Volume 1

Capítulo 26: Sorriso pálido

Diante do Oculto, Marco inspirou fundo para criar coragem, apanhando o machado às costas da mochila e o lançando para cima da criatura.

A lâmina rodopiou pelos ares e se fincou num ruído nojento e úmido, abrindo um talho contra a pele do invisível que começou a liberar um tipo de vapor, como se estivesse a queimar. A criatura guinchou, enchendo o corredor de um cheiro nauseante.

Sem deixarem que o medo assumisse o controle, Marco e Beatriz se entreolharam e atiraram várias vezes na direção em que o machado bizarramente flutuava.

— Nós temos que correr, Marco. Não vai dar pra enfrentar todos eles.

Com um aceno breve de cabeça, Marco concordou com ela. A haste do machado ainda se mexia no ar. O Oculto ainda estava vivo, mas a investida da dupla o fez recuar a ponto de abrir espaço para revelar a bifurcação.

Marco agarrou a mão de Beatriz. Escoltados pela velocidade de Régulo, que se movia como uma sombra a deslizar pelo chão, espremeram-se contra a aresta da parede, desviando-se do Oculto, e dobrando à direita.

Toda vez que notavam que Régulo avistava alguma coisa, simplesmente alteravam a rota para não entrarem em confrontos desnecessários que os faria perder ainda mais tempo e munição.

O grupo corria a toda pelas passagens à meia-luz. Algumas lâmpadas já não passavam de meros clarões acinzentados que tentavam sugar as últimas forças do gerador. Marco supôs que a gasolina devia estar pela hora da morte, o que significava estarem há pouco de mergulhar na escuridão total dos corredores sem janelas.

Marco se virava constantemente para trás e para os flancos, com a sensação de terror assomando-se a cada segundo. Tinham que sair logo do hospital! Olhou de esguelha, certificando-se que os passos apressados de Beatriz acompanhavam o ritmo ditado por Régulo. Ambos ofegavam sob o esforço.

— É ali — apontou Beatriz, indicando uma porta lateral quando finamente atravessaram as entradas da cantina.

— Você fica de guarda com Régulo, Bia? — perguntou Marco. — Vou colocar tudo que encontrar na mochila.

Ela concordou com o olhar firme. Segurando a pistola na destra, Marco deu a ordem para o gato antes de alcançar a cozinha numa pernada, rumando diretamente para os armários ao empurrar as portas.

Vasculhou tudo, encontrando somente três quilos de sal distribuídos em sacos fechados. Guardou-os sem demora na mochila, sempre olhando para trás.

De repente, o eco de um disparo.

Com os olhos quase saltando das órbitas, Marco voou cozinha afora, encontrando Beatriz dura como pedra.

O que aconteceu?! — irrompeu ele.

— V-veio do quarto da dona Jacira.

— Vam’bora!

O silêncio glacial que se seguiu impregnou o ambiente, arrepiando os pelos da nuca de Marco. O eco de outro tiro chegou até ele, vibrando pelas paredes. Com o coração voltando a galopar insanamente, alimentado pelo medo do que encontrariam, Marco, Beatriz e Régulo refizeram o caminho imprimindo toda a coragem que lhe restavam.

Chegaram a tempo do terceiro tiro.

Jacira se encolhera a um canto. Sangrava muito. Uma silhueta invisível flutuava com um machado enfiado no corpo. A quantidade absurda de sangue vinha da perna esquerda da mulher, que já não existia mais. A carne dilacerada e rósea vazava o líquido avermelhado, formando uma poça embaixo dela.

Marco não disse nada. O choque foi suficiente para obrigar os pés a se moverem antes que o cérebro ordenasse. Arrancou um saco de sal da mochila e, num grito que parecia desprovido de qualquer humanidade, atirou-o por sobre o Oculto.

Os flocos despencaram como areia por cima da silhueta quadrúpede da criatura, penetrando contra a pele invisível numa liberação de vapor fétido. O guinchar doloroso irradiava pelo quarto, como um porco tendo a garganta atravessada por uma faca cega.

