O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 39: Milagre

— O que... você quer? — falei sem ar, os dentes se apertando.

O sapato sujo e enlameado de Cyle se afundou com ainda mais peso, como se fosse uma bigorna caindo do alto contra meu peito. Os ossos da costela foram pressionados contra o chão e contra o pé; podia senti-los serem achatados à força, num movimento antinatural, em iminência de se romperem. A dor era aguda, flamejante como uma barra de ferro em brasas cravando o peito.

Conjurei “fortificação corporal”, mas mesmo os ossos mais resistentes pouco resistiriam à pressão de Cyle, que pareceria ser capaz de encurvar até o aço.

— É dele que a Guinevere gosta? — disse um rapaz de cabelos cor de caramelo que desciam ao pescoço num penteado refinado. Aproximou-se de mim, pisando em minha canela como se fosse uma latinha para amassar, e avaliou meu rosto com tamanho desprezo que fez me sentir como um animal nojento. — Patético. Esperava mais. Dele e dela. — O sapato dele se remexeu na minha perna, afundando-se na carne.

A pressão e a dor na canela e no peito eram agonizantes, prendendo-me ao chão como se fossem pregos encrustados no corpo. Chutei a perna do rapaz e agarrei a panturrilha de Cyle, afundando meus dedos contra ela com um desespero que só a dor e a falta de ar conseguiriam fazer em um homem.

Ainda assim, não soltei o livro que repousava na minha barriga, abraçado pelo meu outro braço. A cada instante, mais sem ar ficava e mais dilacerante a pressão posta sobre mim se tornava, mas não o largava por nada.

— Antes eu achava que ele era inútil, Jean. Agora, acho até que é “viado” — falou Cyle, rindo de escárnio. — Ou talvez seja só um covarde que não tem coragem de corresponder nenhuma garota.

Cyle fitou-me nos olhos; em suas írises marrons, vi o olhar predatório de um animal selvagem, que desejava caçar sua presa e nada no mundo o pararia. Era cínico, cruel e capaz de atrocidades inimagináveis.

Aos poucos, a realidade começava a ficar clara na minha mente. Estava correndo risco de vida, esse louco poderia me matar, poderia ser meu fim. Eu precisava sair dali, conseguir empurrá-lo para longe...

Larguei o livro para investir as duas mãos contra sua perna, empurrando-a com toda força do meu ser. Meus braços tremeram de tanto que tentei, mas...

— Ó? Tá bravinho, é? Fica quieto para aprender. — Cyle pôs as mãos sobre o joelho e colocou todo seu peso e força na pisada.

Senti uma das costelas se envergando ainda mais, até finalmente algo se romper num estalo. O pé dele conseguiu afundar um pouco mais, no espaço onde antes era protegido pelo osso. A dor se irradiou como o choque fervoroso de um trovão, me fazendo estremecer e gritar de agonia. Continuei empurrando a perna dele com as mãos, mas era inútil. Tentei usar as pernas para me empurrar para longe, mas o amigo dele continuava pisando sobre a minha.

— Você é um filho da puta mesmo. Não basta ser um mimado desgraçado, mas ainda é tão fraco que dá até pena — soaram as palavras de Cyle com um peso ainda mais denso que seu sapato.

Enquanto esperneava de dor, ouvi o som de Cyle cuspindo e senti minha face se cobrindo da saliva dele, que se misturaram ao suor que encharcava meu rosto. Lutei, lutei com tudo que poderia, mas não era capaz. Naquele ritmo, o pé dele já cravava mais outra costela, com uma dor que parecia vir direto do fogo do inferno.

No desespero, comecei a conjurar disparos elétricos contra ele, um após o outro. Foram mais de quinze, consumindo toda minha mana, mas nem isso fez sua pisada se tornar mais leve.

— Você não está pegando muito leve? — comentou um rapaz de cabelos ruivos. — Todo mundo te chama de “Cabelinho Lambido” por causa dele. Ele merece mais. E ele roubou a sua Violette, não é? Até a Guinevere, que seu pai tava quase conseguindo te arranjar num casamento. Ele roubou tudo de você. É só isso que fará com esse merda? Quebrar umas costelas?

— Tem razão. — Cyle exibiu um sorriso cínico e sinistro, seus olhos me encarando como uma cobra que se prepara para estrangular a vítima. — Ele merece coisa muito pior...

