Os Raios de Lost Sun Brasileira

Autor(a): Gil Amorim


Volume 1

Capítulo 1: Bem-vindo a Lost Sun

Estou morto?

Meus olhos desatavam-se com relutância. Aparentavam estar fechados por dias a fio, colados por aquela estranha secreção produzida por nossos corpos decrépitos.

Remela?!

Areia!

Areia?!

Aliás, minha cara encontrava-se enfiada no chão em meio ao nada. Levantei-me um pouco tonto. Quando me pus de pé, cambaleei. Meus olhos piscavam lentamente. Não me memorava de ter bebido na noite anterior. A bem da verdade, não me lembrava de muita coisa.

Desloquei-me para frente em busca de um norte, mas não enxergava nada. Uma neblina espessa cobria meu campo de visão. Meu norte veio com uma pancada que dei na placa da cidade. A cabeça, agora, doía dobrado.

“Bem-vindo a Lost Sun”.

Que diabos é Lost Sun? Se bem que o sol aqui estava meio perdido mesmo. Era dia? Noite? Que raios aconteceu comigo?! Parti em busca de respostas na direção da cidade que supunha estar ali. Enxergava pequenos fragmentos de luz borradas à frente.

Alguns metros de caminhada depois, principiei-me a visualizar as casas e estabelecimentos do lugar. Acenei para uma senhora esquisita que passara por mim. A mesma fez uma careta que lhe conferia um semblante ainda mais aterrorizante. A anciã moveu-se mais que depressa para longe.

De repente ouvi um barulho vindo de um saloon próximo e enfie-me ali. As pessoas aparentavam-se muito felizes. Bebiam, comiam e dançavam.

— Amanhã é sábado, pessoal! — disse um dos cowboys com um copo de cerveja na mão abraçando uma mulher. — Vamo comemorá e despois teremo nosso miricido discanso!

Distraído, não notei que os ruídos e gritarias cessaram assim que entrei. Todos os presentes me encaravam. Dirigi-me ao balcão e apoiei meu braço ali.

— Ei, forastêro — disse o dono do lugar — acho mió ocê dá o fora daqui se não quisé leva um tiro na fuça!

Não entendi de imediato o porquê de toda aquela hostilidade, mas contive-me e educadamente perguntei o motivo. O homem apontou o dedo para mim e quando fui ver do que se tratava, percebi que estava nu! Assim que o fato fora realizado, todos começaram a rir. Envergonhado, tentei tapar as partes íntimas desnudas com as mãos, no entanto já era um pouco tarde.

— De-desculpe-me! E-eu...

— Use isto! — O homem jogou-me o avental que usava. Tapei a frente com a roupa e pus a mão esquerda atrás.

— Mal lhe pergunte, mas estou um pouco perdido...

— Percebe-se.

— Acordei desmaiado às portas desta cidade e não sei como vim parar aqui.

Há! Há! Há! Não se preocupe, isso é mais comum du que parece!

Não entendi tal colocação.

— Poderia me dizer como eu faço para sair daqui? Onde fica a ferrovia, um charreteiro?

— Difícil, hein? Essa névoa dificulta a visão. Se prestá atenção, vai vê que não temo muitos cavalo por aqui. Num dá pra cavalgá sem enxergá! Há! Há! Há! Cê pode pagá o carrocêro para ele te tirá daqui. Ele é o único que sabe se virá nessas banda.

— E-eu não tenho dinheiro. Será que você poderia...

— ...Te dinheiro? Há! Há! Há! Sem chance!

— Me diga pelo menos como eu posso conseguir...

— Tem duas manêra! Cê pode conseguir um trabaio na fazenda do Sinhô-Sangrento, ou caçá cabeças prêmio pro Xerife-da-Noite!

Apesar da intimidação imposta por aqueles nomes bizarros, me dispus em ir até a delegacia, afinal, eu também era um homem da lei e o xerife poderia entender o meu lado, e quem sabe até me oferecer respostas para tudo aquilo.

A névoa ainda continuava densa. As pessoas nas ruas estavam embriagadas e no mesma clima de festa dos homens do saloon. Ressaltavam veementemente o fato daquele dia ser uma sexta, e o alívio de não trabalharem no dia seguinte.

Ao chegar à delegacia hesitei por um momento. Receava ser preso por ataque ao pudor devido ao fato de estar usando apenas um avental.

Criei coragem.

O que poderia ser pior do que aquilo, não é?!

