O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS


Volume 1

Capítulo 41: Meu primeiro grande erro

Os olhos de Violette cortavam a escuridão, parecendo dois astros belos a serem contemplados no céu soturno. Dois olhos que agora sabiam e viam meu segredo, meu único tesouro nessa vida que poderia me dar uma vida melhor, que deveria permanecer trancado a sete chaves.

— E-eu... — apressei-me a dizer qualquer coisa que tentaria justificar o que aconteceu, mas, antes que conseguisse, caí no chão, sem forças, e comecei a tossir.

Assim que a nossa visão compartilhada foi cortada, o mundo pareceu começar a rodar em velocidades cada vez maiores, atordoando minha noção de espaço e equilíbrio. Meu estômago irrompeu em uma profunda ardência, como se gritasse para vomitar cada órgão da barriga.

Suando e caído de bruços, ouvi as gramas se partindo com os pés de alguém aterrissando ao meu lado. No meio da tontura, senti uma mão repousando nas minhas costas com leveza e... carinho?

Não consegui pensar. Nem se tentasse. Havia esgotado cada gota de mana que eu tinha, meu núcleo de mana querendo devorar meu corpo vivo para restituí-la a níveis mínimos. Meus neurônios também foram levados ao limite, a ponto de terem entrado em curto-circuito diversas vezes. Se meu corpo fosse uma máquina, estava quebrada em pedaços, saindo fumaça como uma chaminé, quase explodindo.

— Flamel? O que aconteceu?... — disse ela, como se nunca tivesse me encarado há segundos antes com um olhar tão afiado e penetrante quanto o de uma adaga.

Sem poder refletir com um cérebro tão desgastado, uma profusão de memórias confusas sobre a Violette invadiu meu peito para julgar o que fazer. Deveria deixá-la me socorrer?...

Lembrei-me da proteção e do conforto que ela me deu em seu quarto, de todo cuidado com que ela já me tratou, e de nossos olhares profundos... Mas também me lembrei da dor flamejante e dilacerante de quando cortou meu corpo no duelo, da frieza e descaso com que fugiu de mim na sala de aula e da forma como me manipulou no incidente da bola de água, fazendo de mim não mais que mero fantoche.

Todas essas memórias ruins me fizeram ter um calafrio. Num ataque de pânico súbito, só conseguia pensar que ela era perigo. Perigo demais para desmaiar com ela...

Mordi meus lábios e tentei me levantar para sair de perto dela. Mas caí e desabei no chão. O cérebro fatigado forçava meus olhos a se fecharem e minha mente a adormecer. Como tantas vezes, iria desmaiar ali, ser socorrido e acordar em algum lugar estranho...

Mas não deixei isso acontecer. Não podia deixar meu destino se resumir a ciclos infinitos de desmaiar e acordar, indefeso e sem capacidade de reagir, principalmente agora ao lado da Violette, que recentemente tem me dado todos motivos do mundo para desconfiar dela. Forcei-me a levantar outra vez, meu corpo tremendo e vacilante, mas caí de novo. E de novo.

— Flamel... — A voz dela ficava triste e sentida, mas não me importei.

Se não podia me levantar, comecei a rastejar.

— Está tudo bem. — Ela alisou meus cabelos, a voz se tornando cada vez mais sentimental. Quase tive pena dela. Quase. — Você está acabado. Vem, deixa eu te levar para o meu quarto... Vou cuidar de você.

Ela segurou meu braço e o envolveu em seu ombro. Assim que começou a me levantar, agarrei a grama com vigor e me forcei para ir para longe dela. Nunca tinha sentido tanta aversão dela, e qualquer parte minimamente racional me diria para não a tratar desse jeito, que não era justo, que eu estaria exagerando...

Só que a situação era outra. Eu não era mais que um animal surrado procurando por um lugar seguro para se esconder. Quando se trata de vida ou morte, o medo se multiplica no coração e não há opções de meio-termo. Ou se deixa levar pela sorte da maré, ou luta ferozmente. Escolhi lutar.