O pé do Cyle se deslizou para meu pescoço, pressionando-o firmemente. Minha respiração foi cortada imediatamente. Debati meus membros freneticamente, tentando rolar, fugir, ir para cima e para baixo, qualquer coisa que me livrasse daquilo. Meus dedos arranharam a canela embaixo da calça dele, até que filetes de sangue dele escorreram pelas minhas mãos.

— Seu desgraçado!

Tomado por uma fúria súbita, ele levantou o pé e o desceu sobre minha face, afundando-a contra o chão de concreto. O impacto fez minha visão ficar escura e um zumbido horrível se apossar dos meus ouvidos.

A única coisa que meus sentidos foram capazes de captar foi a pressão do sapato dele se apossando do meu pescoço e me sufocando de novo, esmagando minha carne como se fosse massinha.

A força do meu corpo se esvaía. Segurei-lhe a canela de novo, mas não tinha mais energias para resistir... Não conseguindo imprimir mais força alguma, peguei o livro e trouxe para perto de mim, numa tentativa de escondê-lo.

— Ei, o que é isso aqui? — disse um dos rapazes.

Não conseguia enxergar, mas senti alguém tentando pegar o livro de Magia da Alma. A força que me faltava assaltou meus braços como um cão feroz que, embora machucado e caindo aos pedaços, tenta proteger seu filho até o último pingo de vida.

— Caralho, solta isso, seu canalha.

Alguém chutou a lateral do meu peito, numa pontada de dor que normalmente teria me paralisado. Mas não deixei que levassem o livro, segurei-o. Minha vida dependia dele...

— Solta! — Cyle gritou, pisando com ainda mais força que fez meu pescoço estalar.

Poderia morrer a qualquer momento, mas não soltei o livro. Não podia. Era tudo que me restava, tudo que eu tinha para crescer nesse mundo estava nele. Todas as dores e tormentos, tudo valeria a pena, se eu tivesse esse livro. Ele me levaria a lugares que jamais sonharia. Ele me faria finalmente forte. Não poderia...

Abri os olhos de novo. Com a visão embaçada, vi a silhueta de dois rapazes se amontoando em cima de mim para roubar o livro. Resisti com tudo, mas a falta de ar era tamanha que comecei a perder a consciência.

Meus olhos se fecharam, a gritaria deles se tornando cada vez mais distante, como se eu me afundasse num oceano de trevas, enquanto eles permaneciam na superfície. Ainda assim, meus braços continuaram firmes. Era um livro da Biblioteca das Almas... Era mais importante que eu, não poderia deixá-lo ir...

Porém, a biologia era mais forte que meus sonhos. Minha mente inevitavelmente se apagou, a força se esvaiu dos meus braços, murchando como uma flor morta, e tiraram o livro de mim.

No meio do desmaio, voltei a escutar as vozes deles, distantes e difíceis de entender.

— Que merda, ele fez tudo isso por um livro em branco?

— Você é mesmo um inútil, Cyle. Perdeu para um moleque desses?

— Cala a boca, Dronko. Deveríamos é sair daqui antes que alguém nos achem.

— Espera. Na verdade, e se...

Queria escutá-los, mas desmaiei outra vez.

Quando acordei e me sentei no chão com uma respiração ofegante e caótica, vi que os três ainda estavam aqui, me rodeando.

— Até que enfim acordou, inútil.

Cyle desferiu um chute na minha cabeça com tanta força que pareceu querer arremessá-la como uma bola de futebol. Meu corpo voou e se espatifou no chão já sem energia alguma. Nem dor mais sentia, estava arrasado, destroçado.

Fitei-o — era a única coisa que podia fazer, não conseguia mover nenhum membro do corpo. Cyle estava de pé, perto da janela, com meu livro na mão.

— Não sei por que diabos você lutou tanto por uma drogas dessas. Mas acredito que esse livro é especial para você... Seria uma pena se eu fizesse isso, né? — Ele o abriu e agarrou um punhado de folhas sem dó, amassando-as. Ele começou a rasgá-las. Quanto mais papéis ele rasgava, mais meus sonhos e planos de um futuro melhor eram destruídos. Cada página removida era como se também arrancasse uma folha do livro da minha vida, daquilo que eu poderia me tornar...

— Por favor... Para... — tentei falar, mas cada palavra era como uma chibatada no fundo do peito.

Meu pavor só fez Cyle sorrir ainda mais.

