Volume 1

Capítulo 10: Operação Pesadelo

Hei de confirmar uma antiga teoria; a de que o Numen está presente em tudo e em todos. Que é Numen, então? Nada mais do que a vontade dos espíritos. Há Numen no ar e na terra, na água e no fogo, nas plantas e nos animais; há Numen em qualquer coisa. Pois, como nos conta a sabedoria do Oráculo Sagrado, «In Principio erat Numen».

Os Princípios da Magia, Santa Hélène de Draconville.


Pa!

Um violento tapa amassou a face de Henry. Estupefato, ele caiu de bunda no chão.

— Huh?!

Sentada em sua cama, Rozalia estava confusa. Reparou, por acaso, nos botões da sua camisola. Estavam desabotoados. Graças a isso, seu decote expunha seus melões como cobiçados troféus de ouro.

Tum-tum-tum-tum...

Rozalia abotoou a camisola com uma rapidez descomunal e cobriu, por reflexo, os seios com o braço.

— S-seu... o que pensa que está fazendo?!

Na verdade, enquanto Henry tentava acordá-la, havia afrouxado os botões de sua camisola para facilitar sua respiração, pois ela parecia estar com dificuldade. Portanto, não havia malícia por trás de sua ação.

— Seu verme! Porco imundo!

— Acalme-se, senhorita Draculescu...

— Fique quieto, usurpador!

— Você entendeu errado. Deixe-me explicar, senhorita!

Sua beleza de ninfa havia sido arruinada pela careta demoníaca que exibia. Os músculos de sua face se contorciam de raiva.

— Que confusão é esta?! — Ágnes gritou do outro lado da porta.

Rozalia pegou sua varinha e, com um simples balançar, a porta se abriu. Lá estavam as irrequietas Ágnes e Adélaide.

— Los Rosales, Beaufort, socorram-me! Este homem... não, este selvagem me atacou durante meu sono e roubou a minha inocência! Oh...!

Ameaça.

A face de Ágnes se obscureceu. Direcionou um olhar assassino para Henry e murmurou, com um sorriso nos lábios:

— Henry...

— Escutem a minha versão da história!  

— Quais suas últimas palavras?

— O que aconteceu com a presunção de inocência?!

Soco! Soco! Bam! Nhac! Soco!

— Hua... já está bom, Ágnes. Você já o puniu demais.

— Hum...

De forma um tanto relutante, Ágnes saiu de cima de Henry, que estava esparramado no tapete, e limpou seu uniforme. Ele ainda tentou resistir, mas aquilo de nada adiantou.

Passo. Passo. Passo. Passo.

Com a cabeça de lado, a orelha de Henry, que estava encostada no chão, captou um ruído vindo do corredor. Um calafrio desceu por sua espinha.

— Alguém se aproxima. — sussurrou. — Escondam-se! 

Em um piscar de olhos, Rozalia entrou debaixo da cama e Adélaide se enfiou no guarda-roupa. No entanto, Ágnes não se mexeu. Suas reações estavam lentas devido ao medo e à enxaqueca. Aquela idiota...!

— Ugh?! — Ágnes gemeu.

Henry agarrara seu braço e a puxara para baixo da mesa. Utilizou-se de sua capa para misturá-los ao ambiente.    

Click.

Encolhida entre as pernas de Henry e encostada em seu peito, Ágnes queria se debater, mas estava rígida como uma boneca de porcelana. O rosto dele estava pressionado contra seus cabelos negros. Eles eram fofos e bem cuidados, e tinham uma fragrância de damasco. Os braços dele envolviam sua cintura delicada.

A pele dela é macia como algodão. Henry estava encabulado. Afinal, Ágnes tinha mais ou menos sua idade e possuía um aparência charmosa. Huh? Havia algo familiar naquela sensação, embora Henry não conseguisse identificar o que era. 

Passo. Passo.

Alea iacta est. As passadas adentraram no quarto. Seu dono era muito alto, com quase dois metros de altura e forte como um cavalo. Porém, quando o invasor se aproximou da janela...

