O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 27: Cérbero

A sala do Conselho Geral da Academia de Magia de Bauchir cintilava ao som de duas pequenas luminárias crepitantes, nas quais óleo queimava suavemente sem nunca ser consumido. Era insuficiente para trazer qualquer vida ao frio cômodo, muito distante do brilho e do calor dos dias de reunião.

Tal qual uma sala de cinema fora de uso, solitária e sombria, as cadeiras luxuosas estavam vazias — à exceção de uma.

Se alguém parasse para ouvir bem, perceberia que, no silêncio misturado ao farfalhar do fogo, um abafado tique-taque inquieto se reproduzia, que em nada combinava com a calmaria morta do lugar.

O tique-taque, produzido contra o braço acolchoado da cadeira, continuou, constante e nervoso. O dedo que o fazia, batendo ritmicamente contra a superfície, possuía um anel de ouro com detalhes esculpidos em esmeralda.

Então a porta se abriu, silenciosa como o vento. Dela se revelou a escuridão do corredor que desembocava na sala. Como se as sombras tomassem um corpo para si, trevas no formato de uma pessoa adentraram na sala, absorvendo e matando em si o fraco brilho das tochas, tal qual um eclipse.

O rapaz sentado, de cabelo preto lambido para trás e uniforme da academia, piscou os olhos e se esforçou para enxergar, mas pouco pôde penetrar nos mistérios daquela figura. O máximo que foi capaz de notar foram minúsculas faíscas roxas que circundavam as trevas como um halo inconstante de um anjo caído.

Da negritude surgiram duas mãos brancas, que subiram ao topo e puxaram algo como um capuz. À medida que ele subia, um rosto branco, com barba por fazer e lábios estreitos e indiferentes como uma lâmina impiedosa, se abria. O capuz, porém, parou no início do nariz, impedindo o jovem de ver os olhos do homem.

A figura misteriosa puxou uma cadeira e se sentou nela. Pelas formas difusas da escuridão, pareceu cruzar uma perna sobre a outra e se inclinar para no recosto da cadeira. As mãos descansavam juntas no colo, com uma elegância polida que resplandecia anos de uma educação rígida.

— A que devo vossa consulta, herdeiro do ducado Chavassac? — soou uma voz indefinida, que era como um coral atormentado e desarmônico de vozes incompatíveis em tons diferentes. Não se tinha certeza se era um ou vários seres coexistindo naquelas trevas, mesmo que se pudesse ver apenas um rosto.

— S-senhor. — O rapaz prestou uma reverência silenciosa que transparecia o nervosismo. — Pode me chamar de Cyle...

— Chame-me por Cérbero. 

— Cérbero... — Cyle engoliu seco e enrijeceu a barriga ante o frio que lhe subia.

— Devo repetir minha pergunta? — A irritabilidade nas palavras era tão sufocante e densa que o rapaz sentiu como se uma mão espremesse seu pescoço, pronto para sufocá-lo até a morte.

— Não... Perdão. — Cyle se ajeitou na cadeira e manteve postura ereta, firmando-se e perdendo o aspecto nervoso. Respirou fundo e prosseguiu: — Vim com um pedido. — Por respeito à figura antes de continuar, deixou o silêncio recair, aguardando por permissão.

— Prossiga.

O rosto de Cyle relaxou, e deixou escapar da boca um pequeno e quase inaudível suspiro.

— Tem um garoto da minha sala... — A breve calmaria começou a ser substituída por uma face sombria e amargurada. Veneno ácido e podre podia ser visto por entre o brilho cruel dos olhos. — Seu nome é Flamel. Ele...

Assim que falou o nome de Flamel, o ar em volta da criatura mudou. Cyle percebeu e se interrompeu. Logo uma pequena risada rouca e horrível, que parecia vinda direta do inferno, reverberou pela sala.

— Esse nome... Entendo. O que tem ele?

As sobrancelhas de Cyle caíram em confusão sobre os olhos que fitavam a figura com surpresa e incredulidade.  

— O senhor conhece Flamel?

— Sem conversas além do pedido. Seja direto — ordenaram as vozes.

Tal comando foi-lhe tão sufocante e pesado que sua boca se abriu e a garganta tornou a falar antes mesmo de decidir por isso, como se a figura fosse a personificação da morte e restasse apenas submissão na esperança de manter a própria vida:

— Ele me insultou e me humilhou. Ainda me chamam por um apelido que ele criou. Ele, um mísero barão, sem talento, um merda... Envergonha meu nome. Queria matá-lo, mas estou com receio do que isso poderia me causar. A professora Hayek me encara em toda aula mortífera como um leão, e o professor...

