Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 3: O Dia Seguinte

Todas as lembranças de Mutsuki vieram aos poucos, quase como se fossem de um sonho distante.

Ela estava sentada, olhando para todo o sangue que cobria suas mãos, roupas, lençóis e o próprio chão, aterrorizada.

— Não!! — gritou, saltando o mais longe que podia de tudo aquilo.

De costas para a parede, lágrimas correram por seus olhos, então, soluçando alto, ela se fechou com as mãos envolta dos joelhos, como uma criança pequena.

— // — // —

— Ela está sozinha. Devemos entrar?

— Faça.

Em um prédio próximo, duas mulheres observavam Mutsuki através da janela de seu quarto, com ambas podendo ver o salto ao acordar e ter a reação que teve.

A primeira delas baixou as lentes do binóculo que usava, relavando seu rosto.

Era jovem, no começo dos 20 anos, cabelos curtos, olhos escuros, rosto belo e, por mais que seu corpo fosse bonito, não tinha muito destaque, que fazia uso de um escuta na orelha esquerda.

A segunda parecia mais nova.

Seu semblante se voltava para um ar mais despreocupado, ainda que mantivesse um certo quê de maturidade. Os cabelos eram loiro platinados e possuíam maria chiquinhas, amarrados com algumas esferas vermelhas. Suas cores eram mais claras, com uma saia vermelha e uma camisa branca, que davam um contraste considerável com a outra que usava apenas azul-escuro e preto.

— Devemos ir, Satsuki? — falou com um sorriso estampado no rosto.

— É, precisamos fazer isso. Pegue sua arma, Yuudachi. — respondeu retirando uma arma de debaixo da blusa e a inspecionando.

— Minha SP2022? Mas tá novinha ainda!

— Até quando vai agir como criança?!

O olhar que veio seguido da subida súbita de tom a fez recuar, então ela virou o rosto, cerrou os dentes e respirou fundo.

— Não precisava ter falado desse jeito.

— Desculpa… Eu só tô nervosa — constatou, baixando o olhar, mudando a postura ofensiva de poucos segundos antes.

— Não, sei que é difícil, mas é só a maneira como eu tenho de lidar com tudo isso…

Satsuki assentiu e imediatamente virou em direção ao objetivo, arrumando sua roupa para cobrir a pistola.

O prédio era um café recém aberto, com poucos clientes, que chegaram com a brisa fresca da manhã e uma bela vista da varanda, justamente o que as duas precisavam.

Yuudachi fez questão de deixar uns trocados sobre o cardápio deixado por um garçom antes de partir junto de sua parceira pelas escadarias.

Saíram pela porta da frente de forma discreta, fazendo o dono do estabelecimento parar de mexer a primeira xícara de café do dia para ouvir o sino bater.

Logo em frente estava uma faixa de pedestres que usaram para atravessar a rua, misturadas entre uma mãe, sua filha pequena e três pessoas de terno carregando malas que resmungavam sobre o trabalho.

Do outro lado, a mais nova esperou pelo momento certo de arrombar a fechadura do portão enquanto a outra vigiava, mas descobriu estar aberto.

O ranger das dobradiças fez Satsuki se virar lentamente para seguir sua amiga jardim a dentro.

Um canivete sujo de vermelho estava na beira da entrada. Quando inspecionaram a porta encontraram mais sangue na maçaneta e o fato dela ter sido deixada levemente entreaberta.

A moça de preto a empurrou lentamente de pistola em punho, apontada para a entrada e depois para o corredor, quando terminou de abri-la.

Com um aceno dela, Yuudachi puxou a arma e seguiu atrás.

Algumas pegadas ensanguentadas estavam sobre o chão de madeira, mas ninguém podia ser visto ou ouvido e nem mesmo haviam sapatos na sapateira ao lado.

 Rapidamente, ambas abriram caminho até o segundo andar.

A mais velha liderava, parando frente onde estava seu alvo, então arrombou a porta com uma investida

Mutsuki, ainda no canto, olhou de onde vinha o som alto, só para vê-las lhe apontando as armas.

Ela começou a tremer na mesma posição, apenas murmurando algo baixinho.