— Preciso... Voltar pro quarto... — falei, tentando de tudo para ela me deixar.

E ela me deixaria. Sabia disso, porque, no fundo, ela não se importava comigo. No começo, era fofo e curioso ver como ela tinha diversas máscaras. Mas agora eu tinha medo...

Será que ela gostar de mim era outra máscara? Nem sabia disso até aquele momento, mas meu coração se sentia manipulado e brincado por ela. Ela tem apreço por mim, ou só quer se divertir? Quando me fez conversar com Cyle e ficou bebendo no meu copo, ela realmente queria me ajudar a ter confiança, ou sentia prazer me vendo desesperado?...

Puxei a grama com ainda mais força e continuei a rastejar, quase que num ato de socorro pela minha vida. Só queria que ela largasse essa máscara logo e me deixasse fugir. Por que iria perder tempo cuidando de mim? Que ela voltasse para o quarto dela e me deixasse sozinho...

Contudo, a mão dela agarrou minha camisa e me puxou para trás, freando meus movimentos.

— Violette...

Finalmente abri os olhos e a encarei. Seu rosto estava uma bagunça. O cabelo, normalmente milimetricamente penteado, estava bagunçado e molhado pela chuva. Sua face, que quase nunca viu uma ruga, estava contraída e fechada como uma bola de papel amassada. Seus olhos, brilhando, miravam em mim com uma súplica, como se me implorasse para parar de a encarar como se fosse me machucar...

— Flamel... — Seus lábios tremeram quando ela disse, e seu aperto na minha camisa se fez ainda mais forte. — Confia em mim. Por favor.

Era seu desejo mais profundo e evidente. Talvez não estivesse mentindo. Talvez fosse verdade. Talvez ela gostasse de mim.

Mas não seria eu quem testaria isso.

Traindo qualquer expectativa de confiança que ela tinha em mim, voltei a tentar rastejar, mas com ela me segurando era como nadar contra a correnteza.

— ME LARGA! — gritei, o que fez minha dor de cabeça explodir como se tivesse tomado um tiro.

A mão dela me soltou de imediato e consegui me disparar adiante. Chegando um pouco mais longe, olhei para trás e vi Violette com os olhos trêmulos e o rosto vermelho, como se fosse uma criança tentando segurar o choro e fracassando por completo. Seus olhos, tão belos, olhavam para mim machucados, uma ferida profunda.

Por um segundo, fiquei com pena e pensei em voltar. Porém foi só por um segundo. Logo continuei adiante, em direção ao prédio de aulas, onde com certeza não chegaria antes de desmaiar. Saber que a feria assim encheu meus olhos de lágrimas também. Mas...

Quanto mais me movia, mais cansado ficava. Meus ombros tremiam, sem força, e...

— Está tudo bem, Flamel. — A voz dela veio de cima de mim, e de repente me abraçou por trás, seu corpo se jogando contra o meu. O peso de nós dois juntos me fez parar. — Tá tudo bem... — sussurrou ela no meu ouvido, num tom machucado e sensível, como se se importasse comigo acima de tudo... — Vou te proteger, Flamel. Você está comigo. Nada vai te atingir. Você pode descansar.

Ela beijou meu pescoço, logo abaixo da orelha na qual sussurrava. O toque de seus lábios molhados arrepiou minha nuca e me fez respirar profundamente...

Apesar de parecer um sequestro, uma parte da minha mente imaginava o quão trágico deve ser para ela ver um jovem quase morrendo, mas rastejando para longe dela como se visse um monstro que o devoraria. Mesmo depois de tudo que ela fez por mim, pela adaga com o bilhete, pelos dias que cuidou de mim no quarto me dando uma prioridade absoluta...

— Desculpa... — falei, meu peito se apertando.