— O quer que eu faça? — as vozes cortaram a fala do rapaz.

Cyle engoliu em seco e começou a suar.

— Quero que você o humilhe... — Sentia o coração palpitando por expressar toda a raiva, mas a face se tingia de vermelho pela vergonha do quão baixo tinha de se colocar para isso. — Porém, não o faça no anonimato. Quero que todos o vejam como é: inútil e incapaz. Principalmente quem o acompanha. Ouvi dizer que haverá em breve o retorno da “Caça Na Floresta”. Faça-o ir onde não deveria. Coloque monstros que lá não estariam.

— Isso poderá ferir colegas que o acompanharão e que nada têm a ver com isso. Que pedido tolo.

— N-não precisa colocar monstros muito perigosos — Suor encharcava a testa de Cyle. — Apenas o suficiente para que seus companheiros sejam capazes de lidar, mas que se incomodem por terem que defender o peso morto do Flamel a todo instante. Além disso, a depender da equipe formada... O senhor poderá criar um verdadeiro inferno, que ainda todos sairiam vivos. Todos, talvez menos o Flamel...

— Entende a gravidade que é me expor? Qualquer problema com um dos pirralhos nobres de classes mais altas como a sua, e farão uma investigação mais avançada na Academia. Não que seja problema, mas é indesejável.

— Não há nada que eu possa lhe dar para compensar isso?...

Silêncio recaiu sobre o salão. Não importasse o quão impenetrável e imprevisível fosse a escuridão diante dele, Cyle sentia como se fosse observado por um predador faminto.

Sua alma. — A voz tornou-se mais estridente e agonizante, como gritos de almas carbonizadas eternamente pelo fogo. Algumas das vozes eram estridentes como se gritassem em dor e penúria.

Cyle segurou os braços da cadeira, preparando-se para correr por sua vida se fosse preciso. Arrependeu-se de ter procurado essa criatura. Sentia-se não só ainda mais humilhado por ter que pedir ajuda para lidar com Flamel, mas cada fibra do corpo clamava para que corresse dali o mais rápido possível.

Notando o desespero do rapaz, uma risada ainda mais infernal maculou o local, se divertindo dos sentimentos de Cyle.

— Acalme-se. Não farei isso. Me daria muito trabalho ter que lidar com um duque investigando a morte do filho...

Foi naquele momento que Cyle realmente entendeu a sua posição. Embora tivesse vindo buscar ajuda como um nobre que ordena o vassalo, descobriu que não passava de um brinquedo nas mãos daquele homem. Um brinquedo fácil de quebrar, de desprender a cabeça do corpo, como uma criança desmonta uma peça de lego.

Um medo até então desconhecido na sua existência recaiu sobre o peito. Pela primeira vez, não era ele que estava no topo do poder, ordenando e sendo favorecido, mas era ele mera presa perante a algo muito, muito maior que um título de nobreza. Encarava uma força mística, quase ancestralmente infernal, misteriosa como as profundezas do purgatório.  

Se devia algo à criatura, era servidão. Faria melhor de joelhos com a testa ao chão do que encarando-a de igual para igual numa ilusão que nem o mais louco bêbado acreditaria.

— Mas por que me pede isso? — falou o ser. — Sinto que tem algo de errado...  

Uma neblina densa e escura cobriu a sala como uma sauna. Não havia por onde Cyle correr. Estava cercado. Não pôde fazer mais que fechar os olhos e se confortar imaginando como o rei não aceitaria a morte do herdeiro de seu pai, repetindo para si mesmo que ninguém fará nada com ele.

O vapor entrou por seu nariz, orelha, olhos, poros da pele, por todo local, mas de forma indolor e suave. Rondou-lhe o corpo como uma mana que buscava algo. Alojou-se no cérebro e...

Invadiu a mente dele. Viu os olhos de Flamel. Sangue escorria na testa e do nariz do garoto. A poeira de ter socado forte o crânio dele contra a parede de pedra irritava as narinas. Porém, eram os olhos de Flamel que atormentavam Cyle. Olhos explosivos como o fogo, agressivos como um leão que protege seu território. Naquele breve instante, todo o medo, tristeza, hesitação de Flamel se esvaiu e restou um grito por sobrevivência.

Então viu outra imagem. Aqueles olhos, mas na sala de aula, quando Flamel o encarou sem medo nem receio, em um dia que chegou atrasado. Ele fitava Cyle não mais com agressividade ou fúria, mas apenas como um pequeno incômodo que não merecia sua atenção. Algo em seu semblante parecia mais maduro, insensível, apático. Muito distante do medroso Flamel com que Cyle costumava surrar para roubar-lhe os cadernos nas vésperas de prova.  