— Leonard Draculescu?! — Henry não conseguiu se conter.

Ui?!

A surpresa foi tanta que Leonard tropeçou e caiu no chão. Rozalia colocou a cabeça para fora da cama e exclamou:

— Leo?!

— Rozalia?!

Henry, que já havia se desvencilhado de Ágnes, bateu a poeira da capa e perguntou:

— Cof. O que você está fazendo aqui?

— Eu quem pergunto o que você está fazendo aqui!

Por um segundo, o mal-entendido com Rozalia reapareceu em sua mente. No entanto, ele deu de ombros e pigarreou.

— Estamos reunindo aliados.

— Aliados...? Para quê?

Apesar de possuir habilidades físicas excepcionais, Leonard não era conhecido por seu intelecto. Não que a situação fosse óbvia, mas Ágnes esperava que ele tivesse pelo menos uma noção.

— Ainda não percebeu que estamos sob ataque? — disse Ágnes com cara de pastel. — Há a possibilidade de estarmos lidando com terroristas. Henry e eu estamos investigando a causa, mas necessitamos de reforços.

— A-ataque terrorista?! — Os gêmeos declararam em uníssono.

Os olhos dos irmãos Draculescu se arregalaram como os de um sapo. Curvando-se em uma reverência digna de uma nobre de sua classe, Ágnes declarou:

— Dito isso, gostaríamos de solicitar a colaboração de vocês. É provável que sejamos os únicos acordados neste momento. Por favor, deixem nossas rixas de lado e cooperem conosco.

— E o que é que vocês planejam fazer?

— Como sua tenente, passo a explicação para o capitão Atwater. Capitão, faça as honras.

— Uhm. Por favor, sentem-se em um círculo. Enquanto isso, a senhorita Draculescu poderia trancar a porta do quarto? 

Quando os preparativos foram completados, Henry se levantou e se dirigiu ao centro do círculo. Ele colocou as mãos na cintura e olhou ao seu redor.

— Escutem. Primeiro de tudo, precisamos encontrar nosso inimigo. Para tanto, precisaremos investigar a situação minuciosamente. Depois disso, teremos que, de alguma forma, lidar com qualquer que seja a ameaça.

— Oh-ho-ho-ho! — Rozalia lebou uma mãos aos lábios e deu um sorriso travesso. Seus olhos carmesins brilhavam de excitação. — Parece-me uma oportunidade de ouro para aprimorar meu currículo.

Ágnes fez uma careta de desaprovação. Contudo, em nome da trégua temporária, não retrucou. Henry parou diante de Rozalia e anunciou:

— Senhorita Draculescu, você será responsável pela nossa comunicação. Quero que forme um canal telepático entre nós e ative sua habilidade de detecção.

— Humpf. — Ela estufou o peito farto e sorriu orgulhosamente. — Apenas isso, capitão?  

Henry assentiu com a cabeça. Seus olhos, então, pousaram em Ágnes. Ela estava sentada de pernas cruzadas, penteando os cabelos com os dedos magros.

— Você disse que era a minha tenente, não disse? Pois bem, ficará encarregada de guiar nossas operações em campo e fornecer suporte informacional.

— Sim, senhor, capitão! — Ágnes se ergueu de repente e, endireitando a coluna, levantou o braço direito à frente. — Tenente Los Rosales se apresentando para o serviço.

Acho que nunca me acostumarei a essa saudação... Henry suspirou. Não gostava daquele gesto, mas optou por ignorá-lo e declarou:  

— Para uma garota, você até que entende de organização militar. Posso saber o motivo, tenente?

— Senhor, meu país está em guerra com os invasores jazianos há quase trezentos anos. Somos criados em meio às notícias e aos comentários das batalhas. É algo natural.

Os marajás do sul? Já ouvi falar desta história. A «Reconquista» alternativa... Henry cruzou os braços e fixou seu olhar em Ágnes. Vestida naquele uniforme, uma adaptação do utilizado pelos marinheiros heleneses, ela parecia uma verdadeira oficial militar.

