O Retorno da Gula Coreana

Tradução: Gambetti

Revisão: Melão


Volume 1

Capítulo 3: Um Filho da Puta (2)

“Preciso que alguém me dê uma grana, então eu tento recuperar o que perdi.”

Seol ficou um tempo dando voltas na frente da Estação Nonhyeon, pensando no que fazer antes de seguir em direção ao seu objetivo. Era como se tudo estivesse conspirando contra ele, entretanto ainda havia uma carta na manga.

 

***

 

O alarme tocou às cinco e meia da manhã. Yoo Seonhwa lentamente abriu os olhos e, como se a noite tivesse renovado a sua alma, soltou um bocejo refrescante enquanto se espreguiçava na cama.

Os raios de sol passavam pelas cortinas, iluminando uma pequena foto emoldurada na escrivaninha do quarto. Era uma antiga foto com sete pessoas, incluindo ela e a sua irmã mais nova. Um pequeno sorriso se formou no seu rosto enquanto olhava em direção à foto.

Na imagem estava o Seol ahjussi¹ com a expressão severa que sempre ficava no seu rosto, mesmo assim, o carinho que ele tinha no coração era incomparável; a sua esposa, que sempre cuidou das duas como se fossem da família, nunca as deixando passar necessidades. 

Além deles, os seus três filhos também apareciam; o mais velho, Seol Wooseok, que lembrava o seu pai com aquele semblante frio e personalidade igualmente gentil, a última a nascer, Seol Jinhee, com uma personalidade extrovertida. E também… um garoto, com um pequeno sorriso, entre os dois. Yoo Seonhwa estava com a cabeça no ombro dele, era possível ver a felicidade estampada no rosto dela.

Enquanto olhava para a foto, uma sombra tomava conta da sua feição. Quando pegou o telefone para ver as horas, a expressão se tornou ainda mais escura.

 

***

 

— Já vai sair? Por que não toma pelo menos um copo de café antes? — Yoo Seonhwa perguntou.

— Eu gostaria de fazer isso, mana. Mas tenho que ir agora. Preciso entregar aquela merda de projeto até o final do dia.

— Tá, tá bom. Não esqueceu nada, né?

— Poxa! Você sabe que não sou mais um bebê! Estou indo agora, tchau!

A porta foi fechada e os passos apressados da sua irmãzinha, que ecoavam pelo corredor, se tornavam cada vez mais distantes. Sozinha, terminava alegremente o seu café da manhã. Talvez por estar infectada com a atitude positiva da irmã, se sentia mais motivada do que o normal nesta manhã. E, nos últimos dias, as coisas tinham andado tão bem que ela parava e pensava se isso não era tudo um sonho ou algo do tipo. Porém era certo que Yoo Seonhwa estava feliz, isso é, se aquele problema fosse ignorado.

Após terminar de comer, começou a preparar a sua marmita com as sobras. No entanto, quando escutou o som de passos se aproximando, deixou uma risadinha escapar. Alguém deu batidas apressadas na porta. A jovem já sabia o que havia acontecido, então rapidamente destrancou e abriu a entrada.

— Eu avisei. O que você esque… — Yoo Seonhwa, que estava prestes a dar uma bronca na irmã, ficou sem reação.

— Pensou que era Seunghae, não é?

A pessoa na sua frente não era esperada. O homem vestido com roupas velhas em mau estado que pareciam não ser lavadas a semanas, o seu cheiro lembrava um bueiro mal tampado. Havia olheiras enormes sob os olhos, parecia  ter virado outra noite.

— Você… Por que está aqui?

— Ei. Como vai? Já faz um tempo, né? Uau, não importa quando eu apareço, esse lugar está sempre limpo.

Seol forçou a sua entrada e começou a olhar em volta, até encontrar as sobras do café da manhã sobre a mesa. Então, com as mãos sujas, pegou um pouco de comida e jogou na sua boca balançando a cabeça em apreciação.

— Tem um gosto ótimo, estava morrendo de fome, então isso é perfeito. Ei, me dê um café decente.

— Você não tá abusando muito não!? 

— Eu falei, traz logo a comida!

— Quem deixou você entrar aqui?

Os olhos do jovem Seol arregalaram ao sentir a hostilidade da voz dela.

— Qual é o problema?

— Esta é minha casa, não a sua. Você acabou de invadir a propriedade de outra pessoa, ainda não entendeu?

— O que quer dizer com isso? E desde quando este lugar é seu? Tenho certeza que foi o meu pai que pagou a entrada do financiamento desta casa.

— Já paguei todo o dinheiro que ele gastou e você vem com esse papo de “financiamento” agora? Não sabe que resolvi esse problema há muito tempo? Além disso, mesmo que ainda estivéssemos nessa situação, você não teria o direito de estar aqui.

— Ei... Por que está agindo assim? Esqueceu-se do tempo que passamos juntos?

— Nosso tempo juntos? Sério?

O tom dela se tornou ainda mais frio.