— Pode entrar — disse o xerife.

Eu nem havia batido na porta ainda.

— D-desculpe-me a falta de decoro, senhor...

— Está em busca de um emprego, certo?

As palavras fugiram da minha boca.

— Tem familiaridade no manejo de pistolas? — O xerife complementou diante da minha mudez  momentânea.

— S-sim, eu também sou xerife. É que...

— Ah! Ótimo! Melhor ainda! Sente-se, vou buscar o seu contrato!

Contrato?

 

Algum tempo depois o xerife retornou com uma muda de roupas composta por uma camisa de manga longa marrom, uma calça bege, um sobretudo azul escuro, um lenço com uma caveira desenhada, bem como uma pistola, um chapéu e um broche no formato de uma estrela com uma caveira esculpida nela.

— Tome, use estas roupas.

— O-obrigado...

— Assine aqui! — O homem entregou-me uma folha e uma caneta.

— Que maluquice, não é? Um homem aparecer aqui apenas com um avental... Hé! Hé! Hé!

— Não me importo com a sua história! Apenas assine...!

Que rude!

— Senhor, eu não estou aqui para isso. Só quero saber onde estou e como poderia voltar para casa...

— Se cumprir esse contrato te direi. Se não, nada feito.

— Tudo bem então. Vou sair e buscar informações em outro lugar...

— Boa sorte! Saiba que está longe de casa, sem suas armas e dinheiro algum. Esta cidade está cheia de bandidos da pior espécie, e por mais que seja habilidoso, o máximo que conseguirá é uma boca cheia de formiga...

Calei-me em minha insignificância. Um silencio que cortara a minha alma.

Antes de assinar, passei o olho rápido sobre aqueles termos. Embora a situação me soasse deveras estranha, precisava do dinheiro e das armas. Passei o olho rápido por aquela folha.

— S-senhor... acho que há algo de errado aqui neste contrato...

— Não há nada de errado...

— ...O-o preço pelas roupas e a pistola é de...

— “Duas almas”!

— E o que seria essas... almas?!

— Apenas formalidades. “Almas” é como chamamos as cabeças-prêmio.

Um jeito muito esquisito, diga-se de passagem.

Ainda que relutante, assinei o papel.

— Muito bem, senhor Kenny Ryan! Foi um prazer fazer negócio contigo!

Que reação inesperada...!

— ...A partir de agora assumirá o codinome de Coiote-do-Deserto! Uma charrete o espera na praça principal junto com seu bando. Que se inicie a caçada!

Mas já?!

— Lembre-se! Você tem um prazo de até um dia para trazer-me os corpos mortos desses procurados. Caso não cumpra o acordo, será cobrado em dobro!

Naquele momento eu ansiava por respostas. Que tipo de bebida maluca eu tomei para encontrar-me ali? Espremia os meus olhos e forçava a massa encefálica a dar-me um insign de lembrança que fosse.

Fui sequestrado e jogado aqui por bandidos?

Minha cabeça doída, será que levei uma pancada forte?

A bem da verdade, o que eu deveria era cumprir logo aqueles contratos para poder me livrar daquilo o mais rápido possível.


Arredores de Lost Sun...

Como eu gostaria de saber as horas...

 A maldita névoa bloqueava o meu campo de visão. Apesar de parecer dia, aquela neblina densa poderia enganar até os olhos mais treinados. Todas as lamparinas da cidade estavam acesas para que fosse possível enxergar uma coisa ou outra.

Após vestir-me, fui guiado pelo assistente do xerife até a carroça dos caçadores de recompensa. Era um garoto com seus 19 anos, magrelo e abatido. Usava um chapéu desgastado, um colete preto sobre uma camiseta bege de manga longa, uma calça jeans desbotada e segurava um lampião que o auxiliava na visão.

Um grupo de quatro mercenários o aguardavam ao lado da carroça. Todos vestiam praticamente as mesmas roupas que eu.

A firma dos caçadores de recompensa!

— Vejam só! Carne nova! — disse um dos homens.

— Droga! Ter que caçá numa noite de sexta — falou um segundo mercenário.

Então era noite! Sabia!

— Pois é! Quiria tá no saloon cos’oto!

— Aguarde aqui. Caronte deve chegá em alguns minutu... — disse-me o assistente do xerife. Em seguida despediu-se e voltou para a delegacia.

Caronte? Estou no inferno?