— Que pena, Flamel. — Ele riu e continuou a destruir o livro até sobrar apenas uma bagunça de papeis pela metade, impossível de ter qualquer conhecimento extraído.

Meu coração se despedaçou naquele momento. Parei de falar e de protestar, apenas assisti mudo a cena. A diversão de Cyle não demorou muito para começar a perder o brilho, mas se renovou com outra fala:

— Agora, se você realmente quiser tanto ele, vai pegá-lo. — Ele o jogou pela janela.

Tudo que conseguia ver era a maldade no olhar dele, e o sorriso nos amigos. Eu era um simples objeto em que descontavam a raiva, em que competiam para ver como conseguiriam foder mais com minha vida.

Encarava-os sem vida, com uma expressão vazia e aturdida, já no limiar entre a vida e a morte.

Eles andaram até mim e passaram por mim, como se minha presença pouco lhes importasse ou sequer existisse. Foi isso, até os passos pararem e voltarem. A mão de alguém puxou minha cabeça, forçando meu pescoço quase quebrado a se rotacionar e encarar... Cyle. Ele cuspiu de novo no meu rosto, acertando meus olhos.

— Escuta aqui, seu bostinha. Você nunca mais vai encostar um dedo na Violette ou na Guinevere, tá me entendendo?

— ... — Não conseguia mais dizer ou fazer nada. Apenas o encarei morto.

— Seu merda! — Cyle ergueu o punho e desferiu um tapa contra minha face. — Você me entendeu?

— Eu... — Tentei responder-lhe, mas não conseguia forçar minha garganta a pronunciar nem uma palavra.

— Você é burro?! — Cyle socou meu nariz, fazendo um líquido descer e encher minha boca de um gosto metálico.

— Cyle, já chega. — Aproximou-se o rapaz de cabelo caramelo, puxando os ombros do Cyle para perto de si.

— Não era você que me dizia que eu era um inútil por perder para ele? — gritou Cyle de volta, as veias do pescoço pulsando.

— Ele vai morrer assim, e, diferente do Dolgan, você não pode fazer o que bem quiser com ele. Flamel é um nobre, e terá consequências sua morte.

— Argh... Tá bom. Vamos dar o fora daqui. Mas, seu merda — Cyle chutou minha cintura, meu corpo mexendo como uma massa mole, sem resposta —, você nunca mais ouse se mexer comigo ou com elas de novo.

Após dizer isso, ele me soltou, fazendo minha cabeça cair e quicar contra o chão. Ouvi os passos dos três rapazes se distanciando até serem inaudíveis. Inaudíveis o bastante para o silêncio se espreitar pelo corredor escuro e sem-vida...

O som de um trovão cortou os céus, e o prédio vibrou junto do clarão que iluminou o corredor vazio. Como se o trovão fosse uma trombeta que preludia a entrada de um novo tempo — não necessariamente melhor —, uma intensa chuva começou de repente, a água batendo com força contra as janelas.

Se eu pegasse o relógio no meu bolso, veria que os ponteiros teriam se movido por dez... vinte, trinta minutos depois que o grupo do Cyle foi embora. Não sabia se o tempo passou rápido ou depressa, atormentado ou não. Tudo que havia em mim era vazio. A dor excruciante que tomava meu corpo havia desaparecido, junto de qualquer atividade da mente. Nem sentimentos mais tinha. Era um pedaço de corpo, quebrado e surrado.

Em algum momento, da minha face seca e deserta uma lágrima brotou, colorindo-se de vermelho ao passar pelo sangue seco do nariz. Uma outra lágrima veio, e mais outra, e junto delas veio a dor. A maldita dor. Meus pulmões pareciam rasgar a cada respiração, como se os pedaços trincados das costelas penetrassem neles. Meu pé gritava a cada vez que o movia, e meu pescoço estava em tão mal estado que não conseguiria virar a cabeça.

Mas outras lágrimas vieram, em uma explosão que fez minha garganta, mesmo doendo, chorar alto. Muitas vezes chorei desde que vim aqui, mas aquela lamúria, aquele som que reverberava alto e angustiado pelo corredor, era algo que nunca esperaria fazer.

O livro. A ideia veio firme na mente. Era a minha única esperança. Era a minha única...

Levantei-me, usando a parede de muleta, e segui tropeçando adiante, cada passo mais trêmulo que o outro. Cheguei à saída, contornei-a e fui recebido por uma rajada de chuva que quase me derrubou. À minha volta, no campo aberto, nem mesmo as majestosas árvores conseguiam se segurar, balançando e se curvando com o temporal.