— Pare de sonhar acordado. Não temos mais nenhuma história. Eu não possuo nenhum tipo de relação com você. Nada mesmo.

Essas palavras acabaram indo além do frio e se tornaram venenosas, deixando os olhos dele perdidos. Então ele soltou um suspiro e deitou no chão da sala.

— Só me dê logo algo para comer. Estou morrendo de fome. Você sabe que eu percorri um longo caminho para chegar aqui.

— Ei!! Não vou mais te mimar, levanta logo! Levante e saia daqui! Antes que eu chame a polícia!

O jovem, Seol, bufou irritado. Entretanto, quando Yoo Seonhwa pegou o telefone para fazer a chamada, ele rapidamente levantou.

— M-muita calma nessa hora. Vamos conversar um pouco. Vim porque tenho algo para conversar com você. Por favor...

— Não temos qualquer coisa para falar. Se realmente quer falar comigo, primeiro vá para aquele casino estúpido e faça o segurança banir você de lá. Só então eu posso pensar sobre o assunto.

— Ah, fala sério. Por que está tão brava?

Ela sentiu que o seu coração iria explodir por conta da frustração e angústia que foram se acumulando com os anos. Os olhos dela fecharam, abaixou a cabeça e respirou fundo.

— Vaza daqui…

— Nossa. Até quando vai continuar agindo desse…?

Antes que pudesse terminar a frase, Seonhwa soltou um grito, foi tão alto que os seus ouvidos sentiram um pontando. Ela não conseguia mais segurar a raiva e acabou explodindo.

— Acha que eu não sei por que você está aqui?! Veio implorar por dinheiro, não é?

Seol vacilou, pois ela acertou em cheio.

— Ei... O que está…

Ele sorriu e tentou escapar dessa situação. Infelizmente, algo similar já acontecera e não apenas uma ou duas vezes, a última foi há quatro meses. Seol ajoelhou, juntou as mãos e ficou horas pedindo desculpas. Ela acreditou nele naquele dia.

Vendo aquele sorriso feio e covarde na cara dele, um sentimento de repulsão, o qual nunca havia sentido antes, estava crescendo nela.

— Não posso e não irei lhe dar nem um centavo. Nunca mais! O que disse para mim aquela vez? “Vamos começar de novo, juntos”. Sério? Acha que sou uma idiota? Qual é o problema, acabar com todo o seu dinheiro naquele dia não foi o suficiente para você?

Yoo Seonhwa gritou sem dó, até ficar sem fôlego para continuar. Tosses secas saíam da sua garganta, estavam roucas por conta da explosão de raiva que acabou de ter.

Seol ficou parado, sem saber o que fazer.  Por fora parecia esquecer o que queria dizer por conta das palavras dela, entretanto, olhando de perto, era possível ver um sorriso debochado no seu rosto.

— Sabe, tentei ser o cara bonzinho e paciente até agora, mas você começa a agir assim? Sua prostituta ingrata…

Os pensamentos de culpa como: “Será que passei do limite?” desapareceram da cabeça dela ao ouvir isso. Até pensou que tinha algo errado com os seus ouvidos por um momento.

— Do que… Do que você acabou de me chamar?

Hah? Tá com alguma porra no ouvido? Ei. Você acha que eu sou um idiota? Caralho…

Foi a primeira vez que ela ouviu essas palavras saírem da boca dele. Não sabia o que fazer por conta do choque.

— Sabe que não deveria agir assim comigo. Digo, quando você estava passando por toda aquela situação de merda. Pra quem você foi balançar o rabo pedindo ajuda? Agora me fala essas coisas? Não quero parecer um bastardo mesquinho ou qualquer coisa parecida, mas esqueceu do quanto te ajudei no fundamental e no ensino médio? Hein? Esqueceu daqueles dias em que perdia tempo andando pelas ruas sem rumo, chorando e reclamando sobre o quanto queria ver os seus pais, que tinham morrido? Ainda me lembro de quando a Seunghae veio até mim chorando e perguntando onde a sua querida irmã mais velha ficou a noite toda.

Um gosto vil e nojento subia pela garganta da Yoo Seonhwa, que tentou segurar essa sensação horrível, contudo, os seus olhos começaram a ficar molhados evermelhos, um sentimento de traição parecia atacá-la.

— Lembra de quando você não tinha dinheiro, mas queria estudar em outro país? Não decidi adiar minha volta para a escola, apenas para poder usar o dinheiro da mensalidade como uma forma de te ajudar? E, depois que começou o intercâmbio, não continuei enviando dinheiro que eu conseguia com empregos de meio período, para você não passar fome lá?

Isso realmente aconteceu. Queria perseguir o seu sonho de estudar no exterior, entretanto a realidade não era tão boa, como não tinha dinheiro o seu desejo era inalcançável. Não tinha a quem pedir ajuda,  porém, o jovem na sua frente foi quem a ajudou.

Estava agradecida pelo sacrifício dele e se sentia muito mal por tê-lo feito passar por issto, ter que atrasar os seus estudos, tudo para ajudar uma garota. Esse era o Seol daquela época. Era confiável, se preocupava com ela e era o pilar mais importante da vida dela.