— Olá, novato — um dos caçadores aproximou-se da minha pessoa. — Como se chama?

— Kenny Ryan. E o seu?

— Errado, senhor! — Um homem alto e decrépito aproximou-se por trás. Segurava um lampião maior e vestia uma roupa preta como a noite. Portava longos cabelos sebosos e fedia como um cavalo. — Não existe nenhum Kenny Ryan aqui! — O homem pegou uma prancheta. — Não é mesmo, senhor Coiote-do-Deserto?!

Que diabo de sonho maluco é esse?

— Ce-certo...! — Não tive coragem de confrontar aquela criatura bizarra.

— Me chamo Caronte, o carroceiro de Lost Sun, e conduzirei vocês ao destino proposto nos contratos. Entrem na carroça, por favor.

Estou no inferno!

***

Algum tempo se passou desde que partimos de Lost Sun. O circo dos horrores estava armado, cinco homens vestidos de sobretudos escuros como se fossem à um funeral em busca de “almas” para o “Xerife-da-noite” à bordo da condução do “carroceiro do inferno”. Aquele roteiro de romance sombrio me dava calafrios e era ainda mais fortemente acentuado pelo silencio sepulcral no interior daquela charrete.

— Não é engraçado que o charreteiro se chame Caronte? — Procurei causar um distúrbio na calmaria.

— Ele pode te ouví, imbecil! — disse um dos mercenários com cara de acabado e com uma cicatriz no lábio inferior.

— Num se importe com esse véio! Caronte é só um nome pra assustá! Eles qué assustá nóis com esse teatrinho. Prazê, me chamo Praga-dos-Vento!

— Qual o motivo desses codinomes esquisitos?

Agimo como matadores de aluguel! Ninguém pode sabê nossas identidade — Um terceiro caçador de recompensas entrou na conversa. Tinha um rosto roliço e faltava-lhe os dentes da frente. Portava um chapéu coco e um lenço vermelho amarrado do pescoço — Prazê, sou o Lagarto-Cinzento!

— Não, imbecil! Esses apelidos são artifícios para nos inserir na seita de Lost Sun! — Um quarto homem também acrescentou suas considerações. Tinha uma aparência bem mais cuidada que os demais. O cabelo era bem penteado, as roupas limpas e a barba bem feita. — Sou Escorpião-Sorrateiro, e o velho rabugento aqui é o Fúria-de-Búfalo!

Seita?

— Seita?!

— Sim! Conecte os pontos! — Escorpião-Sorrateiro começou a falar mais baixo — Lost Sun é uma cidade isolada no meio do nada, coberta por uma névoa suspeita que nunca se dissipa, fazendo com que todos que estão “presos” ali não possam fugir. Sem cavalos ou transporte de qualquer tipo! Para que saiamos temos que aceitar um contrato com pessoas estranhas de nomes e termos esquisitos! Somos parte de uma seita de assassinos perigosos! Eles nos raptaram e nos obrigaram a fazer seu serviço sujo!

Eu definitivamente estou no inferno!

— Num é seita! — falou Lagarto-Cinzento. — Eu até concordo que eles raptáro nóis pra fazê esses serviço sujo, mas tenho certeza que eles é do governo! Lost Sun é uma prisão e eles pega condenado miserável igual nóis pra apagá os inimigo do governo!

— Condenados? M-mas eu sou um xerife... — Levantei a voz assustado. Não me lembrava de ter feito algo passivo de prisão. Será que havia causado algo terrível antes de parar em Lost Sun? Não me recordava de nada...

— Viu? Lost Sun não é uma prisão! Ele é um xerife e eu apenas um contador de uma fazenda em Prudence — disse Escorpião-sorrateiro.

— E quem me garante? Esse idiota num tem cara de xerife nem a pau, óia essa cara de retardado... — Lagarto-Cinzento dirigiu-se a mim com uma ofensa gratuita. Não consegui rebater a tempo de sair por cima da situação.

 

Algum tempo depois a carroça parou. Caronte abriu a porta e pediu para que saíssemos. Os raios de sol acariciaram o meu rosto. Nunca pensei que poderia sentir tanta falta deles. O “carroceiro do inferno” entregou para cada caçador dois cartazes de procurado. Logo em seguida ele subiu na charrete novamente.

— Esta é a cidade de Black River. — disse Caronte. — Cada um deve trazer duas “almas” até o pôr do sol, assim como explicado pelo xerife. Busco vocês no fim do dia! Iáaah!

