Volume 1

Capítulo 24: Labiríntico

Refazendo o mapa do hospital na cabeça, Beatriz tentou se lembrar do trajeto que devia seguir por entre o labirinto de corredores.

Tomou a decisão, optando por um caminho à esquerda de onde saiu. Enveredou-se pela passagem vazia num ritmo cada vez mais acelerado, embora tentasse manter-se o mais silenciosa possível. Refém de uma palpitação nos nervos, concentrava-se para entreouvir o mais sussurrante dos passos.

Entrementes, não tardou até que escutasse a aproximação do primeiro ruído de solas, o que a obrigou a contornar pelo outro lado.

Após minutos singrando num jogo de gato e rato, Beatriz se enxergou mais uma vez abaixo daquele corredor sem saída. A porta lateral ainda emanava um cheiro intenso de maresia.

Pela segunda vez àquele dia, forçou-se para o interior do banheiro ensanguentado, avançando imediatamente na direção dos sanitários.

Com impaciência, Beatriz puxou vários metros de papel higiênico, fazendo bolos com as mãos e enfiando a maçaroca para dentro de todas as pias.

Por um momento, contemplou o próprio reflexo no espelho da parede. O cabelo estava um horror, mas deu pouca atenção ao detalhe.

Sem demora, girou os registros o máximo que pôde. A água começou a jorrar e o líquido subiu pelas bacias até transbordar, regurgitando além da borda enquanto se espalhava num charco pelo piso azulejado.

Beatriz deixou que a água fluísse por boa parte da área, então enrolou outras bolotas de papel e desatou a esfregá-las contra o círculo de sangue do chão, transformando-o num borrão avermelhado. Sem demora, dirigiu-se também ao da parede. Levando água com as mãos em concha e atirando-a contra o símbolo.

Ao final de quase dez minutos de trabalho, Beatriz constatou que o odor salino diminuíra consideravelmente. As pernas e braços das próprias vestes estavam ensopadas, mas a umidade fria colada à pele causava nela um certo contentamento. Uma sensação de que as coisas poderiam dar certo, mesmo que pelos meios errados. Inspirou fundo e contemplou a própria obra. Agora restava esperar. Esperar e fazer uma prece; rezar para que a aposta não se provasse como um blefe errado.

Em tempo, refez o caminho de ida, desviando-se de tempos em tempos ao entreouvir ruídos que desprendessem qualquer ameaça.

O objetivo era apenas um: retornar o mais breve possível para o quarto do irmão, tarefa que seria mais difícil do que imaginara ao avistar a primeira enfermeira.

Aqui! — gritou a mulher do outro lado.

Beatriz arregalou as órbitas e tomou a direção oposta. Por favor, implorava em silêncio, por favor.

No afã de se afastar, precisou correr para longe. Beatriz arquejava; seu corpo ordenando que não desse nem mais um passo. O que era aquela sensação? Era medo? Não. Parecia ainda mais primordial, mais arraigado nas entranhas. Seu espírito, contudo, continuava a lhe exigir para que seguisse em frente. Os pensamentos orbitavam todos ao redor da segurança de Levi.

O devaneio, contudo, deu lugar ao pressentimento quando uma explosão seca, mas intensa, vibrou pelo piso do hospital até seus pés. Um guincho animalesco ecoou pelos corredores. Com assomo gélido de horror, Beatriz entendeu que seu plano havia dado certo afinal.

Com a sensação de que a saliva se transformou em areia, engoliu o próprio nervosismo e continuou a avançar pelos corredores.

De repente, Beatriz se deparou com outra enfermeira na extremidade oposta da passagem. Por um segundo, ambas congelaram no lugar até que Beatriz a viu gritar e despencar no chão.

Me ajude! — urrou a mulher.

Ela esticou a mão na direção de Beatriz, mas, com um murmúrio sibilante de deslocamento de ar, foi puxada para o outro lado, sumindo num berreiro até o silêncio ser preenchido pelo barulho úmido de carne sendo mastigada.

Com o coração a lhe saltar pela boca, mais uma vez Beatriz alterou a própria rota. Escutou mais gritos. Altos o suficiente para obrigá-la a tapar as orelhas. Os sons eram terríveis, como uma sinfonia regida pela própria morte.

Beatriz! — rugiu uma voz. — Nem mais um passo sequer.

Beatriz girou nos calcanhares.

