Volume 1

Capítulo 22: O que realmente aconteceu àquele dia – Parte 2

Com o olhar de nojo ainda parado sobre Tobias, Lúcia comentou:

— A energia caiu porque o Ancião finalizou o ritual. É a última chance que estou lhe oferecendo, Tobias. É um privilégio para poucos. Se você se arrepender de coração e me acompanhar até a Ordem, sua vida será poupada e eu o perdoarei por tudo o que está fazendo.

Tobias gargalhou. A risada vibrou desagradável pelo galpão.

— Privilégio pra mim vai ser descobrir o que tem debaixo dessa farda — disse ele balançando a arma de modo sugestivo. — Tira logo a porra da roupa!

A princípio supôs que a mulher não fosse se mexer, o que fez José engolir em seco, mas vislumbrou o momento em que Lúcia destacou o primeiro botão. Ela permanecia inexpressiva, mas estremecia a cada movimento.

José sabia que não era exemplo. Já tinha feito muita coisa na vida da qual se arrependia, mas a cena se tornou insuportável de assistir. Se nada fizesse, nunca mais olharia para si mesmo, muito mais do que por sua aparência desgrenhada. Benzendo-se mais duas vezes com o sinal da cruz, imprimiu toda a força que tinha nas pernas. A barriga roncava de fome, mas que o estômago fosse para o diabo!

Tentando prolongar a vantagem do ataque surpresa até o último segundo, José se atirou em silêncio para cima do braço estendido de Tobias. Por um instante, trocou os pés pelas mãos ao pensar que o vergalhão não lhe permitiu agarrar a pistola. Estatelou as órbitas. Seria baleado.

Houve ruídos de surpresa e outros sons indistinguíveis. Quando José conseguiu reabrir os olhos, viu-se pareado à figura de Lúcia, arquejante. O cano da arma, estremecendo em suas mãos, apontava para Tobias.

— Quem é você? — vociferou Tobias.

José fez um movimento incisivo de ameaça. Tobias se encolheu no lugar e ergueu os braços.

— Este é o meu galpão. — José respondeu no tom de voz mais firme que o nervosismo permitiu. — Não achei certo o que você tava fazendo com a moça.

— M-me devolve a arma, cara — solicitou Tobias. — A gente só tava brincando.

— Brincando uma ova!

— Dê ela para mim, senhor — disse Lúcia.

José não teve dúvidas, elevando a coronha na direção da policial. Lúcia apanhou-a, redirecionando a mira.

— Quanto a você, Tobias — arrematou ela —, parece que a sorte durou pouco.

Com olhar de surpresa, José encarou o momento em que a mulher, sem mais nem menos, mordeu a borda da mão livre até que um filete de sangue escorresse por entre os lábios, pingando contra a parte da farda que ela bruscamente levantou, deixando a barriga à mostra. Sobre a pele clara, logo acima do umbigo, expôs a tatuagem de uma cruz estilizada, lembrando vagamente a letra “Z” em formato de foice.

Assim, com a mão ensanguentada, Lúcia lavou a tatuagem com o próprio sangue, fazendo o símbolo faiscar como um tição em brasa.

— Que porra…? — sussurrou Tobias.

No instante seguinte, porém, tudo voltou ao normal, o que fez José se perguntar se realmente vira o que vira.

— É o fim — arrematou Lúcia, fitando Tobias com desprezo. — Daqui a pouco Nestor estará aqui.

Tobias ainda se mostrava demasiado hipnotizado pela luz misteriosa que acabara de presenciar, o que retardou sua compreensão da fala de Lúcia, demorando segundos consideráveis para voltar a si.

Quê? — gritou de repente. — Olha aqui, Lúcia, sejamos razoáveis.

— Estou sendo. Você ainda está vivo, não está?

Tobias rilhou os dentes, exalando no semblante irritado e nos olhos que esquadrinhavam cada pedaço do galpão, um tipo de inquietação de alguém que buscava desesperadamente por uma rota de fuga.

— Como se chama, senhor? — Lúcia perguntou bruscamente.

— É José, senhora — respondeu de pronto.

— Certo, José. Você fará o seguinte: tem um par de algemas na lateral do meu cinto. Pegue-as e prenda nos pulsos do cabo Tobias. Se ele tentar qualquer gracinha, vai levar um tiro no meio da testa.

Diante de uma ordem direta como aquela, José não podia desobedecê-la, mas não gostava nada do olhar que Tobias lançava em sua direção, como se disparasse uma ameaça velada, algo como “apenas tente para você ver, mendigo de uma figa”. Desde o início temera se complicar, amaldiçoando-se por não ter dado o fora dali assim que ajudou a mulher.

Engolindo o nervosismo a seco, José se decidiu pela cautela, mas foi uma péssima escolha. Num salto felino, Tobias rosnou e se atirou para cima de Lúcia, aproveitando uma brecha de distração. José se assustou, dois tiros foram disparados para cima e, após rápida, mas intensa luta corporal, Tobias recuperou a posse da pistola, sorrindo exultante enquanto apontava a mira e se erguia do chão. Jogou uma mecha do cabelo para trás.

— Pode repetir a respeito da minha sorte, Lúcia? — A ironia ressoou através do semblante ainda mais sombrio de Tobias.

Era o fim. José sabia que era. O estômago roncava em paralelo aos nervos que contraíam e espichavam como resposta ao pânico. Ao longo da vida, perguntou-se várias vezes sobre o fim que teria. Sempre imaginou que o álcool o levaria daquele mundo, mas jamais lhe ocorreu que seria de forma tão abrupta. Estava sóbrio, caramba!

Então o estrondo ecoou, empurrando todos os rostos na direção do barulho. Mal processando o acontecido, um segundo estouro retumbou pelo galpão.

— Lúcia! — rugiu a voz grave de Nestor.

— O que está acontecendo por aqui? — O berro de Jacira ressoou na sequência. Empunhava uma calibre doze à frente do corpo, Nestor vinha logo atrás dela.

Tobias paralisou no lugar; a pistola ainda na mão. No segundo seguinte, contudo, José escondeu a cabeça quando as paredes do galpão explodiram. Uma névoa de poeira subiu pelo local e se espalhou.

Um tiro.

José sentiu o calor se espalhar liquefeito pelo peito. Levou a mão à altura do tórax, sentindo o sangue escorrer em profusão. Caiu de joelhos ainda em tempo de entrever Tobias com a arma apontada em sua direção.

Nestor! — bradou a voz de Lúcia.

Outro tiro. O cara grandalhão acertou Tobias, mas observou que a mulher da escopeta olhava para o outro lado, distraída com a explosão. Ela tinha visto alguma coisa?

José não soube a resposta, pois logo desabou no piso frio.

Não sentiu mais fome. Não sentiu mais nada.



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