O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 47: Engolir a verdade

— Pois não? — ressoou uma voz masculina e profunda, grave como o avançar de uma alabarda.

Os olhos do homem, ágeis e silenciosos, perscrutaram a escuridão do quarto em que estava, mirando em uma figura preta e alta que abria a porta de madeira de lei. Fechando a porta atrás de si, ela prosseguiu adiante, seus passos navegando ao lado de um armário opulento, e cessaram em frente à mesa maciça que ocupava o centro do cômodo. A única luz, laranja e falha, era uma pequena esfera de cristal ao teto, acima das duas pessoas.

À medida que a figura repleta de sombras caminhou à luz, revelou-se ter um rosto feminino e maduro, os cabelos negros tão bagunçados quanto os óculos na ponta do nariz. Ela carregava uma grossa pilha de papéis, tão pesada que fez um baque ao ser jogada contra a mesa.  

O homem, de pele de bronze e cabeça raspada, suspirou, encolheu os ombros largos e, com uma face severa e cuidadosa, pegou os primeiros papéis da pilha. Fitou-os do começo ao fim, a cada segundo seu rosto se tornando tão escuro quanto o quarto.

— O que significa isso? — Ele olhou para a mulher, as grossas sobrancelhas franzidas num nó.

Sem respondê-lo, a mulher puxou a cadeira oposta ao sujeito e se debruçou sobre a mesa, escondendo a cabeça entre os braços. Um longo e árduo suspiro emanou de seu peito.

Minutos se passaram com o único som percorrendo a sala sendo o crepitar do óleo queimando. O homem a encarava incerto, os olhos retornando constantemente ao absurdo que havia lido nos papéis.

Diante da tensão, ele também suspirou. Suave como o silêncio reinante, a mão do rapaz, cheia de calos e cicatrizes, deslizou pelo ar até pousar no braço fico e pequeno da moça.

— Não há — disse ela com grande dificuldade, se enfiando ainda mais fundo nos braços, como se quisesse se esconder do mundo.

— Não há o quê, Hayek?

A professora levantou a cabeça, encarando-o com olhos sem brilho e sem vida. Para Tokewater, que estava acostumado a ver uma mulher tão valente, atenciosa ou até rebelde, ver aqueles olhos que mais pareciam com os buracos de uma cova era algo que deveria pertencer apenas aos pesadelos.

Mas os pesadelos podem se tornar realidade. E, em sua frente, via a constatação evidente disso. Nesse pesadelo tornado real, os lábios de Hayek se comprimiram, rugas exibindo a força com que fechava a própria boca em uma angustiante frustração. 

— Não há runas de segurança na Academia.

Os olhos de Tokewater se arregalaram, mas não foi capaz de fazer nada além de encarar a infortuna daquela mulher.

— Não... há runas de segurança?

— Não. Nenhuma. Zero.

— Mas... — Tokewater apertou o braço dela, sua voz se fazendo mais calma e suave, como se isso pudesse resolver algum engano. — Não vemos a aura das runas todo dia?

— São cópias baratas e propositalmente falhas.

— São... Cópias?

Pela primeira vez em anos, Tokewater sentiu um arrepio consumir sua espinha. Se pesadelos podem se tornar realidade, também poderiam os piores fantasmas da imaginação ganharem vida.

E não há fantasma algum pior que descobrir que toda a vida que construía era uma mentira.

Hayek encarou homem, muda, e nenhuma palavra precisou mais ser vocalizada. A Academia, que acreditavam ajudar a preparar os futuros magos que guiarão a raça humana, era mera fachada para algo tão sombrio que mal conseguiam imaginar. Os acontecimentos recentes fizeram-nos cultivarem essa dúvida, mas...

A verdade agora era evidente. Qualquer questionamento seria simples dificuldade de engoli-la. 

O pesadelo, a lenda urbana que mais odiavam ouvir, descartando-a como simples conto de quem nunca pisou os pés na instituição: a Academia, justo nas Planícies Desoladas, a área que mais presenciou crueldade e desesperança de todos os cinco impérios, com a maior concentração de mana negra, tinha fins ainda mais reprováveis e malignos do que poderiam imaginar.

E eles, enquanto professores, eram quem, sem saber, mantinham a identidade dessa seita secreta. Se ela tinha honrarias e mantinha seus disfarces, era pelo exímio trabalho de professores como eles, que tornavam uma instituição tão sombria em sinônimo de respeito para os nobres.

— A maldição no Flamel... O sangue que estava nele que continha traços de magia negra... Os monstros que têm surgido na Academia... — Tokewater já experimentou as bebidas mais fortes. Mas nenhuma, até as imbuídas com magia, era tão difícil de engolir do que esse fato.

Somente então o homem entendeu a obscuridade dos olhos de Hayek. Não apenas ela era a responsável pela condução da pesquisa, e, sem dúvidas, achariam um jeito de arruinar sua carreira para encobertar a verdade, talvez dizendo ser uma falha dela, como...