— O que foi que eu fiz? — falou entre soluços, enquanto suas lágrimas escorriam cada vez mais por seu rosto inchado.

— Pro chão, agora! — ordenou Satsuki

A resposta foram as mesmas palavras.

A moça colocou a pistola de volta no coldre, então a agarrou da gola da camisa, para jogá-la de bruços no chão e algemá-la. Feito isso, ela foi colocada de pé, com Yuudachi colocando um saco preto em sua cabeça.

Uma van, parada mais distante na rua, acelerou e parou em frente ao portão, com as três saindo e entrando pela lateral.

Durante todo o processo, Mutsuki não demonstrou resistência e estava até um pouco mais calma sobre o chão frio, ainda que soltasse alguns gemidos e soluços.

— Não acha que pegou pesado? — murmurou Yuudachi no ouvido de sua parceira.

— Não podemos baixar a guarda enquanto não soubermos exatamente com o que estamos lidando. Não tenho tempo pra sentir pena.

A frieza de suas palavras fizeram a mais nova baixar a cabeça e olhar para a jovem com evidente compaixão.

O trajeto levou alguns longos minutos, até chegarem a um prédio mais retirado da cidade, em um bairro muito pouco povoado.

Seu design era relativamente grande, com muitas janelas e uma boa parte de terreno asfaltado nos arredores, cercado por um muro de tamanho considerável.

O veículo parou em frente a entrada, com os passageiros desceram para dentro das instalações.

A porta era de vidro, revestida com um fino portão de alumínio entreaberto. 

A entrada era ampla, com uma seção de tábuas que separava o piso dela do interior propriamente dito e existiam corredores bastante amplos cheios de salas, como em escolas.

Elas chegaram até um local quase vazio, mas com um layout que lembrava uma cozinha, inclusive com um salão que podia ser visto por uma janelinha que seguia por toda extensão da parede.

Um dos poucos móveis era um freezer industrial, grande o bastante para mais de uma pessoa caber e foi exatamente o que fizeram. Ao abrirem a porta, uma escadaria que levava em direção ao subsolo foi revelada.

Enquanto o som de passos ecoava pelos degraus, Mutsuki finalmente quebrou o silêncio.

— Onde estamos?

— Em um lugar seguro 

— Vocês são da policia? Eu vou ser presa? O que vai acontecer comigo?! — Uma crise de choro voltou a explodir dela, como se apenas tivesse esperando recarregar as forças.

Não houve resposta.

O local era cinzento. Luzes iluminavam os corredores como em uma prisão. A ventilação era notavelmente artificial e as paredes um tanto úmidas. Após entrarem por uma das portas, Satsuki soltou as algemas da refém e retirou o saco.

Seu rosto estava péssimo, completamente úmido, inchado e desamparado, para não falar dos olhos vermelhos.

 Então as luzes acenderam.

O lugar se tratava de um quarto, com uma cama, uma móvel de cabeceira, escrivaninha, armário, mesa e até um banheiro com chuveiro. 

— Fique aqui. Vamos trazer uma muda de roupas.

As duas saíram e fecharam a porta pelo lado de fora.

Mutsuki deixou o corpo escorrer por uma das paredes para se sentar no chão, assim como estava antes de ser encontrada.

Alguns minutos depois a porta abriu. 

Atrás dela estava uma mulher loira, com idade mais próxima dos 30 anos, alta com um rosto bonito como o de uma atriz e um corpo atlético igualmente exemplar. Somente suas roupas, um short jeans e uma camiseta regata não lhe faziam jus. 

Lentamente, ela caminhou até a garota melancólica, ajoelhando ao seu lado com uma muda de roupas em mãos, deixando-as no chão.

Com a mão esquerda, tocou o ombro da jovem, sem se importar com as manchas de sangue.

— Como se sente? 

Mutsuki apenas desviou o olhar.

A mulher então retirou do bolso um lenço e começou a enxugar seu rosto deplorável.

— Vai ficar tudo bem. Consegue tomar um banho?

Ela respondeu positivamente com a cabeça, então recebeu um abraço apertado, a mulher pouco ligando para sujar a roupa.

