezei para que tudo acabasse. Para que tudo fosse um sonho. Tinha que ser. Tinha que ser...

Senti como se uma eternidade se passasse dentro daquele armário. Encolhi-me e descansei a testa nos joelhos. Cobri os ouvidos e tentei me concentrar no meu coração, numa vã tentativa de ignorar tudo.

Muito tempo depois o homem saiu do local. Se seguiram cinco, dez, vinte, trinta minutos. Uma hora, duas horas. Em algum momento fiquei seguro de que ele não retornaria tão cedo.

Saí do armário e andei até o garoto. Ele estava desmaiado, com cortes profundos e diversos por todas as regiões do corpo. Algumas linhas roxas foram esculpidas à força na pele dele, parecendo com runas mágicas.

Empunhei a adaga e ia soltar as cordas dele, quando percebi que agora braceletes negros prendiam seus membros. Tentei serrá-los, mas a faca se desgastava muito antes. Tentei cortar a cadeira, porém era igualmente incapaz.

Em um lampejo, as pálpebras dele se levantaram e vi suas írises castanhas. Tal como ocorreu com o relógio ensanguentado de Maria, enxerguei pelas pupilas dele cenas como um filme fragmentado. Vi o menino ainda mais novo brincando com um homem de cabelos pretos e ondulados, olhos cor de veneno esverdeado. Esse mesmo homem vestiu robes roxos escuros, iguais ao do torturador, e disse ao menino que retornaria em breve, que estava tudo bem...

O cenário mudou radicalmente. Uma extensa floresta surgiu diante dos meus olhos. Um número sete em tom de orquídea pairou sobre as árvores. A vista se distanciou até a paisagem se tornar como uma esfera, em que o número sete vibrava com força impetuosa.

Guarde bem essas imagens e saia daí, disse minha mente.

Engoli em seco e hesitei muito. Queria salvar o garoto dali...

Em um dado momento, o menino desmaiou, seus olhos se fechando na minha frente e talvez nunca mais se abrindo. Não pude fazer mais do que beijar-lhe a testa, prometer que voltaria e pedir que aguentasse firme por mim.

Com passos vacilantes e sentindo como se minha alma tivesse se esvaído do corpo, refiz o percurso de volta ao quarto. Atravessei os corredores iluminados por tochas bruxuleantes com uma determinação tão instável quanto elas. Não encontrei nenhum som ou pessoa. Acompanhava-me somente o silêncio e a solidão, e o sangue seco do garoto que abraçava minhas mãos.

Consegui retornar ao quarto e me fechei nele. Sujo como estava deitei-me na confortável e limpa cama. O enérgico e motivado Michael não estava lá mais. Apenas me encolhi e fechei os olhos. Inevitavelmente o tempo passou, e em algum momento o sono veio.

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