Volume 1

Capítulo 2: Sangue e lágrimas

O barulho inconstante estalou outra vez.

Não conseguia precisar de onde vinha, mas o som vago era familiar aos ouvidos; talvez relacionado à dor ou à tristeza, idiomas universais daquele mundo.

— O quê…?

Marco abriu os olhos com dificuldade, sentindo a cabeça latejar como se o coração tivesse trocado de lugar com o cérebro.

— Ele acordou, Bia… — Uma voz pastosa ecoou a quilômetros de distância.

Quando o nevoeiro se dissipou das vistas, compreendeu que o som partia de um garotinho sentado pelas imediações.

Marco tocou na lateral da cabeça, a dor protestando ante o contato mais débil. Afastou a mão do ferimento e, ao encará-la de volta, observou que continuava limpa apesar do sangue seco que se espalhava pelo banco do carro.

Ele se sentou, ainda zonzo demais para assimilar o motivo de ter acordado no interior de um veículo desconhecido. Os vidros haviam acumulado uma camada fina de vapor condensado, filtrando a escuridão que se abria pelo lado de fora. A noite caíra e, com ela, um aguaceiro de congelar os ossos. A chuva fustigava a carroceria.

Então aquele estalo ecoou novamente, e percebeu que o garotinho soluçava. Os postes sobre as calçadas se erguiam como lápides apagadas, mas o rosto pueril brilhava úmido sob a iluminação entrecortada da lanterna de teto do veículo. Limitando-se a fungar quando limpou o rosto na manga, a apreensão pairou na face ingênua ao encarar Marco através dos olhos verdes e inchados.

— Não faça nenhum movimento brusco — exigiu uma voz feminina ao lado do menino.

Ainda do banco de trás, Marco se voltou até o assento do motorista, e a visão ganhou foco de vez ao perceber uma jovem olhando feio para ele enquanto apontava a mangueira de um miniextintor de incêndio diretamente para seu rosto.

Arqueou uma sobrancelha, notando a semelhança entre a criança e a garota do extintor. Ela era nitidamente mais velha; talvez possuísse o dobro da idade.

Entrementes, conseguiu distinguir por entre os cabelos escuros e lisos que tombavam ao redor do rosto pálido da estranha, emoldurando os olhos cor de jade semiocultos à penumbra que recobria o cubículo de metal. Ela fungou, o que Marco também considerou como uma tentativa de conter o choro.

— O que tá acontecendo aqui…? — perguntou ele, sentindo aquela situação absurda piorar sua dor de cabeça, o corpo também reclamava.

— A nossa mãe… — choramingou o menino, afundando os dedos pequenos no encosto do assento. — Ela bateu o carro em você.

— Fica quieto, Levi! — ralhou a garota.

Com assomo de horror, Marco arregalou as órbitas enquanto se lembrava do acidente.

— V-vocês me atropelaram? — Afobado, Marco vasculhou o próprio corpo em busca de algum osso quebrado ou ferimento mais grave, mas suspirou aliviado ao encontrar nada além de escoriações.

— A gente sente muito por isso — disse Levi, em tom de pesar.

Na opinião de Marco, contudo, não era o que faziam demonstrar, observando que a garota ainda mantinha o extintor apontado com firmeza para ele. Sem elaborar nenhum comentário, remexeu pressuroso nos bolsos das calças, até arrancar o celular e se assustar com as sete chamadas perdidas de sua mãe. O semblante de Marco se transformou numa máscara de terror gélido. Precisava fugir daquele carro.

Não sentindo nenhum ferimento que o impedisse de correr, amaldiçoou a situação estapafúrdia e esticou o braço para a maçaneta, sendo bruscamente impedido pela garota e pelo menino.

— Não faz isso, por favor! — alertou ela, largando o extintor de brusco. — Fica no carro.

Achou o pedido esquisito.

— Por quê?

— Tem alguma coisa lá fora — murmurou Levi. — Ela pegou a nossa mãe.

Marco ergueu uma sobrancelha, ainda sem entender.