— Se precisar de alguma coisa, pode me pedir — falou, se afastando lentamente.

Com essas palavras, levantou-se e saiu do local, deixando uma impressão forte no ar. De fato, podia-se notar que o brilho nos olhos de Mutsuki havia voltado, ainda que de maneira tímida.

Assim como lhe foi pedido, entrou no chuveiro

O sangue estava duro, grudado como se fosse cola, por isso, precisou ser esfregado diversas vezes.

Toda vez que suas mãos cruzavam pelos coágulos, podia-se ver sua luta contra o desgosto nauseante de fazer aquilo.

De pouquinho em pouquinho, a cor voltou para sua pele, seu brilho ganhou mais uma sobrevida e sua inquietude se tornou cada vez menos aparente.

Quando estava prestes a terminar de colocar as roupas, batidas foram dadas na porta e uma figura conhecida, Satsuki, entrou.

— Venha comigo.

Mutsuki seguiu ela pelos corredores.

 O lugar, de certa forma, parecia com um abrigo subterrâneo, digno de atenção. Diversas placas indicavam a localização de lugares, como refeitório, quartos, banheiros, armazém, etc.

Um cheiro agradável de materiais de limpeza pairava no ar e somado a temperatura bastante agradável, ainda que um tanto úmido, tornava aquelas paredes não tão sem vida assim.

— Desculpa… Posso perguntar seu nome?

— Pode me chamar de Satsuki, Satsuki Tone. Você é Mutsuki, certo? — respondeu sem diminuir o passo ou se virar para responder.

— Sim… Como sabe?

— Temos nossas fontes.

— Quem são vocês exatamente? — falou baixo, mas audível, embora não tenha recebido uma resposta.

Em uma sala mais adiante, um homem estava sentado em uma escrivaninha, olhando para a tela de seu computador com afinco.

Ele não era japonês. Era alto, cabelos ruivos, meio avermelhados, barba e bigode não muito protuberantes e mantinha um misto civil e militar, usando apenas uma gandola camuflada com uma camiseta preta por baixo e um par de coturnos por cima das calças de brim.

Apesar do semblante lembrar alguém de idade, seu rosto era bastante novo, difícil mesmo de ter chegado aos trinta. Outro ponto que chamava atenção, era o braço esquerdo dele ser uma prótese.

Antes de entrarem, Satsuki bateu na porta, ainda que estivesse aberta, fazendo-o parar para recebê-las.

— Entrem. Você deve ser Mutsuki Chikuma. Prazer, meu nome é Matheus.

— Prazer… 

— Sente-se. Tone, traga água para nós.

Um breve silêncio pairou sobre os dois, com Satsuki olhando para seus olhos com preocupação evidente.

Ele se virou e abriu um pouco a mais a gandola de modo que ela pôde ver um coldre embaixo de seu braço direto, escondido dos outros olhares.

Satsuki assentiu e os deixou.

A sala não tinha nada além de uma mesa com o computador e um ficheiro, com um sofá no canto e um par de cadeiras.

Quando estavam somente os dois, Matheus juntou as mãos sobre a mesa e perguntou em uma postura neutra.

— Se lembra de ontem a noite?

Mutsuki apenas balançou a cabeça positivamente, olhando para o chão.

— Sente como se não fosse você a responsável? Como se tivesse visto alguém em um filme…?

Imediatamente a reação da jovem confusa foi levantar a cabeça e olhar diretamente para os olhos profundos dele com espanto.

— Como você…

— Como eu sei? Porque você não é a única. Seu histórico é bem comum por aqui. Uma pessoa relativamente normal que de repente comete assassinatos múltiplos. Parece clichê de filme americano, mas quando somado ao fato de serem quatro pessoas, das quais três homens, mortos apenas com uma faca por alguém sozinha…

Ele deixou a retórica pairar sobre a sala, então puxou a outra cadeira onde estava sentado para o outro lado da mesa, ficando frente a frente com ela.

— A princípio isso não seria o suficiente para diagnosticar sua situação, mas os relatos preliminares que a polícia e as testemunhas deram ajudaram a confirmar nossas suspeitas.