Detida ao lado da sala de oftalmologia, Lúcia apontava a pistola diretamente para ela.

— O que você fez? — questionou a policial. O tom da mulher, no entanto, assustou Beatriz, mas não pelo motivo provável. A voz transparecera uma dor enorme. Os olhos estavam marejados como duas janelas de melancolia. — Por favor, venha comigo. Podemos consertar isso. Ninguém precisará mais se ferir.

— Só o meu irmão, não é?

O corredor em que Beatriz se encontrava bifurcava-se alguns metros atrás dela. Sem pestanejar, girou nos calcanhares e apanhou a direção da direita, escutando os passos de Lúcia ressoarem na perseguição.

Ela não vai atirar. O pensamento praticamente a sufocava. Não vai atirar. Precisa do meu irmão e de mim.

Beatriz olhou por cima dos ombros. Lúcia seguia implacável atrás dela. A policial era veloz. Dobrou à esquerda em outra bifurcação, forçando as pernas a seguirem pelos corredores labirínticos; depois se virou à esquerda mais uma vez, escorando as costas contra a esquina de uma parede.

Atenta ao menor dos ruídos, Beatriz entreouviu o som da aproximação de passos. Sentindo a garganta em brasa, resolveu espiar.

Colando parte da cabeça na aresta da parede, observou que os olhos de Lúcia sondavam pela ramificação do caminho. Aparentemente tentava se decidir para qual lado seguiria.

Vislumbrou a silhueta de Lúcia dar o primeiro passo para a esquerda; o mesmo caminho pelo qual Beatriz avançou.

O ar escapou numa lufada áspera.

Espiando mais uma vez, Beatriz teve tempo de testemunhar quando Lúcia recebeu um soco abrupto do vento. Segurando a exclamação para dentro da boca, distinguiu a mulher ser bruscamente empurrada para o corredor da outra ponta. Aos gritos, Lúcia sumiu na escuridão e, de onde estava, Beatriz enxergou o sangue borrifar ao longo das paredes.

Com as pernas flácidas, cambaleou até o local. Lembrando-se do que dissera Dr. Pereda, sobre o olfato dos Ocultos farejarem o pecado. Foi sincero no que disse? Teria de se arriscar para saber.

Reconhecendo uma leve fragrância de enxofre, cruzou pé ante pé até se vir à extremidade da passagem, admirando com um misto de asco e piedade, o corpo rasgado e dobrado em ângulos errados de Lúcia.

Beatriz forçou para que a comida continuasse no estômago e, com um olhar do mais profundo pesar, apanhou a pistola da policial. Partiu a toda dali com um amargo inexplicável na boca.

Tiros eram disparados a esmo pelo hospital, o que obrigou Beatriz a avançar na mesma medida em que se escondia. Depois de um tempo que pareceu durar uma eternidade, finalmente alcançou o quarto em que deixou o irmão.

Precipitando-se na direção da figura agasalhada de Levi, qualquer exclamação foi suprimida quando encontrou a cama afastada e o cobertor puxado de canto. O menino não se encontrava mais ali. No lugar, jazia apenas um recado numa folha de papel, num garrancho apressado:

“Não quis por amor, que seja pela dor”.

Por um momento, Beatriz se esqueceu de como fazia o ar entrar nos pulmões. Apertou os punhos com tanta força que perdeu a sensibilidade da destra contra a coronha.

Um ruído estranho.

— Bia?

Um disparo.

O cano da pistola de Beatriz ainda desprendia fumaça quando Marco surgiu pela porta do quarto.

— Meu Deus! — exclamou Marco. O garoto carregava Jacira apoiada num dos ombros enquanto sustentava uma trouxa de armas cingida ao corpo, conjunto que incluía até mesmo um machado na mochila às costas. A mulher, cuja farda havia se transformado num amontoado coagulado de sangue, parecia severamente debilitada. Régulo chispou para o interior do quarto.

— Vocês estão vivos… — A voz embargada e rouca de Beatriz escapou num soluçar.

— É claro que estamos. — Passado o susto, Marco avançou, ajudando Jacira a se acomodar sobre o leito mais próximo. A urgência brilhava nos olhos dele. — Por que está armada? O que aconteceu aqui?

Uma lágrima cortou a face de Beatriz.

— A culpa é minha, Marco… deixei que levassem Levi.



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