Splat!

O carroceiro tomou as rédeas e partiu em retirada, deixando-nos às portas daquela pequena cidade.

Poderia ser este o momento da minha debandada?

Virei as costas contra os meus companheiros e segui na direção oposta. Segundos depois senti o frio do cano de metal da pistola na nuca.

Pensô que seria tão fácil assim, idiota?! — O velho do lábio cortado me pegara!

Maldito!

Fui inocente. Por que diabos cogitei que seria tão fácil escapar daquela seita/prisão secreta?

Segui de encontro ao meu destino, que naquela manhã consistia em tirar a vida de duas pessoas que mal conhecia em troca de uma suposta liberdade.

Se valia a pena ou não, a minha vida também estava em jogo.

— Não será fácil fugir — falou Escorpião-Sorrateiro — eu já tentei! Não se iluda com o Fúria-de-Búfalo, o que ele tem de velho ele tem de experiência em matar!

— Por que não se unem para acabar com ele?

— Se fizermos isso seremos caçados até o fim das nossas existência por outros mercenários! Lembre-se, esse é o modus operandi das seitas de assassinos! Hé! Hé! Hé!

— Então quer dizer que vendemos as nossas almas pro diabo?

Escorpião-Sorrateiro sorriu.

Aquele era definitivamente o inferno!

Black River. Por volta das nove horas da manhã...

Cada caçador seguiu por caminhos separados em busca de suas presas. Olhei atentamente para os cartazes em minha mão.

Olha esse caolho de cabelo desgrenhado. Aposto que é um ladrão de banco. Tem cara de ladrão de banco. Mal o conheço e já o odeio! E esse aqui? Narigudo desgraçado! Esse sorriso mal desenhado pelo cartazista concede-lhe um ar de molestador de vulneráveis!

Embora não quisesse matar por nada, aqueles sujeitos me pareciam péssimas pessoas. Pelo menos a minha mente tentava pensar assim.

Droga! Já quero matá-los! — dizia a mim mesmo em busca de uma justificativa para cometer aqueles crimes.

Entrei no primeiro saloon em busca de informações. O estabelecimento estava vazio. O barman limpava o balcão e cordialmente convidou-me a sentar num dos bancos. Me aproximei, e no mesmo instante o homem teve um mal-estar e vomitou no chão.

— D-desculpe-me — disse o barman com um sorriso discreto. O sujeito tinha uma feição simpática realçada pelo bigode de respeito. Usava um cabelo lambido pelo gel, um nariz grande muito parecido com aquele do cartaz que acabei de memorizar.

Um momento, será possível?!

Olhei discretamente para o cartaz de procurado.

— O senhor está bem? — disse.

sim, Hé! Hé! Hé! Foi um mal estar repentino! Engraçado... Minha avó dizia que essas pequena recaída é sinal da morte se aproximano...

Quê?!

— O sinhô tem algo pra mim, dona morte?

— Me desculpe, senhor. Não estou te entendendo...

Ocê tem o chêro da morte! Senti quando entrô aqui! Por isso vomitei. Tem o chêro podre da morte!

Não sentia cheiro algum.

— ... além do mais, um forastêro vestido todo de preto portando armas e com um cartaz de procurado na mão não traz boas notícia, não é mesmo?

Saquei a arma antes que o barman puxasse a shotgun escondida abaixo do balcão.

— Não mova mais nenhum dedo! — disse em alto tom. O homem levantou as mão em sinal de rendição. — Não quero machucá-lo. Estou tão confuso quanto você! Afinal, o que você fez para tornar-se um cabeça-prêmio?

— Não me lembro de ter cometido nenhum crime. Posso tenha irritado uma pessoa ou outra, quem sabe...?

Mais uma vez perdi-me naquele emaranhado de acontecimentos confusos. Afinal, o que estava acontecendo comigo? O que é Lost Sun e esses mistérios todos? Por que não me lembro de nada?

Abaixei a arma e tentei conversar amigavelmente.

Ouvi o barulho da shotgun se armando.

Clack!

Bum!

***

Estou morto?

Um momento... de novo isso?!

Minha cara mais uma vez encontrava-se no chão.

Os respiros ofegantes espalhavam a areia em volta do meu nariz. Levantei-me com dificuldade. Olhei para frente, a névoa cobria os meus olhos.

De volta ao começo...

Bem-vindo a Lost Sun!

 



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