— Do que estão falando?

— A nossa mãe… — A garota cochichava como se qualquer elevação na voz pudesse ser perigosa. — Depois que você bateu no nosso carro, ela correu te socorrer. Mandou que ficássemos aqui dentro, então… então ela…

— Mamãe flutuou — prosseguiu Levi, soluçando numa nova tentativa de suportar o choro. — Aí o vento engoliu ela… as pernas… só ficaram as pernas pra trás. Eu quero a minha mãe de volta!

E desabou outra vez, sendo consolado pelo abraço apertado da garota.

— Vai ficar tudo bem, Levi.

Marco correu a mão pelo topo da cabeça num misto de aflição e vontade de vomitar. Que era aquilo que diziam? Então não foi um sonho? Lembrou-se dos delírios que tivera no momento do acidente, mas imaginou que não passasse de uma peça pregada pela mente em curto-circuito. Negava-se a acreditar no que os ouvidos captaram, concluindo ser vítima de uma pegadinha de mau gosto, provavelmente engendrada pela própria mãe. Sim, era isso. Ela gostava de piadas.

Tirou a mão da maçaneta e a fez correr pelo vidro embaçado, abrindo uma fatia que desse para enxergar pelo lado de fora.

Fitou ao pé do veículo, em direção à porta do motorista, até recair as vistas sobre duas pernas decepadas, cujo sangue escorria lentamente pela sarjeta, levado pela água da chuva. Deu um grito sufocado e caiu para trás no banco, sentindo o coração rebentar como um cavalo a galope.

— Que era aquilo?

A garota continuava a acariciar entre os cabelos bastos e escuros de Levi, brincando de fazer ondinhas. Seu rosto, no entanto, era pura urgência e pesar.

— Acredita na gente agora?

Marco a encarou. Não sabia o que responder. Desconcertado, procurou à memória qualquer assunto que pudesse contornar o rumo da conversa, numa tentativa irrefletida de tornar o ambiente menos hostil. O tom, no entanto, soou nervoso:

— E… como se chamam?

— Beatriz Salvatore. Este é meu irmão Levi — apresentou-se com rouquidão.

— Eu sou o Marco. Vocês me puxaram até o carro?

— Depois do que aconteceu… — começou ela. — Bem, a gente estava em estado de choque, mas Levi queria que o trouxéssemos para dentro de todo jeito. Achei perigoso, mas ele insistiu de bater o pé. A alma desse menino é boa demais pra esse mundo.

— Por Deus — sussurrou Marco, apertando a cruz do pingente que trazia ao pescoço. Virou-se atônito para Beatriz e Levi. — Então… só me resta agradecer, além de sugerir que a gente saia daqui… Agora mesmo.

— Mas como? — inquietou-se ela.

— Você dirige?

Beatriz negou com a cabeça.

— Só faço dezoito no ano que vem. Mamãe jamais me deixou tocar no volante.

— Eu fiz nove mês passado — disse Levi, como se fosse importante deixar claro a informação.

— Certo, me passem a chave e apertem os cintos.

— Mas… aonde vamos? Não vamos enterrar nossa mãe? — choramingou o menino.

Marco apertou as pálpebras com remorso, depois suspirou, bagunçando os cabelos de Levi.

— Olha, garoto, a sua mãe… — Ele comprimiu os punhos, lembrando-se daquelas pernas sem corpo. As palavras não lhe surgiam à boca. — Vocês dois têm com quem ficar? Se o que me contaram for verdade, precisamos de um lugar seguro.

— Tem o nosso pai — respondeu Levi. — Mas ele é separado da mamãe.

— Ele trabalha no centro, num escritório de advocacia. Talvez esteja lá. Ele mais trabalha do que fica em casa.

— Tentaram ligar pra ele?

Beatriz fez que sim com a cabeça.

— Os celulares estão sem sinal. Todos eles.

Marco encarou a tela do próprio aparelho. Era verdade.

— Beatriz, troque de lugar comigo, por favor.