Indo contra o vento que soprava justamente contra mim, pisei na lama, que afundava com cada passo. Não demorou até que encontrasse um livro caído no chão. A capa estava fechada e aparentemente intacta, apesar de suja e repleta de lama.

As lágrimas explodiram com ainda mais intensidade. Estava perdido. Fracassei. Perdi tudo que construí nessa vida...

Peguei o livro e já previa encontrar as páginas rasgadas e encharcadas. Abri-o e...

Meus olhos não puderam acreditar no que viram, de tanto que se arregalaram. As páginas estavam inteiras, preenchidas do começo ao fim. Não havia uma única página rasgada. Tudo estava certo.

Caí de joelhos e levei o livro aos céus. Ali, debaixo daquela chuva, chorei, chorei mais do que quando quase fui morto, mais do que esse mundo já vira. Chorei aos prantos, o peito vibrando por longos minutos com soluços vindos do fundo da alma.

Era um milagre. Um milagre sem igual. Eu ainda tinha o meu destino. Ele era meu, e nada poderia retirá-lo. E mais do que tudo:

— Obrigado, Omnix Beytran! — gritei, mas minha voz fraca saiu como sussurro fraco. — Obrigado! Obrigado! Meu Deus, obrigado! — Caí no chão, colocando o livro na minha testa. — Obrigado! Obrigado!

Berrei como nunca, a chuva forte silenciando minha comemoração trágica. Achei que tinham roubado toda minha vida, meu destino e minhas conquistas. Achei que todos meus sonhos haviam morrido, que me restaria apenas me arrepender de ter pegado aquele maldito corredor. Mas...

Não. Tudo estava bem. Ainda estava vivo, e com todo meu destino em mãos. Ninguém me pararia. Ninguém debaixo dos céus.

Quando os soluços passaram, encarei o prédio das aulas com um olhar severo e resoluto. Apertei os lábios, e então pronunciei com palavras que ecoaram do fundo da alma:

— Nunca. Nunca mais deixarei que encostem um dedo em mim novamente.

Pela minha cabeça passaram incontáveis cenários em que me defenderia de Cyle e daria uma surra nele e nos seus amigos. Tornar-me-ia forte. Seria maior que tudo. Seria grande e poderoso.

Um relâmpago cortou a noite, o clarão refletindo-se na madeira do prédio. Apertei o livro entre as mãos, e, ainda mais importante que vencer o Cyle...

— Honrarei a sua confiança, Omnix Beytran. — Levei o livro ao peito, abraçando. — Te honrarei. E viverei uma vida da qual se orgulhará, seja lá quem você for. Um dia... Um dia...

Relembrei as injustiças que sofri. Como Cyle quase me matou sem que eu pudesse fazer nada no meu primeiro dia aqui, como eu vi Maria morrendo e deixando eternamente todos seus sonhos para serem apenas sonhos, como o menino que foi torturado na minha frente sem que eu pudesse fazer qualquer coisa, como que os lobos, que deveriam ser fracos em comparação aos monstros, quase me mataram...

Diante de tudo isso, ergui o livro aos céus. Um outro relâmpago cortou Veridis, permitindo-me ver na página aberta um desenho esquematizado do corpo humano, com uma indicação de onde estaria a alma. Contemplando aquilo tudo, sentindo correr em mim os sofrimentos do passado e os sonhos do futuro, jurei:

— Eu prometo que farei dessa merda de mundo um lugar melhor.   

 

 

Em meio à chuva torrencial, que tornava o mundo esbranquiçado e difícil de enxergar como se uma névoa se apossasse do ar, havia uma figura encapuzada no gramado entre a biblioteca e o prédio de aulas da Academia Real de Bauchir.

Sob o capuz preto como a noite, cabelos prateados desciam sobre o manto. De um poste próximo, uma escassa luz refletia contra seu rosto, embora uma faixa preta sobre os olhos bloqueasse o brilho de abarcar por completo sua face.

Seus olhos, atrás do grosso tecido, apontavam diretamente a um rapaz que chorava com os joelhos na grama, abraçando um livro como se fosse a última coisa que lhe restava. Isso seria o que ela veria se pudesse enxergar igual a uma pessoa normal.