Somado a isso, o fato de ela estar interpretando sua função propriamente a deixava ainda mais atraente. Envergonhado, Henry colocou as mãos nos bolsos e continuou a divisão de tarefas:

— Senhorita Beaufort, seu trabalho será proteger nosso quartel-general. Utilize qualquer feitiço para fortalecer sua estrutura e para ocultar nossa presença. Também quero que reforce a defesa da equipe de campo.

— Sim, senhor. Prepararei os ingredientes para as magias.

Deixado por último, Leonard estava mal-humorado. Henry arqueou a sobrancelha.

— Senhor Draculescu, estou ciente de sua aversão a mim e à tenente Ágnes. Contudo, pelo bem da nossa Academia, trabalharemos juntos nesta noite. Você virá comigo na equipe de campo.

— Atwater... não, capitão... — Leonard abaixou a cabeça com humildade. — Será uma honra trabalhar com o senhor. Peço perdão, capitão, tenente, pelo meu comportamento infantil naquela tarde. Eu sinto muito.

As pancadas de Henry enfiaram algum juízo na cachola de Leonard. Além disso, ele ainda ficou consciente durante tempo suficiente para ouvir o discurso final. Graças àquilo, agora estava um pouco mais maduro.

Henry se ajoelhou a um passo de Leonard e colocou a mão em seu ombro.

— Águas passadas, soldado. O que você tem a dizer, tenente?

— Não posso dizer que me esquecerei de suas ações... mas, se você está arrependido, não vejo motivos para não o perdoar.

Leonard levantou a cabeça e encontrou os bem-feitos olhos azuis de Henry. Encarou-os por um breve período e corou.

— Capitão, tenente... muito obrigado.

— Não se preocupe. — disse Henry dando um tapinha em seu ombro. — Você está armado?

— Sim, senhor. — Leonard sorriu. — Meu canalizador está comigo.

— Ótimo. Senhorita Beaufort, está pronta? 

Ao ser chamada, Adélaide se aproximou, trazendo consigo um pequeno pilão e um pincel. Dentro do utensílio estava uma misteriosa pasta verde-escura.

— Sim, senhor. Por favor, fiquem de pé e se dispam. Meninas, se não quiserem ver, não olhem para cá.  

— D-despir-me? — Leonard gaguejou e corou ainda mais.

— Não seja tímido, senhor Draculescu. Estou acostumada a isto. Nós, restauradores, temos nossa ética profissional.

— Mas você é uma garo... Huh?!

— Por favor, não se mexa tanto. Fique quietinho! 

— E-ei! Onde você pensa que está tocando?!

Testemunhando aquela excêntrica inversão de papéis, Rozalia chiou. Com o cenho franzido, sussurrou para Ágnes:  

— Às vezes eu tenho vergonha de ser irmã daquele esquisito.

— Meus sentimentos, Rozalia.

Enquanto isso, Adélaide pintava os corpos seminus de Henry e de Leonard. Em menos de cinco minutos, seus corpos pareciam as páginas de um manuscrito ancestral.

— Eu vos concedo a dádiva da proteção, e vós não havereis de sucumbir na batalha. «Armadura de Ájax».

Os inúmeros símbolos na pele dos rapazes cintilaram e desapareceram. Após isso, os dois vestiram suas roupas de novo. Henry inspecionou o quarto. Deitada de bruços na cama, Ágnes folheava um grimório grosso e desgastado. Ela balançava as pernas para cima e para baixo, como uma criança.

Ao seu lado, Rozalia estava sentada de pernas cruzadas, com uma agulha na mão. Ela bocejou e se virou na direção de Henry. Sob suas instruções, todos espetaram os dedos na agulha e deixaram pingar uma gota de sangue nas costas de sua mão. O que aconteceu em seguida os deixou sem palavras; Rozalia, parecendo estranhamente feliz, lambeu o sangue nas costas da mão.  

Quando ela terminou de lamber, revelou uma expressão extasiada e seus olhos começaram a brilhar. Porém, antes de puderem dizer algo, a luz desapareceu. Com a varinha em mãos, ela recitou:

— Eu clamo a ti, ó Carmenta, Princesa do Ar, que entrelace nossos destinos sob a minha orientação. «Vínculo Telepático».