Promovendo um pequeno esquete de contorcionismo pelo cubículo de metal, Marco se acomodou ao banco do motorista, enquanto Beatriz migrou para o do passageiro e Levi para o de trás. Ele inspirou fundo e deu partida no carro, que pegou de primeira, rompendo um facho de luz contra a chuva e a escuridão.

— Minha casa fica aqui perto — explicou Marco. — Me deixem passar lá primeiro. Preciso ver a minha mãe.

Ele tentou partir com o carro, mas o veículo morreu.

— Tem certeza de que sabe fazer isso? — Beatriz perguntou com inquietação.

Desconcertado, Marco sorriu amarelo, insistindo na partida e conseguindo acelerar com um solavanco na terceira tentativa. Suspirou ao trocar de marcha, lembrando-se de que estava deixando a própria bicicleta para trás. Bem lá no fundo da cabeça, a esperança de que tudo não passasse de um pesadelo febril ainda não o abandonara, então, quando enfim despertasse, acordaria numa cama de hospital com a mãe do lado explicando que o atropelamento o fizera desmaiar.

Emergiu do devaneio ao avistar o muro de tijolos da própria casa, se adiantando para estacionar ao meio-fio.

— É coisa rápida — disse para os irmãos.

Marco puxou a camisa contra a cabeça e saiu correndo até o portão, mas se assustou no momento em que adentrou na garagem.

O Monza reformado tivera parte da carroceria traseira retorcida; os vidros e o porta-malas estourados, como se vítima de uma rocha pesadíssima despencada do céu. Não havia rocha alguma, todavia. Com sobressalto, olhou mais adiante e notou a porta da sala igualmente arrebentada, caída de lado; a abertura transformada num amontoado de tijolos como se algo enorme tivesse forçado sua passagem para o interior da casa.

Marco engoliu em seco, apanhando um pedaço de pau que largara num canto da garagem, já muito usado por ele em jogatinas de bete-ombro com a molecada da vizinhança. Segurou-o firmemente contra o peito, aproximando-se da entrada destruída. O coração galopava e os pensamentos cravavam-se na mãe. Rezava uma prece silenciosa com uma avidez que chegava a doer no íntimo. Jamais fora tão católico quanto a mãe, tampouco era mentira confessar que sua fé se firmava como um equilibrista na corda bamba, mas rezar era tudo que podia fazer naquele momento. Marco a sentia como a oração mais verdadeira que já fizera.

A sala estava destruída, imersa à penumbra. Marco apertou o taco até as juntas protestarem antes de ligar o interruptor, esparramando uma débil claridade pelas dependências.

O ruído de madeira ecoou secamente quando o taco se afrouxou da mão e despencou pelo azulejo, encarando as paredes esmaltadas de sangue, como se um funileiro tivesse experimentado uma nova técnica de aspersão em tons mórbidos de escarlate.

Marco sentiu a boca secar, mas as pernas o impulsionaram para frente, rumando numa linha reta em direção à cozinha. Estacou uma passada antes de invadir o local, no momento em que os olhos recaíram sobre um contorno escuro ao lado do armário. O odor metálico de sangue era muito mais intenso ali que na sala, mesclando-se asquerosamente ao cheiro de biscoitos tirados há pouco do forno. Ele tremeu o dedo a centímetros do interruptor, sentindo os nervos em pânico. Tinha medo de descobrir o que a escuridão ocultava.

Pulou no lugar ao sentir roçarem pelos calcanhares, encarando o gato com o coração na garganta.

— Régulo! — sibilou revoltado.

Ignorando a ralhada, o gato preto se sentou aos pés do dono e encarou o breu maciço que tingia a cozinha, encetando um rosnado áspero.

Marco respirou fundo e, como se empurrado pelo efeito da adrenalina, obrigou a luz a se espalhar pelo local.

Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Régulo chiou com força e saiu desabalado dali, simultaneamente à visão que Marco sabia que guardaria pelo resto da vida: relanceou um corpo esquartejado no chão, recoberto por trapos da mesma cor do vestido de sua mãe, como se um animal esfomeado tivesse chafurdado por ali até sobrar apenas retalhos de carne nos ossos; não fosse pelas roupas, seria irreconhecível. O piso azulejado se transformara num mosaico onde o vermelho coagulado se intercalava ao cinza-gélido.

Marco sentiu o ar ser expulso dos pulmões com a mesma intensidade de um soco na boca do estômago. Houve um sibilar e, quando inspirou com violência, um odor desagradável lhe encheu as narinas. A cabeça girava sem parar, excitando a ânsia de botar tudo para fora quando foi subitamente impelido para trás, como se algo invisível o tivesse empurrado.

Régulo tornou a se aproximar, bufando para o vento adiante, girando a cabeça como se pudesse acompanhar a trajetória de uma lufada maciça de ar com seus olhos amarelos. O interesse do gato se voltou para a sala ao mesmo tempo em que Marco testemunhou a janela sobre o sofá explodir numa chuva de estilhaços, lançando grânulos de vidro que despencaram num tilintar.

Um segundo mais tarde, entreouviu o ruído de algo pesado contra o Monza, depois o portão se escancarando e, finalmente, tudo voltou ao silêncio inicial.

O garoto ofegava, respirando rápido e dolorosamente. Com dificuldade, se arrastou até a parede da sala de estar e ali permaneceu.

As lágrimas brotaram antes mesmo de Marco entender de onde vinham. Soluçou e se deixou desabar, experimentando uma profusão de sensações que se mesclavam no fígado e no estômago. Sentia-se asmático. Anêmico. A bílis encheu a boca de refluxo. Não conseguia acreditar. Não queria acreditar, mas no íntimo sabia que era o corpo de sua mãe…

Não soube dizer por quanto tempo ficou ali caído, apenas em companhia da quietude opressiva da casa, acostumando-se ao odor enferrujado do sangue nas paredes e ao gosto salgado das lágrimas misturadas com o próprio suor. Ele tremia e arquejava, tendo a sensação de que a cabeça ia e voltava das periferias da consciência, quando Régulo surgiu de repente, saído de algum canto ao pular no colo de Marco.

O gato o puxou de volta à realidade e, sem pensar demais, começou a acariciá-lo enquanto chorava, escutando o ronronar baixinho de Régulo. Expirou com cansaço e enfim se levantou.

Sentindo-se como alguém que largara a própria alma para trás, avançou até o quarto da mãe enquanto discava o número da polícia, mas o sinal ainda não retornara. Arriscou o mesmo com a emergência, mas a chamada também não se completou. Num lapso de irritação, estilhaçou o celular na parede do outro lado.

O quarto de Irene tinha o cheiro dela. Uma mistura de biscoitos e perfume comprado em catálogo de revista. Marco percebeu que ia despencar outra vez, por isso se segurou o máximo que pôde, apanhando uma fotografia em que estava com a mãe num parque de diversões. Escondeu-a no bolso das calças.

Fungando, apressou-se ao puxar o lençol da cama e sair a toda dali. Enxugou o rosto com o tecido e alcançou a cozinha, respirando fundo e mirando o teto antes de adentrar no cômodo e finalmente cobrir o corpo retalhado de Irene Pharas.

Ele se afastou e, ao alcançar a sala da casa, quase desmoronou, não fosse o amparo do abraço inesperado de Beatriz Salvatore.

Marco sentiu o cheiro dos cabelos de Beatriz. Estavam úmidos de chuva, tal como as roupas. Logo atrás dela, a silhueta desfocada e encolhida de Levi se sentara na parte do sofá que não estava suja de estilhaços.

O que fazem aqui? pensou irritado. Não queria ser consolado, pelo menos não por estranhos. Só queria sua mãe de volta.

Tudo o que Marco mais desejava era que aquele pesadelo acabasse, mas esperar que acontecesse o fez soluçar, engolindo a verdade hedionda de que estava tão acordado quanto as lágrimas que voltaram a lhe cortar o rosto.



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