No entanto, a guardiã da Biblioteca das Almas era longe de ser cega. Seus olhos contemplavam um mundo muito maior do que os olhos físicos seriam capazes de presenciar. E esse mundo imaterial que ela admirava, pela primeira vez em décadas, fez todo seu corpo se arrepiar, da nuca aos pés.

O que via naquele momento era um mundo manchado de roxo intenso, meio violeta, que cortava a escuridão da noite e ascendia aos céus. A cada grito mudo do garoto, a densa energia se expandia, explodia, rodopiava, buscava ainda mais vida e tamanho. Era um roxo repleto de memórias, de dores, sofrimentos, sonhos, promessas e esperanças; um roxo que carregava consigo a infinitude da alma, em uma beleza arrepiante.

Ao lado dele, porém, somente Lyla poderia ver um cavaleiro, de armaduras negras e uma espada clara como o luar, ajoelhado ao lado do jovem. Sua mão repousava nas costas dele, em um carinho e conforto que nunca seriam sentidos por Michael.

Momentos antes, quando Lyla sentiu que o livro sagrado havia sido tocado por outra pessoa além de seu portador digno, pensou que o rapaz estaria em apuros. E isso seria tremendamente perigoso, uma vez que Omnix Beytran poderia intervir através de seu novo discípulo. Então o inimigo deveria ser tão poderoso que nem o cavaleiro conseguiria ter agido contra...

Mas não era isso que Lyla via. Não havia perigo. O novo mestre do rapaz estava com ele, intacto, sem sinais de luta, a não ser do garoto ferido. A guardiã não tinha como saber o que havia acontecido, porém tinha a certeza de que, o que quer que fosse, nada aconteceu sem a supervisão do cavaleiro.

Enquanto os observava, Lyla observou o quão destruído o jovem estava, com ferimentos profundos em partes quase vitais. Embora sua mana se expandisse em uma glória digna de ser representada em pintura, o corpo fraquejava, e a energia vital oscilava instável.

A elfa começou a andar em direção aos dois, quando o cavaleiro lhe fez um sinal para parar, o qual ela captou mesmo à distância. O cavaleiro então disse, com uma voz que lhe era tão nostálgica aos seus ouvidos:

— Há males que vêm para o nosso bem. Deixe-o. Ele precisa desse momento sozinho.

A voz grossa e pesada de Omnix para qualquer ouvido soaria neutra e sem emoção, mas para Lyla, que conviveu com ele por tanto tempo, era nítido o quão triste e pesaroso estava, como se presenciasse a tragédia de um filho.

A perna de Lyla, que traçava um novo passo adiante, vacilou e recuou. A cena trouxe-lhe um silêncio mais denso que a névoa e uma paralisia que parou o corpo. Pôde apenas olhar para as duas figuras por longos instantes, sem reação. Mas logo acenou com a cabeça e fez uma pequena reverência.

— Obrigada, Omnix.

A elfa se virou e, enquanto tornava a caminhar, tornou-se uma com a paisagem, impossível de ser vista. Apesar de seu coração doer, a missão foi cumprida. Michael não estava sozinho, mesmo diante da mais intensa dor, ainda que jamais soubesse disso. No fim, ele estava protegido, e talvez toda a dor que tenha encontrado agora, tão dilacerante quanto fosse, poderia ter tido um destino ainda pior sem a proteção do cavaleiro.

E isso bastava para Lyla.

 

 

A chuva tornou o uniforme frio e pesado. Quando tentei me levantar, deparei-me com um corpo tão pesado quanto o tecido que o recobria, com músculos esgotados e rígidos. Era como se fossem feitos de ferro enferrujado, e, em cada articulação que eu movia, os ossos doíam agudamente.

Ergui-me de pé mesmo assim. Com passos lentos e inconstantes, mas nunca desistentes, entrei pelo corredor cavernoso e, arrastando-me pela parede irregular, consegui chegar ao quarto. Acima de procurar a enfermaria, precisava garantir a segurança do livro. E, talvez acima disso tudo, só queria me refugiar em algum lugar...

Tranquei a porta e me atirei à cama. Estava exausto, cada parte de mim gritava por um descanso longo. Porém, quando minhas costas encostaram no colchão, ainda que ele fosse macio e suave, a pressão do meu peso fez as costelas dispararem em dor.

Mesmo assim, precisava dormir. Estava exausto, e desmaiaria a qualquer momento. Fechei os olhos e foquei em me desligar, mas...