 Rozalia riu baixinho ao notar a reação dos colegas. Entretanto, ainda lhe restava a conjuração de mais uma magia. Fechou os olhos e se concentrou.

— Que os fios de Numen convirjam em meu âmago e me permitam ultrapassar minha percepção mundana. «Teia Sensorial».

No final da oração, uma pequena fenda surgiu no meio de sua testa. Quando ela abriu seus olhos, a fenda também se abriu, revelando um terceiro olho, de coloração arco-íris. Por meio daquela magia, os fios de Numen dos arredores, parte de uma teia complexa e imensurável, interligavam-se a Rozalia. Dessa forma, ela conseguia sentir quaisquer vibrações dentro do alcance do feitiço.

— Parece que estamos preparados. Draculescu e eu conduziremos a investigação em campo. Em minha ausência, a tenente assumirá meu posto. Portanto, tenente Ágnes, você foi promovida a comandante-geral da equipe. E assim eu anuncio o início da «Operação Pesadelo».

Com o suporte de Rozalia, o percurso até a Fonte do Trevo não teve incidentes. Aquele local havia sido escolhido por Ágnes pois, segundo ela, seria o ideal para começar a investigação. Henry e Leonard estavam escondidos nos arbustos daquele pátio.

— Ei, Draculescu.

— Senhor, não há motivo para tanta formalidade.

— Entendido. Bem, Leonard, escute-me. Um terrorista não será tão complacente quanto eu. Seja cauteloso e, se preciso for, não hesite em fugir.

Leonard engoliu em seco. Se Henry desarmado o vencera com tamanha facilidade, ele se perguntou o que aconteceria em um combate com um terrorista.

«Alô? Pantera Negra na escuta? Câmbio.»

A voz firme de Ágnes soou dentro de suas cabeças. «Pantera Negra» era o codinome que Henry escolhera para a equipe de campo.   

— Positivo, Navi. Câmbio.

O mesmo valia para «Navi», o codinome da equipe do quartel-general, com a diferença de que tinha sido escolhido por Ágnes.

«Adél terminou de fortificar o QG. Câmbio.»

Excelent. Descobriu algo útil? Câmbio.  

«Afirmativo. A magia que está nos atacando se chama ‘Somnium Theatrum’. Precisa ser conjurada de lugares elevados para funcionar. Portanto, o lugar mais suspeito é a Torre de Babel. Investiguem-na com cautela. Câmbio desligo.»

— Roger. Vamos, Leonard.

— Sim, senhor.

Guiados por Rozalia, passaram por entre a Escola e o Saveur Royale, caminharam durante alguns minutos por uma calçada sombria e chegaram ao sopé da torre.

A construção era imensa, desproporcional às vizinhas. Seus tijolos eram adornados por runas ilegíveis e arabescos sofisticados. Seu portão oriental, tão grande que poderia ser confundido com a fachada de uma casa, estava fechado.

Fuuuuuuuuuuuuuuuuu...

O vento noturno atravessava o campus deserto com um assobio agourento. A atmosfera estava densa e o frio trazido pelo verão dificultava a respiração.

— Navi na escuta? Câmbio.

Cri, cri, cri.

— Navi? Alô? Vocês me ouvem? Câmbio.

Henry insistiu, mas não houve resposta.

— Se eu tivesse que chutar, capitão, diria que saímos da área de cobertura da magia.

— O quê? Logo quando chegamos ao objetivo?

Deixando escapar um suspiro profundo, Henry abaixou a cabeça.

— Não nos resta outra opção. Abra os portões com sua feitiçaria, Leonard. Agora somos uma unidade independente.

— Hein? Avançaremos sem suporte, capitão?

— Já desperdiçamos muito tempo, homem. Coragem. Vamos, apresse-se!

Nheee...

O portão se abriu. Banhados pela luz violeta da lua cheia, Leonard e Henry entraram na Torre de Babel em direção ao inimigo desconhecido. 



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