De bruços no chão, tudo que podia ver eram seus cabelos descansando na minha face, sujos e encharcados da chuva. Ela tornou a acariciar minha cabeça, numa suavidade que aquietava aos poucos meu coração. Era impossível toques tão serenos e sensíveis serem feitos por falsidade, sem estarem cheios de calor dentro de si...

Eu que peço desculpas, Flamel. Você tem todo direito de ter medo de mim. E muito direito. Só... Me dê mais uma chance? Te prometo que você está... Hic — um soluço abrupto cortou sua fala, vindo de um choro que conseguia esconder de mim até então. Tudo isso para não me incomodar... — Você está bem. Confia em mim...

Se quis em algum momento provar para mim mesmo que conseguia mudar meu destino e não desmaiar, eu com sucesso falhei. Ainda desmaiaria, mas a confusão que fiz antes certamente foi algo que eu poderia ter evitado. Controlei meu destino, a troco de quê?...

Ali, com ela, comecei a chorar também. Revivi todos momentos em que ela me machucou e fez meu peito sangrar, inclusive literalmente. Para cada ressentimento que invadia meu coração, ali o toque pesado dela, carregado de emoções que sufocavam seu peito, me ajudava a perdoar seus feitos...

Cada lágrima minha expelia a mágoa que secretamente passei a nutrir por ela, lágrimas essas que ela começou a acariciar com seus dedos na ponte do meu nariz. Era como se ela sentisse o ressentimento dentro de cada lágrima, e mesmo assim o acariciasse e o aceitasse.

Desarmado do meu medo, entreguei-me a ela. Éramos só nós dois, confusos, caóticos, tristes e amargurados no meio da chuva que poderia destruir o mundo.

“Desculpa”, quis falar de novo, mas desmaiei antes que pudesse.

 

 

Aos poucos, fui acordando, com um sentimento relaxante de um corpo descansado. Sentando-me na macia cama, observei que estava no quarto de Violette, mas... espera, realmente era o mesmo?

Cocei os olhos e me forcei a enxergar melhor. As armas, que antes ficavam nos suportes das paredes, estavam em pé no chão, ancoradas na parede. Embora as cobertas colocadas sobre mim estivessem perfeitamente alisadas, sem uma única marca de dobra, o lençol do colchão exibia muitas linhas, sinal que teria sido muito remexido sem ser trocado.

Vi essa mesma bagunça na mesa na qual Violette estava estudando, suas costas viradas para mim. Pilhas de livros e papéis estavam dispostas em ângulos desarmônicos entre si, diferente do quarto organizado de antes.

Embaixo do cobertor, minha mão tocou algo macio. Curioso, trouxe isso para fora da coberta e me deparei com...

Uma calcinha vermelha com rendas que lembravam o formato de flores. Fiquei paralisado igual uma estátua enquanto observava a peça que Violette teria usado para cobrir a...

— Gostou do que viu?

Olhei para ela e a vi com um sorrisinho que me fez querer me esconder debaixo da terra. Ela riu e se levantou, revelando um corpo lascivo vestido apenas por uma camisola preta, que começava na saliência dos seios e descia até o final de sua cintura. O movimento fez sua borda inferior mexer e mostrar mais de sua calcinha preta, além da silhueta das nádegas.

Provocando-me de propósito, ela alongou os braços ao alto, fazendo subir a camisola ainda mais...

Esquivei o olho, embora tivesse certeza que meu rosto pegando fogo mais do que revelaria o quanto aquilo me afetava. Sem sombras de dúvida, ela era igual à mulher que do inferno de fogo, com o mesmo maldito corpo...

— Você não tem vergonha? — reclamei, usando toda minha força de vontade para me tentar esculpir enquanto um Michael que não cai nessas armadilhas tentadoras dela.

— Hmmmm... — Espreguiçava ela com força, antes de se virar para mim e sentar na beirada da cama, os olhos dela fixos na minha face com curiosidade e um sorrisinho quase desafiador. — Com você? Nem um pouco.