Marco avançou em direção ao demônio, largando a pistola para trás. Em vez dela, puxou o machado que se fincara no Oculto e ergueu acima da cabeça.

Parecia inconcebível, mas a criatura havia se encolhido contra uma das paredes do quarto. Marco ainda não era capaz de distingui-la com clareza, mas aquele cheiro hediondo misturado à pele esfumaçada, que fervia abaixo do sal, era um alvo mais que aceitável.

Sem dizer uma palavra, desceu a primeira machadada. A criatura continuava a guinchar. Desceu mais uma. As paredes respingaram de sangue podre. E mais outra. O rosto da mãe sumia e aparecia em lapsos de memória, a voz dela recitava “não matarás”. E outra e mais outra e mais uma… Marco golpeava como se estivesse em transe, subindo e descendo a lâmina contra a carne do Oculto. Rasgando-a. Dilacerando-a. Picotando-a.

— Chega, Marco! — bradou a voz distante de Beatriz.

Marco deteve o machado no alto, arregalando os olhos como se despertasse de um sonho com um tapa. Olhou para baixo. O Oculto era uma massa queimada e disforme recoberta pelo próprio sangue escuro.

Estremecendo, largou a haste da arma, que despencou com um baque metálico. A consciência retornou. O senso de que havia algo mais urgente para fazer lhe voltou à razão. Virou-se para o lado. Beatriz tentava estancar o sangramento de dona Jacira com compressas e ataduras. Correu para ajudá-la.

— D-desculpe — balbuciou ele. — Quando eu vi a senhora desse jeito…

— Foi minha culpa, dona Jacira — lamentou-se Beatriz. — Eu deixei as criaturas invadirem o hospital. Se eu não tivesse…

Mas parou de falar no momento que confrontou o sorriso pálido de Jacira. A policial fez uma negativa apática com a cabeça.

— Fez apenas o necessário pra sobreviver, Beatriz. Mulher de fibra… Não se culpe, por favor. É até melhor assim.

A saliva desceu como serralho pela garganta quando Marco encarou a gravidade do ferimento de Jacira; o coração contraindo com força. O coto que restou da perna estava muito feio. O sangue fluía em doses modestas e ritmadas, mesmo com a compressa.

— O que a senhora quer que a gente faça? — perguntou em desespero. Trocou um olhar trêmulo com Beatriz. — As bolsas de sangue… posso pegá-las no carro.

— É muita bondade sua, Marco — respondeu ela. O rosto de Jacira estava cortado de suor. — Mas não tem mais nenhum médico por aqui, não é? Acho que é o fim da linha pra mim.

— Não diz isso, dona Jacira. — Beatriz fez uma negativa brusca com a cabeça. — Nós vamos…

— Vocês vão — interrompeu ela, apanhando um objeto do bolso.

Percebendo que era a chave da viatura, o garoto a tomou na mão, os olhos ainda arregalados.

— No final eu tinha razão, Marco. Você é mesmo um bom garoto. — Jacira apanhou um cigarro e, após acendê-lo, deu uma longa tragada, liberando a fumaça tranquilamente para cima. — Aquele selo… — ela tossiu roufenha — talvez haja alguma coisa na igreja de São Décimo. Ela fica…

— Eu… eu sei onde fica. — Marco a cortou desolado. — Descanse. Não precisa dizer mais nada.

Jacira deu outro sorriso pálido. O cigarro pendia tristemente contra os lábios.

— Vão atrás do menino — sussurrou ela. — Não façam como eu fiz. Sejam gentis, mas jamais desistam de quem vocês amam. O arrependimento os acompanhará pelo resto da vida.

— Dona Jacira…

Sorriu para Marco e Beatriz, levando a mão ao próprio crucifixo. Uma lágrima cortou a face da mulher.

— Pelo menos agora… — a voz chiava cada vez mais fraca — agora saberei onde está Melinda.

Os olhos se fecharam devagar, tão lentamente quanto a fumaça que subia do cigarro. Jacira não disse mais nada.



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