A cada minuto, minha consciência adormeceria por um instante, apenas para ser acordada com a dor aguda do peito, intensificada pela respiração que expandia o local. Continuei na horrível tentativa de adormecer, porém aquela agonia nunca terminava.

Sentei-me na cama, atordoado com tudo. Por um momento, olhei para o quarto, tão vazio, tão sem ninguém. Desde que vim para este mundo, passei por muita coisa, mas sempre tive alguém que me socorreria, alguém que estaria comigo nos piores momentos...

Agora não. Estava sozinho. Se morresse aqui, encontrariam meu corpo apenas alguns dias depois, quando começassem a desconfiar do porquê de eu não ir à aula. Não havia Guinevere ou enfermeiro para me curar, nem Violette para me sequestrar por uns dias e me obrigar a descansar. Era apenas eu, sozinho.

Isso fez meu coração se partir. Pela primeira vez nas últimas semanas, lembrei-me de como, desde a Terra, meus pais sempre me protegeram de tudo. Nunca estive verdadeiramente sozinho, embora acreditasse nisso. Qualquer problema que eu enfrentasse, ainda tinha alguém para me apoiar, ou pelo menos para fazer a janta quando eu, nos piores dias, me trancava no quarto e esquecia de preparar alguma coisa para comer...

Eu agora estava naquele mundo e não conseguiria mais voltar. Já aceitava isso. Não havia como. Mas...

Meu nariz começou a arder, junto dos olhos que lacrimejaram. Na parte mais profunda do meu ser, o maior problema não era ter perdido tudo. Em vez disso, era imaginar a falta que eu poderia lhes trazer, o sofrimento que minha ausência causaria... Tudo que queria era que todos estivessem bem. Que meus pais nunca perdessem o sorriso deles, nem seus sonhos e esperanças, mesmo que eu não esteja lá para comemorarmos juntos suas conquistas...

Fodido como estava, entendia melhor do que em qualquer outro momento que a parte mais difícil de dizer adeus à minha vida não era não poder experimentar mais prazeres e sucessos, mas o simples fato de que todos que me conheciam nunca mais poderiam me encontrar, me abraçar. Será que meus pais ficariam me procurando por muito tempo? Será que perderiam as noites de descanso, investigando meu sumiço junto da polícia?...

Não sei. Não sabia de nada. Só...

Meus olhos se dirigiram ao livro na cama. Peguei-o e contemplei sua capa. Se, afinal, estava eu preso naquele mundo, e nunca poderia retornar à vida que tanto me abraçava sem que eu percebesse, então este livro seria uma das maiores bênçãos para mim aqui. Seria uma escada que me permitiria crescer e me tornar melhor, mais forte e mesmo conseguir proteger quem tanto fez por mim, como a Aithne, a Violette, o Dolgan, a Guinevere...

Abri-o, e senti uma brisa tomando conta do meu corpo, suave e refrescante como menta. Uma mana suave subiu pelos braços e se enlaçou no meu peito, fazendo a dor diminuir. Isso...

Comecei a ler o livro, tomado por aquela sensação. Ele era diferente do que qualquer outro. Em vez de conhecimento puro, era como se cada página contivesse sabedoria, um olhar profundo sobre o mundo, sobre a experiência humana... Naquela noite, as reflexões sobre os ideais, sofrimentos, reações, resistências, memórias, percepções, preconceitos, orgulhos e mudanças humanas me abrigaram longe de toda dor, de todo problema.

Quando cheguei na página trinta, demorando duas horas inteiras para isso — constantemente parava a leitura para refletir o conteúdo, numa admiração incomensurável —, vi que os capítulos seguintes estavam em branco, com exceção de uma mensagem:

Por enquanto, essa visão de mundo basta. Aplique-a na sua vida, veja o mundo com mais cores, cumpra suas responsabilidades acadêmicas, torne-se forte, cuide das outras áreas da sua vida e, quando for a hora, avançaremos nas lições. A Magia da Alma depende diretamente do quão profundamente você absorve as verdades da alma. Por isso, vamos por partes, preparando bem o solo para que uma majestosa árvore cresça nele.

Com um sorriso tranquilo, fechei o livro. Silenciosamente, fiz uma oração em agradecimento a Omnix Beytran e então deitei na cama, sonolento. As costelas ainda doíam, mas menos, como se tivesse recebido uma anestesia.

O sono me embalou num abraço gentil e irresistível. Antes que pudesse pensar ou refletir mais, já havia dormido.

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