Procurando por uma resposta, lembrei das minhas poucas conexões românticas e dos jogos e histórias românticas que li... Mas nada, nada no universo inteiro da Terra me deu qualquer pista do que dizer naquele momento. A única resposta possível seria flertar de volta, e até desafiá-la... só que não era algo que queria fazer.

— Certo, certo. Desculpa. — Ela riu, foi ao armário e se cobriu com uma jaqueta bege que descia até a metade de suas coxas. Sentou-se de volta na cama e se aproximou de mim, encostando a mão na minha canela que, mesmo debaixo das cobertas, sentiu seu calor. — Melhor assim?

Meus olhos perscrutaram a jaqueta que agora escondia bem suas curvas. Acenei que sim com a cabeça.

— Custava fazer isso antes?

— E aí perderia ver o Flamel-todo-vermelho? Você estava uma gracinha...

Em vez de envergonhado, já estava ficando nervoso com ela. Mesmo sabendo que eu não queria nada, ela não parava...

Talvez minha expressão tenha ficado muito azeda, porque a diversão rapidamente sumiu dos lábios dela. Como se fosse uma nova garota, a antiga Violette brincalhona se tornou séria e com ar pesaroso, como se me ver lhe provocasse dor no coração. Aproximou-se ainda mais de mim e tocou minha barriga carinhosamente.

— Está tudo bem? Você me deu um susto ontem... — disse ela, seu dedão roçando na minha camisa roxa, que só agora percebi não ser o uniforme da escola. De onde ela tira essas roupas para mim?...

— Sim. Obrigado por me socorrer de novo. — O sentimento inicial de querer tirá-la de perto se misturou com gratidão, tais emoções contraditórias criando um nó que sufocava o coração. Ao mesmo tempo, sentia meu corpo gelar só de pensar que teria que explicar o que foi aquele feitiço...

Ela, que olhava atentamente para mim e para meu peito, teve seu rosto ainda mais contorcido de uma amorosa dor. Seus dedos pararam de acariciar e agarraram suavemente o tecido da camisa. Seu olhar se fez mais pesado.

— Desculpa. Desculpa de verdade, Flamel... — Ela abaixou a cabeça, os cabelos caindo sobre a face e escondendo seus olhos. — Eu realmente vacilei com você, não foi?

Aquele nó no meu peito se apertou ainda mais com a pergunta.

— Sim — confessei, meu peito doendo e se libertando do nó simultaneamente enquanto confessava. Porém, uma raiva fez minha garganta vibrar: — O que diabos você tem pensado, Violette?

Nunca, nunca na minha vida confrontei alguém assim. Nunca expressei minha raiva ou insatisfação de forma tão direta. Nunca. Mas com ela... Era impossível me conter. Meu coração vomitava pela garganta sentimentos que muito o machucavam, sem nem que eu soubesse.

— Eu... — Sua mão apertou ainda mais minha camisa. — Eu... Eu...

Coitada... A mesma garota que tanto me fez sangrar na arena hoje parecia um gatinho indefeso e maltratado. E coitado de mim também, porque, apesar de tudo, vê-la assim me fez ficar com um gosto amargo na boca.

— Está tudo bem. — Segurei-lhe a mão.

— Não, não está tudo bem. — Ela olhou para mim, um rosto devastado. — Você...

Ela se aproximou de mim e caiu sobre meu peito lentamente, até suas curvas repousarem contra meu torso. Segurou as golas da minha camisa e escondeu o rosto debaixo do meu pescoço.

— Não está tudo bem — repetiu ela. — Você... — O rosto dela se virou para mim, os olhos examinando cada pedacinho da minha face. — Você é a coisa mais fofa do mundo... Não merece nada disso.

— Coisa... mais fofa do mundo? — encarei seus olhos de volta, um sorriso tímido se abrindo nos meus lábios. Ela sorriu um pouco de volta, quebrando a tristeza solene que a assolava.