Foi quando puxou uma pasta da mesa e fez uma pergunta.

— Como se sente tendo matado aquelas pessoas?

— O que? 

— Perguntei como se sente. Odiou...? Gostou...?

Mutsuki levantou, dando um tapa com todas as forças no rosto de Matheus. Depois disso, mordeu os lábios até sair sangue e começou a chorar, antes de sair correndo.

Satsuki, que estava voltando com a água, vendo-a, jogou as garrafas no chão e tentou contê-la, dando uma chave de braço e a jogando contra o chão de bruços.

Contrariando as expectativas, não conseguiu segurá-la, apesar da demonstração de expertise.

Mutsuki conseguiu usar suas pernas pouco antes de cair para se virar e desequilibrar sua adversária. Ambas rolaram pelo chão, caindo um pouco distantes uma da outra.

O semblante que vestia não era o mesmo da outrora chorosa garota que cruzou por aqueles corredores, novamente, era de alguém bem diferente, tanto que não hesitou em atacá-la

A troca de socos, chutes e agarramentos durou alguns poucos segundos, talvez nem mesmo um minuto, terminando inevitavelmente com a vitória de Satsuki, que a imobilizou com uma finalização bem mais intensa que a primeira.

Por alguma razão, um sorriso bem aberto e até animalesco surgiu em seu rosto.

— Calma, Tone — disse Matheus reclinado de costas na parede, de braços cruzados.

Sem pressa, ele caminhou em direção a elas.

Satsuki suspirou fundo e recobrou a compostura.

Mutsuki continuava tentando escapar com violência.

Ao lado delas, se ajoelhou com a pasta que pretendia entregar.

— Chikuma. Esta é sua foto, certo?  

Ele retirou dentre as páginas uma foto dela com suas amigas no colégio.

Rapidamente a intensidade de sua resistência foi diminuindo.

— Está vendo? Esta aqui também é você, mas não a única.

Estas palavras foram as palavras que realmente trouxeram de volta o antigo Eu dela.

— O que eu fiz? — falou olhando para seu reflexo sobre o chão de pedra.

— Você apenas não se conhece bem. Pode soltá-la.

Satsuki saiu de cima dela, com Matheus estendendo a mão para ajudá-la a levantar, hesitando a pegar, obrigando-o a estendê-la mais um pouco.

— Gostei da resposta que me deu — disse ele coçando o lado do rosto onde foi acertado — Quero que saiba que sua amiga, Sachiko, está viva e passa bem. Uma de nós foi despachada para vigiá-la.

— Ela está bem mesmo?! 

— Sim. Sobre os outros que estavam naquele casarão…

Ele começou a folhar as páginas que estavam em suas mãos e falou em um tom simples.

— Yuito Nokage: Envolvimento com os Yakusa, tráfico de drogas, sequestro e suspeito de dopar mulheres que posteriormente eram abusadas em casas noturnas. Isei Agano: Envolvimento com gangues, contrabando, drogas e suspeito de ser cúmplice de Yuito no estupro de pelo menos 3 mulheres. Eisuke Homare: Assalto a mão armada, roubo de carros, suspeito de matar uma mulher e sua filha em um assalto a um bairro de classe média alta.

Após uma citação sem pressa, ele deu em mãos para Mutsuki a lista contendo todas as informações que acabara de citar.

— Misato Sakare: Estava com eles… Ajudando em tudo…

Sob o peso destas palavras, ele tocou o ombro da jovem.

— Eles eram escória e por sua causa o pior não aconteceu com Sachiko.Você é como poucos, Chikuma. Estamos atrás do restante do grupo, dos verdadeiros mandantes de seu sequestro… O que me diz de ajudar?

— Mas e a minha vida? Minha casa, meus amigos? Eu nunca quis nada disso! — falou sacudindo sua cabeça de um lado para outro.

— Eu sei, Mutsuki, eu sei. Não precisa responder agora. Leve o tempo que precisar…

Assim, ele deus as costas e caminhou pelo longo corredor, deixando várias perguntas sem resposta e a outrora garota pacata sob a nuvens de um futuro incerto.

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