Quando ambos entraram na mesma faculdade, ele se confessou… nesse instante ela se sentiu andando nas nuvens. Yoo Seonhwa o amava há muito tempo. No momento em que prometeram passar o resto da vida juntos, na cabeça dela não existia algo que pudesse estragar isso, a sua felicidade iria durar para sempre.

Porém…

Como alguém pôde terminar dessa forma? O que conseguiria arruinar a vida de um homem até esse ponto? Ela ficou ali, tremendo como uma folha solitária em uma árvore. Fungou levemente, antes de levantar a cabeça do nada. A sua expressão mostrava um semblante de calma, no entanto os olhos continuavam inchados e úmidos.

— Seu filho da puta…

— O-o que?

Seol parou de fingir estar bravo e começou a gaguejar. Foi então que, ao invés de se sentir nervoso, ficou surpreso,p pois ele sabia o quanto ela odiava xingar. Nunca havia dito um único palavrão em toda a sua vida.

— Quanto foi? — O seu tom, mesmo que choroso, continha determinação. Yoo Seonhwa sabia o que fazer.

?

— Quanto foi? O dinheiro que você me deu quando eu saíí do país.

— Hm… Da matrícula foram… quinhentos mil? E o salário dos empregos de meio período, algo em torno de duzentos mil? 

— Vou devolver o dinheiro da matrícula ao seu pai. Mesmo que você tenha me dado o dinheiro, veio tudo do bolso dele. E, por aqueles duzentos, aqui está — falou, secamente, como se estivesse o amaldiçoando com cada palavra que saia da sua boca.

— Acabei de enviar. Exatos duzentos mil, pode checar.

Seol soltou uma tosse falsa e olhou para o celular de forma discreta. Ele não pôde deixar de sorrir quando viu o seu saldo.

— Nossa, você está cheia de grana agora, não é? Quanto ganha por mês?

— Já terminou?

De alguma forma ela conseguiu falar de novo, com ainda mais lágrimas nos olhos. Escutando o tom sinistro, o sentimento de felicidade desapareceu de imediato, porém balançou os ombros e olhou na direção dela mais uma vez.

— Ei.... Eu nunca te pedi dinheiro, não? Se outras pessoas escutarem, podem pensar que estou te assaltando ou algo do tipo.

— A minha dívida acabou com isso… Certo? Cada centavo?

— Bem… hm, acho que sim?

— Se já confirmou isso, saia daqui. Não tem mais nada que te ligue a mim. Nem mesmo uma dívida.

— Vai começar de novo?

No final, Seonhwa não pôde mais se segurar e acabou caindo de joelhos no chão. Vendo a corrente de lágrimas no rosto dela, Seol coçou o seu cabelo oleoso e despenteado.

— Tudo bem, estou indo.

Os seus sapatos ainda estavam no pé², então ele saiu rapidamente, como se fosse um ladrão escapando da cena do crime, com medo de se expor. No entanto, o seu sentimento de realização, por ter conseguido o dinheiro, durou apenas alguns segundos.

Lágrimas.

Quando ouviu o som de um choro contido, capaz de partir o coração, vindo de trás da porta. Seol se sentiu um merda,correu para fora da construção e olhou para cima. Como de costume, o céu da manhã era um azul vívido. Esse um dia com tão poucas nuvens que conseguiu fazer o sentimento de irritação crescer dentro dele.

Então, toda a fadiga que acumulara apareceu de uma vez. Encheu o estômago com comida de uma loja de conveniência e voltou para o seu quarto alugado. Após acender a luz, caiu no cobertor empoeirado e fechou os olhos.

Um tempo passou… O sol chegou ao oeste e o brilho laranja que vinha do horizonte começou a ser engolido pela escuridão.

Zumbido.

De repente o ar começou a vibrar e, logo após, ondulações circulares apareceram ao redor. Elas foram se concentrando em um único ponto, então, em um instante, se transformaram em um objeto azul, que lentamente caiu na testa dele, como se fosse um beijo dado à pessoa mais amada.

Não demorou muito, a coisa começou a entrar na pele dele, bem devagar, como se estivesse afundando na superfície do mar. Então algo aconteceu.

Arrepio.

O corpo, que estava dormindo em silêncio, começou a tremer e a ter espasmos.

Surpreso, Seol abriu os olhos. 


Notas:

1Homens mais velhos geralmente nos seus 35-50 anos. Homens coreanos, especialmente aqueles nos seus 30 anos, preferem ser chamados de oppa/hyung do que ahjussi pelos mais novos. O mesmo que chamar de tio, não necessariamente tendo que ser parte da família. 

2 – Como modo de respeito, os coreanos têm o costume de tirar o sapato para entrar na casa dos outros, para evitar sujar a casa que não te pertence. O significado por trás do ato de manter o sapato é bem simples: Uma total falta de respeito e consideração pelos donos da casa.



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