— Sim. Você. Ninguém é mais fofo...

Ela colocou seu dedo indicador entre meus lábios, brincando com eles gentilmente, numa mistura de inocência e perversão muito consciente do que fazia...

— Sabe... Até hoje não entendi direito — disse para ela. — Por que você me abandonou daquele jeito na aula? — Apesar do tema delicado, meu coração começava a bater mais depressa, minha voz saía num estranho tom quente, tão vermelho quanto seus cabelos macios.

Ela abriu a boca, e, antes de falar, notei o quão pesada e quente sua respiração também ficava...

— Flamel... Tem certeza que você...

— Violette. — Segurei sua cintura e olhei fundo em seus olhos, em um tom de preocupação que me invadia de repente. — O que realmente está acontecendo com você?

— O que está acontecendo comigo? — Ela pensou por um tempo, e então, sorrateiramente, sentou no meu colo, embora seu peso na região fosse impossível de não ser notado.

O movimento me fez mexer a cintura, e ela mexeu a dela junto, até nos encaixarmos um contra o outro. De fininho, esgueirou-se sobre meu peito, suas mãos deslizando até alcançar a base do meu pescoço, segurando-o confortavelmente.

Colocou seus lábios bem próximos do meu ouvido, respirando nele profundamente, e sussurrou:

O meu problema é se você me deseja... — Moveu sua cintura para frente e para trás, lentamente, como se aproveitasse cada segundo do movimento... — O mesmo tanto que eu te desejo. — Do sussurro, logo senti ela mordiscando o lóbulo da minha orelha, num ato que a fazia parecer que suplicava para me atiçar.

— Violette, por que...

Hmmm. — A mão dela desce até meu colo. — Está tudo bem, Flamel... Apenas feche seus olhos e relaxe... Confia em mim. Seja meu... Só fechar seus olhos...

— Mas, Violette...

Shhhh. — Ela se ajeitou em mim de novo, remexendo a cintura, e aproximou o rosto dela do meu. Nossos olhares se trocaram com uma intensidade impossível de descrever em palavras, em um desejo mútuo no olhar que era tão palpável quanto nossos corpos.

Lentamente, ela aproximou os lábios dela nos meus. Segurei-lhe a nuca e a abracei, puxando-a para mim, até nossas bocas finalmente se conectarem, como um laço nos amarrando.

Aquilo... Aquilo fazia meus sentidos explodirem em um êxtase que nunca senti igual, como se o beijo abrisse um canal no qual nossas almas se comunicavam, se conheciam e se viam, numa transparência que me fazia sentir nu de alma.

O perfume dela era intoxicantemente prazeroso, os sons dos beijos fazendo cada pelo meu se arrepiar...

Como ela me pedia, fechei meus os olhos, deixando as dúvidas de lado, mesmo que não tivesse certeza, e...

É esse o destino do “último romântico da Terra”, como o jovem Michael sempre se orgulhava de se chamar?, disse a voz na minha mente.

Essa simples frase bastou para me fazer encará-la com sobriedade e estranhamento, como se acordasse de um sonho para ver a realidade.

Olhei para ela e, em seus olhos, vi que todo desejo era profundo, absurdamente profundo, mas enraizados em sentimentos distantes do amor com que eu sonhava. Não via respeito ou admiração verdadeira, mas necessidade, carência e dominação. Não via uma alma verdadeiramente exposta, mas uma atração promovida pelo ego e pelo orgulho. Aquilo, que sempre esteve diante de mim e não fui capaz de enxergar, me assustou.

— Violette — falei firmemente, empurrando-a para trás.

Como se fosse pega fazendo algo de errado, seus olhos se arregalaram e a face tingiu-se de vermelho da cor da vergonha. Pela nossa mera troca de olhares, ela já sabia o que eu sentia, sem precisar esboçar uma só palavra ou pergunta.