Quinze anos. Quinze anos entregando tudo de si aos alunos, debatendo as diretrizes internas da Academia, tentando fazer de lá o lugar perfeito para o crescimento e treinamento dos alunos... Décadas de trabalho constante para isso?

O clima da sala se fez denso e impenetrável. Os olhos do homem viam a mulher diante de si, mas nenhum toque ou palavra poderia alcança-la. Nem ele sequer sabia o que faria da própria vida...

Naquele momento de desespero mútuo, a mão de Tokewater desceu pelo braço de Hayek e segurou sua mão. Ele olhou em seus olhos e sussurrou:

— Vamos fugir?

Eram duas palavras. Duas míseras palavras, mas que poderiam mudar muito mais que duas décadas de ambas vidas. Duas palavras cuja resposta deveria ser dada ali, naquele instante, antes que fosse tarde demais. O tempo corria, o perigo aumentava. A maldade, como um ninho escondido de centenas de aranhas, aos poucos era descoberta. E, quando um ninho é descoberto, os insetos fogem e se alastram por toda parte.

Era só questão de tempo até os responsáveis por esse ninho obscuro da Academia serem descobertos e causaram um caos generalizado.  

— Não. — Ela balançou a cabeça, convicta. — A turma 143. A Guinevere, o Flamel... Não posso deixá-los.

— Eles podem fugir com a gente.

Hayek apertou a mão do homem mais forte, como se fosse a única coisa que poderia agarrar naquela situação.

— Mas...

— Mudar seus planos faz parte da vida. E, nesse ritmo, Flamel poderá perder a vida antes disso.

— Eu sei... É só que...

Os lábios de Tokewater sorriram de levinho, um carinho que brilhava mesmo na escuridão.

— Hay, eu entendo. Ninguém, nem suas famílias, os aceitariam se fugissem do curso de magia. Seriam vistos como fracassados para sempre. Mas... Há diversas guildas em que ainda podem provar seu valor.

— Como mercenários, Toke? — Os olhos dela recobraram vida, mas uma vida triste e ofendida, o encarando como se tivesse dito uma blasfêmia.

Tokewater suspirou. Ele mesmo, afinal, foi um aventureiro de uma guilda por dez anos antes de se tornar professor de magia. Era a única maneira que um jovem pobre como ele poderia crescer na vida. Por isso, ouvi-la dizer que são mercenários, depois de ele ter compartilhado tantas missões de vida ou morte com companheiros e ter perdido amigos queridos, fez seu peito arder em fúria.

O homem entendia de onde vinha esse pensamento, e concordava em parte com ele. Ainda assim, doía seu peito explodia com a acusação.

— Desculpa... — Hayek colocou sua outra mão na dele. — Não foi minha intenção...

— Está tudo bem. — Ele respirou fundo, tentando se esfriar por dentro. Não era hora de brigarem. — Mais importante que isso...

— Não — disse ela, a ansiedade fazendo-a prever a resposta do rapaz e já descartá-la. — Vou pensar melhor sobre a proposta. 139 turmas se formaram sem problemas. Talvez, se adiarmos um pouco, eles vão conseguir também...

— Você sabe que não é verdade. As coisas estão ruindo, Hay. E principalmente o Flamel... Amaldiçoado, acha que não tem alguma ligação? Não deve tardar a ser morto.

— Não consigo acreditar nisso...

— Mas tem que acreditar.

— Mas... Toke, será mesmo que eles iriam fazer uma catástrofe assim com tantos filhos de nobres?...

Hayek engoliu em seco. No fundo, já sabia da resposta, mas preferia não acreditar nela.

—  Essa pode ser considerada a melhor academia de magia do mundo, mas não deixa de estar no coração das planícies desoladas, longe de todos os quatro grandes impérios. Nenhuma família em sã consciência enviaria seus filhos para cá. A não ser que seja uma família desesperada ou rancorosa...

A professora suspirou e se debruçou sobre a mesa outra vez. Outra coisa que odiava ver eram as histórias familiares de desprezo e descaso dos estudantes. E pensar que justo esses alunos, que tanto já sofriam, correm risco de perder a vida e nunca verem seus sonhos se tornando realidade...

— Até o exame da floresta de Zonto — disse ela, a voz meio abafada pelos braços. — Deve acontecer em cerca de duas ou três semanas. Até lá, teremos mais pistas do que está acontecendo. Poderemos julgar se iremos fugir ou não...

— Isso se for tão fácil fugir — falou Tokewater prontamente. — Provavelmente seremos caçados por aquele velho. Não vejo qualquer esperança de ele não nos encontrar.

— ...

Hayek mordeu os lábios. Para toda solução, surgia um problema insolúvel.

“Guinevere, Flamel, Dolgan...”

A professora encarou os olhos de Tokewater com um rosto fraco e perdido, como se implorasse a ele por uma solução decente. Só uma.

Mas ela não chegou. Ele suspirou e escondeu o rosto nas mãos, nunca entoando as palavras que a Hayek mais queria ouvir. Ela pôde apenas apertar os lábios e suspirar em frustração.

“O que acontecerá com vocês?...”



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