Algo nele cresceu. Tornou-se corajoso em um ritmo assustador. Isso se confirmou no terceiro olhar de Flamel que a criatura viu através das memórias. Era na arena. Contra Violette. Ensanguentado, com cortes pelo corpo todo, os músculos já além do limite. Ainda assim, ele se levantou. Logo caiu, incapaz, mas se levantou de novo. Não importava o quanto fosse ferido, o quanto o chão bebesse do seu sangue: voltava a se levantar.

Naquele dia, marcou a mente de Cyle como a plateia caiu em silêncio. Não se faziam mais piadas. Não era mais um show de comédia. E nem um show de heroísmo ou mesmo de duelo. Era uma apresentação de dor. Nada além da dor explicaria ele se levantando para uma derrota inevitável.

A dor acompanhou também o rosto de Violette naquele dia. No começo, parecia se divertir com os cortes que dava no garoto, mas logo a expressão se azedou mais rápido que leite. Sofria a cada ataque em Flamel. Embora o sangue dele que banhasse a arena, ela que parecia suplicar pelo fim da batalha. Não foi um duelo. Não houve coragem. Houve dor, arrependimento e sonhos que se levantavam mesmo que ensanguentados.

Não bastava essa situação. Viu na arquibancada Guinevere roendo as unhas enquanto assistia ao Flamel, como se ela desejasse com a própria vida que ele ganhasse. E, ao fim, a forma como ele se levantou e beijou a testa de Violette, maculando-a com o próprio sangue na face, e o modo como ela o encarou, perdida, com lágrimas aos olhos, com uma hesitação que jamais vira nela...

O peito de Cyle queimava com ódio com todas aquelas lembranças. Uma raiva ardente como carvão em brasas.

No fundo, Cyle ignorava um sentimento que lhe causava torpor. Flamel cresceu mais rápido do que qualquer um. Apenas um tolo não perceberia. Era como um tsunami que cresce em seu próprio fluxo, impossível de ser parado. Não importava o fato de quase morrer para Cyle, ser perseguido pelo monstro ou quase ser devorado vivo por lobos. Não importava ser expulso de casa e ter que reconstruir a vida no colégio, sozinho e humilhado.

E mais: Flamel havia demonstrado um poder raro na luta quando fez o espinho de gelo junto de um feitiço de raio. Mesmo que fossem feitiços básicos, eram elementos quase que opostos. As runas tinham zero de ligação uma com a outra. A falta de arquitetura entre elas foi compensada com puro talento para fazê-las funcionarem juntas.

Cyle sentia medo, mas o reprimia com piadas e afirmações exageradas da própria força. No entanto, se fosse tão superior, não teria agora os calos em suas mãos, resultado do quanto tem treinado pesado nos últimos dias...

O homem misterioso saboreou o medo e a frustração de cada um dos pensamentos de Cyle. Tão forte quanto o orgulho do rapaz era o medo de ser superado, um medo do qual sempre fugia e tentava se mostrar superior através da humilhação. Cada pontada de ansiedade reprimida foi um banquete que devorou com prazer.

A criatura já viu tudo que precisava. O ar voltou a se rarefazer. Cyle ofegou exasperadamente, como se não respirasse direito há anos.

— O Flamel é muito, muito mais interessante do que imaginava — disseram as vozes, e então riram como só os maníacos lunáticos eram capazes. Exalava uma loucura sádica de quem busca a próxima presa, o próximo brinquedo.  

Cyle engoliu em seco, o coração se apertando. Cérbero... Sabia que havia escutado esse nome de algum lugar. Em uma mitologia élfica. Era o cão de três cabeças que guarda as portas do submundo. Era como se fossem incontáveis cabeças de lobos gritando em euforia por terem uma nova presa para degolarem e mastigarem a carne da conquista.

— Acatarei seu pedido. Quero testá-lo eu mesmo. A floresta de número Sete será onde observarei de bom grado o quão forte realmente é Flamel. Acontecerá daqui a cerca de um mês.  

Cyle não ousou contestar e nem mais dizer nada. No fim, conseguiu o que queria, de certo modo.

Levantou-se, prestou uma reverência em respeito e saiu o mais depressa possível da sala, deixando a sombra sozinha no pálido ambiente. Ao passar dos segundos, a escuridão começou a se desfazer, até sumir por completo, junto de o que quer que se escondesse debaixo dela, deixando na sala apenas uma risada doentia que continuou a ecoar mesmo após seu desaparecimento.

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