No entanto, como sempre, enquanto minha alma era para ela um livro aberto, a dela era oculta e misteriosa, o que percebi ainda mais quando ela, em vez de se afastar como eu esperava, abraçou-me com uma força tremenda e se recusou a sair de cima do meu peito.   

Se antes via dominação e orgulho na sua investida, agora, abraçada a mim daquela forma, via uma menina abandonada, se humilhando para me abraçar mesmo tendo sido rejeitada pela segunda vez. Não poderia ser falsidade. Não era máscara. Ela estava amedrontada. Sozinha. Perdida.

Toquei-lhe a cabeça e tornei a acariciá-la. Ela pareceu se afrouxar um pouco, mas mesmo assim permaneceu fechada, como um pequeno porco-espinho que, com medo, se enrola e foge do mundo.  

Sentindo o peso do corpo nela sobre o meu, e seus cabelos sedosos contra meu toque, sua respiração acalorando meu peito, e sua mão que começou a acariciar minha barriga, nada mais houve no mundo. Não houve qualquer outro pensamento, qualquer outra ideia. Durante o tempo em que lá permanecemos, seja uma, duas ou três horas, vivemos apenas um ao outro.

Em algum momento, ela pegou minha mão em sua cabeça, a puxou e a abraçou, como se tentasse agarrar a uma parte de mim para si. Enquanto a confusão de sua mente me fazia querer distanciar, aquele gesto exibia uma carência e necessidade por mim maior do que qualquer palavra que poderia sair de sua boca.

Nessa imensidão que era impossível de se conter em um tempo determinado, ela disse:

— Seu feitiço... — Mas falou tão baixinho que não pude entender.

— Hm?

— Seu feitiço — falou mais alto.

Quando entendi, meu corpo se enrijeceu, gelado. Ela abraçou meu braço ainda mais forte.

— Está tudo bem — disse ela. — Você nunca exigiu de mim saber sobre meus olhos. Então nunca te perguntarei sobre o feitiço.

Meus olhos se arregalaram em surpresa. Ela...

— No fundo, você é uma garota surpreendente, não é?

Subitamente ela deu um puxão no meu braço que o fez doer um pouco.

— Ei!

Ela riu e se virou para mim, um belo sorriso aberto em meio a um rosto caótico e bagunçado, tanto quanto seu quarto, e tanto quanto eu mesmo. Sorri de volta, talvez da mesma forma como ela.

Naqueles olhos brilhantes, porém, vi algo que a prendia. Sorria, mas não de alma inteira. Uma pequena tristeza, um pequeno desconforto parecia sondar a mente dela, esperando nosso momento juntos acabar para então mordê-la pelo pescoço.  

Conhecia bem isso, essa ansiedade, esse medo...

Ou pelo menos eu acreditava que conhecia bem o que quer que estivesse passando na mente dela.

Botei minha mão em sua cabeça e baguncei seu cabelo ainda mais. Ela sorriu, quase como se nunca tivéssemos tido qualquer atrito, e repousou de volta no meu peito.

Naquele dia, vendo aquela garota, descobri que meu caminho se tratava muito mais do que apenas da força de mudar a si mesmo. Ser o escultor de si mesmo era importantíssimo, mas a vida humana era muito maior que isso. Ser humano era também impactar e construir as vidas ao redor de si, especialmente as que mais nos importam.

Naquele dia... Decidi abrir meu coração a ela e esperar para conhecer melhor seus mistérios. Decidi que esperaria por ela, até quando estivesse pronta para me deixar conhecê-la verdadeiramente.

E também naquele dia, abracei-a e fechei os olhos, até adormecermos juntos, numa profusão de sentimentos que nunca havia experimentado em toda minha vida.

E, ainda, naquele mesmo dia, talvez eu tivesse cometido meu primeiro grande erro, embora nunca fosse confessar isso a mim mesmo.

 

Server do Discord: chega mais!



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